" … Será a linguagem daquela gente, e que eu ainda não entendo, que se introduz, a pouco e pouco, em mim? Caos, imagens, sons, tudo a fundir-se num todo que as palavras não capturariam e não alterariam. “Todo” que vai para além das palavras, e que é mais profundo e mais ambíguo do que elas.
Imagino um homem que, desaprendidas todas as línguas da terra, chegue ao ponto de não mais entender o que que quer que seja, onde quer que seja.
O que é que vive numa linguagem? O que é que ela encobre? O que é que ela capta? Durante aquelas semanas passadas em Marrocos, nunca tentei aprender árabe nem tão pouco os dialectos berberes. Não queria perder nada da força contida nessas estranhas lamentações. Queria ser apanhado em cheio por esses sons e não abrandá-los através de vagos conhecimentos, tão insuficientes como artificiais.
Não lera sobre essa terra. Os seus costumes me eram tão desconhecidos como as suas gentes. O pouco que se possa ter aprendido durante toda uma vida acerca de qualquer país e acerca do seu povo, some-se por inteiro, logo nas primeiras horas.
…
Todos os cegos como que ofereciam o nome de Deus. Era, pois, através das esmolas que ganhávamos direito a Ele. Com Deus começam e com Deus terminam, repetindo o Seu Nome dez mil vezes por dia. Todos os seus lamentos contêm sempre esse Nome. A invocação à qual se agarram um dia, mantêm-se inalteravelmente. Espécie de arabescos acústicos mais convincentes do que qualquer coisa obtida através da visão.
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Para homenagearem e dignificarem as suas próprias palavras, os contadores de histórias trajavam de forma singular, distinguindo-se sempre as suas vestes das dos simples ouvintes. Davam toda a preferência aos tecidos sumptuosos, e era vê-los entrar em cena, vestindo lindas sedas de tonalidades ora azuis ora castanhas. pareciam personagens saídas de contos de fadas.
Raramente olhavam os seus ouvintes. Viam apenas os seus heróis. E se por acaso um olhar seu caísse em alguém que não estivesse a viver a história, teria esse alguém como que se dissolver na massa anónima do auditório. Deixara de existir para o contador, tornava-se um estranho, um ausente, que já não pertencia ao reino das suas palavras.
De início custava-me aceitar o pouco ou nada que representava para eles. Era demasiado estranho para ser verdade. Por isso mesmo me mantinha ali, ao mesmo tempo sentindo-me transportado daquele lugar, tão inundado de sons, para outros sons ainda mais longínquos. E sempre despercebido, mesmo quando, no grande círculo, era tomado por uma sensação de presença. Mas para ele, eu era um estranho no seu círculo mágico, um estranho porque o não compreendia.
Desejava intensamente poder compreender, e anseio pelo dia em que saiba apreciar, sem restrições, esses contadores errantes, tal como eles o merecem. Mas igualmente me regozijei por não os entender. Permaneciam para mim como um enclave, como uma vida longamente vivida, mas sempre intocada.
A sua linguagem era-lhes tão importante como a minha o era para mim. As palavras tornavam-se o seu alimento e não se deixavam eles tentar por qualquer outro, mesmo que de qualidade superior. Senti orgulho no poder que o contador exercia sobre os seus companheiros ouvintes. Eu considerei-os como meus irmãos mais velhos e sabedores. Era com um sentido de felicidade que dizia para comigo:
“Também eu serei capaz de reunir pessoas à minha volta, a quem contarei coisas! Também hei-de ser ouvido!” Mas em vez de errar de terra em terra, desconhecendo sempre quem irei encontrar, que ouvidos desconhecidos se abrirem para mim, em vez de viver da pura confiança na histórias que viesse a contar, foi minha vontade dedicar-me à escrita!”
Elias Canetti
«As Vozes de Marraquexe» é considerado por muitos críticos como um dos mais belos relatos de viagem da literatura europeia do século XX. O livro resulta de uma estada de três semanas em Marrocos com uma equipe de cineastas ingleses e que teve lugar em 1952. O autor que admite não se ter preparado para a viagem, estava decidido, no entanto, a sentir Marraquexe como a intensidade dos ventos do deserto. O seu propósito era mergulhar emocionalmente nos recônditos meandros de uma cultura tão estranha como fascinante. O seu método consistiu em deambular pela cidade e deixar-se guiar pelos cinco sentidos e pelo impacto com que os acontecimentos lhe marcavam a alma. O resultado é um magnífico mosaico que abarca os aromas do bazar, o mercado dos camelos, as lamentações encantatórias dos cegos pedintes, o curioso hábito de um cego pedinte mastigar longamente as moedas recebidas, as visitas à Mellah, o bairro judeu, e o conhecimento de uma de suas famílias, a fascinante atmosfera que circundava os contadores de histórias.
Este livro, algo singular na robusta e densa obra de Elias Canetti (1905-1994), vem confirmar a maestria do autor de obras monumentais como “Auto da Fé” (1935), “As Massas e o Poder” (1960) entre muitos outras. Autor de língua alemã, Elias Canetti, judeu sefardita, nasceu na Bulgária e viveu em Inglaterra a maior parte de sua vida. Pela originalidade da sua obra, Elias Canetti foi galardoado com o Prémio Nobel da Literatura de 1981.
Orfeu B.
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