quinta-feira, 8 de agosto de 2013

A História de um Sonho



Não me atormentavam sentimentos de piedade ou de preocupação a teu respeito. Sentia-me feliz por estar sozinha. Corri alegremente pelo prado, cantando uma melodia que ouvíramos no baile de máscaras. A minha voz era absolutamente maravilhosa e queria que as pessoas me ouvissem ao longe, em baixo, na cidade. Embora não conseguisse avistá-la, eu conhecia-a. Ficava distante, num plano muito abaixo daquele em que me encontrava, e era cercada por uma alta muralha. Um local admirável, difícil de descrever por palavras. Não era propriamente oriental, ou medieval. Era, sucessivamente, uma coisa e outra. Em todo o caso, tratava-se de uma cidade há muito irremediavelmente desaparecida. Inexplicavelmente, encontrava-me de novo no prado, deitada ao sol, muito mais bela do que na vida real. Depois, um homem saiu da floresta … 

Arthur Schnitzler.

"A História de um Sonho", romance do médico e psicólogo Vienense, Arthur Schnitzler (1862 - 1931), contemporâneo de Freud, é a obra que inspirou o último filme do cineasta norte-americano Stanley Kubrik (1928 - 1999), "Eyes Wide Shut" (De Olhos Bem Abertos). A transcrição muito próxima do texto, faz com que seja difícil lermos o livro sem cola-lo ao filme, apesar deste ter lugar Nova Iorque em finais do século XX, e o livro, em Viena no início do mesmo século. No romance, o autor conduz o leitor através da fronteira indefinida da matéria onírica com a realidade.

A narrativa começa com uma conversa do protagonista principal, o jovem médico Fridolin e a sua mulher Albertine, na qual descrevem as aparentemente inofensivas aventuras imaginárias de natureza erótica após um baile de Carnaval. Contudo, a conversa desencadeia um turbilhão de temas de inspiração freudiana envolvendo a morte, a sexualidade e o comportamento neurótico. Na verdade, a descrição e a leitura dos personagens é inevitavelmente freudiana. 

Um momento chave da narrativa é a descrição de um sonho de Albertine no qual ela é possuída por outro homem e o marido é crucificado, acontecimento que lhe provoca uma grande satisfação. Sonho que surge como uma vingança inconsciente às aventuras de Fridolin que na mesma noite tentou infiltrar-se numa sociedade secreta que praticava de forma ritual a libertinagem sexual.

"A História de um Sonho" é um texto fantástico de grande originalidade, cuja actualidade é bem demonstrada pelo relativo interesse que o filme de Kubrik suscitou. É também uma demonstração de que o elemento essencial da literatura é a imaginação, e que para esta, não há limites ou estilos narrativos. 

Orfeu B.
     


quarta-feira, 7 de agosto de 2013

AINDA AQUILINO - SEMPRE AQUILINO



Pintura de Abel Manta



O PRAZER DA LEITURA E OS MESTRES LIBERTADORES



«Sentado na borda do tanque, que uma figueira toldava de deleitável sombra, instruía-me o senhor padre Ambrósio da latinidade. Homem de muitas letras, já ruço, mas ainda de bom garbo nos seus setenta anos, sãos de alma e de corpo, antes de abrir Horácio, aprazia-lhe lembrar, num doce tom de iluminado:
-Nesta sítio, Libório, descansou o grande padre S. Francisco de jornada para Compostela. Reza a história que o servo de Deus vinha trilhado do caminho…» Assim começa a Via Sinuosa de Aquilino Ribeiro, um dos meus mais antigos mestres na arte da degustação literária.

Imaginem uma sala de uma casa na Beira, nos começos de 60 do século passado. Uma sala grande, teto em madeira com pranchas alternadas, duas janelas de guilhotina, semiabertas, e portadas interiores altas, meio cerradas contra a luz que vem da rua. Anda lá por fora um Agosto de brasa que até dói. Pelas ruas, àquela hora, poucos se atrevem. Num cadeirão de braços, com a luz coada, por detrás da cabeça para que não falte nas páginas, vou-me embrenhando pelo romance de Aquilino Ribeiro. Ou nas aventuras e desventuras de Libório Barradas, filho dos caseiros do Convento de Caria, mais tarde de S. Francisco, a iniciar-se no latim do padre Ambrósio, sem “amado mestre”, e nos amores, castos de Celidónia, uma das filha dos Violas, e nos pecaminosos, com Dona Estefânia, esposa do Malafaia, diplomata, do solar de Santa Maria das Águias. É aquela edição que foi imagem de marca da sua obra: capa creme, sem ilustração, badanas com informação discreta, formato de 15x20, frontispício austero. Tipo equilibrado, talvez “Times”, bem impresso, página folgada para a mancha de texto, margens largas, enfim uma edição que, sem ser de luxo, e afora o papel, que envelheceu mal, era muito digna e bem feita, boa de ler e de manusear, honrando os tipógrafos e a editora Bertrand.

São as férias grandes, os dias são enormes, tenho o tempo todo por minha conta e eu posso alongar-me por aquelas páginas, saborear as palavras, mesmo quando as não compreendo e tenho que reler, viajar por lugares, pessoas, acontecimentos e paisagens daquele Portugal profundo, nesse tempo ainda vivo. É o que se chama o prazer puro da leitura, o literário na sua especificidade verbal, que ninguém como Aquilino consegue dar, com ritmo próprio, sabor único, cor pessoal, enfim, a qualidade soberana dos seus textos, intraduzíveis noutras linguagens estéticas. E, portanto, a sensação estimulante de entrar num português da melhor água, e num processo em cadeia de que intuo a grandeza, e de que beneficio, apesar de ser o elo mais fraco: eu, pela mão de Aquilino, este, à sombra do seu bom padre-mestre, por sua vez na esteira de Horácio, Catulo, Cícero e de muito da cultura antiga que o enriqueceu e de que os seus livros tanto beneficiaram.

Dessas lições da juventude Aquilino guardou toda a vida uma devoção e um amor pelo seu «amado mestre», ou pelo «senhor padre-mestre», como sempre o designava, que chega a comover-nos. Não só na Via sinuosa, mas também em Uma luz ao longe e em Lápides partidas são muitas as ocasiões em que ele se refere, com respeito e profunda amizade, quase veneração, a quem lhe deu as bases da formação e do gosto.

E que depois continuou no Colégio Roseira, em Lamego, onde, segundo um belo texto evocativo do livro Arcas encoiradas, «aprendeu a ser gente». Aquilino Ribeiro, que em Lisboa se embrenhou nas ações republicanas contra a Monarquia e os Braganças, em atos mais ou menos revolucionários, é preso por posse de dinamite, consegue evadir-se, emigra, enfim, entra numa linha de aventuras mais ou menos rocambolescas e algo românticas.

Mas, passados anos, a evocação que fez dos seus primeiros professores, o seu “amado mestre”, ainda em casas dos pais, na Casa dos Terceiros do convento de S. Francisco, e depois os professores do Colégio de Lamego, chegam a comovedor, pelo que neles reconhece de qualidade humana, cultural e até científica (na matemática, por exemplo). Do professor de Matemática diz ele: «dos meus professores é o de matemática, Alfredo Vieira Cardoso, pequenino de corpo, mas de inteligência tão lúcida como discursiva, que conservo a mais grata lembrança. O jogo dos números com ele tornava-se uma prática agradável de compreensão, pelo que, não me acobardo de dizer, foi a claridade do seu pensamento, conjugado como rigor da linguagem algébrica, que me ensinou a pensar».



Pintura de Artur Bual

O que nos leva a reconhecer, mais uma vez, como se fosse preciso, o valor dessas tríades educativas hoje desvalorizadas, mas indispensáveis: um bom mestre, a qualidade do aluno e um ambiente que favorece a aprendizagem e a assimilação de valores sólidos. Que depois podem ser revistos e reformulados e até alterados em aspetos menores ou periféricos, mas que se mantêm para toda a vida no que diz respeito ao essencial. Ali, naquele colégio, e sobretudo pela ação de alguns professores, diz ele, «aprendi ainda a ser livre e a amar a liberdade, uma vez que nas próprias disciplinas em que bebia a ciência dos valores e das proporções, conforme a definição de Descartes, se me iam desenvolvendo as faculdades do raciocínio e da positividade, imunizadoras do indivíduo em matéria de preconceito».

São páginas de evocação respeitosa e até doce de vários professores desse colégio – quase todos padres. E é curioso como um homem que depois foi um declarado inimigo do regime salazarista, crítico da cleresia, muitas vezes de modo ácido, estrangeirado arejado e vivido, mantenha, muitos anos depois, o reconhecimento da qualidade humana e em muitos casos científica e cultural daqueles esquecidos clérigos do remoto colégio de Lamego, nos princípios do século XX.
«Esta colégio impunha-se como estabelecimento admirável e quero confessar que as minhas rémiges, pequenas como são, cresceram ali à medida do seu porte e do seu tamanho natural. Ninguém mas aparou nem se armou de tesouras para o fazer. Também não me contrafizeram a alma à mentira e à hipocrisia. Honra lhes seja. Saíamos direitos com aprumo ibérico…».

E quanto ao ambiente social, é também interessante ler o que diz de um colégio de padres no Lamego «afonsino» de 1900, dirigido pelo discreto e «modestíssimo» padre Alfredo: «No colégio não se cultivavam fanatismos, nem forneciam títulos a precedências, fidalguias ou altitudes sociais. Era um internato são e democrático. Mas também não se anarquizava ninguém. Deixavam a personalidade vingar no seu vero ser. Ao sabor da tradição, sem a planta dar conta».

Ao ler isto apanho-me a pensar, com alguma perturbação, no quanto todos nós, afinal, ficamos a dever a esses obscuros mestres do interior profundo de um Portugal perdido no tempo e na geografia, uma vez que foram eles que lançaram os caboucos dessa extraordinária herança que deixou à cultura e à literatura portuguesa a obra de Aquilino. Homem sólido, no verdadeiro sentido da palavra, mas com sensibilidade bastante para apreender a variedade do mundo e dos homens e capacidade suficiente para transformá-la em formas de grande beleza, por si só a sua obra fala dos seus educadores, ou, pelo menos, de alguns. Trabalho que não funcionou só com ele mas também com muitos dos seus colegas, como ele próprio reconhece no mesmo texto.

Uma boa educação não dispensa os grandes modelos e os elevados exemplos. Como diz Georges Gusdorf, nesse excelente livro que é o Professores, para quê? «o verdadeiro mestre reconhece-se a si mesmo como servidor e discípulo da verdade; convida os seus alunos a procurá-la pelo seu lado e segundo os seus próprios meios». Se alguma dúvida houvesse Aquilino Ribeiro, cuja obra há de sobreviver a marés e marinheiros, é disso um caso exemplo.

JOÃO BOAVIDA

sábado, 3 de agosto de 2013

A MATÉRIA DA VIDA


O leitor normal da obra de Manuel Alegre balança com muitas vezes entre prosa e poesia, com frequente queda para a poesia.

É óbvio também que Manuel Alegre não se coibe em deixar o poeta entrar pela prosa dentro para construir relatos que, tantas vezes, se descolam de um excessivo compromisso com o real para frequentar territórios outros, caminhos em que se misturam tempos, passados e futuros, concretos e fantásticos, reais e ficcionais.

Para a minha geração, a poesia de Manuel Alegre foi um caminho imprescindível, foi a Sierra Maestra da palavra, a festa do sentido, a partilha da música, o encontro da casa foi e será sempre a "Praça da Canção".

A poesia mais recente e a prosa de Manuel Alegre, sem deixarem o fogo da canção, vêm-nos falar da vida e dos tropeços próprios, dos caminhos e descaminhos da vida do poeta. Veja-se esse notável poema que é "Senhora das Tempestades" que é, quanto a mim, um dos grandes momentos da poesia portuguesa dos últimos decénios.

Muita da prosa de Manuel Alegre parte da sua vida e das questões que essa vida levanta, sonhos, utopias, amores, caminhos cruzados e descruzados, vida.

Sentimos essa vida a pulsar por dentro das palavras da narração. E gostamos que assim seja. Porque só pode falar da vida quem a viveu, como é o caso do poeta.

Neste "Tudo é e não é", que li de sopetão, o autor transforma-se num taumaturgo que pega em farrapos de memórias e tenta construir uma narrativa sabendo que as palavras constroem uma outra faceta, uma outra realidade, e que essa realidade foge aos dedos do escritor, para nos falar do que foi e logo para logo o transformar no que não foi.

O leitor vai atrás da Montanha Russa das palavras do narrador que procura narrar o inenarrável e vai enrolando sonhos e obsessões, baralhando tempos narrativos onde se cruzam os que nunca se cruzaram senão nas palavras que, entre o que é e não é, trabalham o sumo da memória.

Talvz esta seja a prosa mais ambiciosa de Manuel Alegre. E talvez também a mais complexa e difícil. Mas o escritor ganha a aposta e consegue dar-nos uma bela razão para acreditar que ler pode tornar-nos em pessoas mais inteiras, mais capazes de se questionarem a si próprias, mais dentro do tempo que lhes é dado viver.


segunda-feira, 29 de julho de 2013

UM ROMANCE ABSOLUTAMENTE "CAGALHOFEIRO"



O meu muito querido amigo Raúl Calado inventou há uns 50 ou 60 anos a palavra "Cagalhofeiro". Digo bem, inventou, porque depois de procurar em vários dicionários, incluindo o magnífico Houaiss, não a encontrei. E o Raúl usava e usa "cagalhafeiro" para caracterizar alguma coisa particularmente engraçada, divertida e até, mais do que isso, qualquer coisa que se torna algo subversiva pelo próprio uso do humor.

Ao ler este romance, a palavra que me veio desde o início para o caracterizar foi: "Cagalhofeiro". "A demanda de D. Fuas de Bragatela" é um romance absolutamente cagalhofeiro!

Há anos que o queria ler. Mas esgotou-se e só foi reeditado recentemente.

Paulo Moreiras é um dos escritores descobertos e trazidos à luz do dia pelo excepcional trabalho editorial de Maria do Rosário Pereira (excepcional editora além de notável poeta)

Foi na colecção que dirigia na velha Temas e Debates que Maria do Rosário deu a conhecer ao público português escritores como José Luís Peixoto, João Tordo e este mesmo Paulo Moreiras.

Esquecemo-nos muitas vezes do trabalhos dos editores. Trabalho invisível, paciente, teimoso. Trabalho de paixão. maria do Rosário trabalha agora na Leya com a intenção justamente de descobrir e apoiar novos escritores de grande qualidade.

Já tinha lido um outro romance de Paulo Moreiras, "O oiro dos corcundas". Agarrei-me finalmente à demanda de D. Fuas Bragatela e com que prazer.

Trata-se de um romance pícaro, excessivo, transbordante, que relata as aventuras e desventuras deste D. Fuas, nascido da miséria de um Portugal em pleno medievo final, séc XIV, no reinado de D Afonso IV.

Fuas, promovido a D. Fuas pelas suas artes de espertalhote e videirinho. Saltapocinhas, filho de alfaiate, neto de Xamoa, uma bêbada amante de um frade gordo, vítima dos acasos e desventuras da vida, saltimbanco, aprendiz de barbeiro, soldado e cozinheiro, trotamundos em busca de uma côdea ou de uma quimera, moço de mil trabalhos, quase escravo, ladrão de estrada, fujão, capaz do pior e do melhor,tornado médico autodidacta pelo roubo do estojo de um cirurgião, capaz de separar dois gémeos ligados pelas costas ou deixar um nobre sem teres nem naveres esperando de rabo para o ar a cura por um tremendo clistér.

As suas avnturas são deliciosas e seguem-se num sobe e desce de sucessos tão contraditórios quanto divertidos e excessivos como uma narrativa deste tidpo exige.

O romance é uma sequência notável de pequenas e grandes aventuras, Paulo Moreiras é um homm que sabe preparar a sua banca de trabalho. É notável a investigação que subjaz ao romance. Investigação de história, de época, de mentalidades e, talvez acima de tudo, de vocabulário usado com a conta e medida para nos dar a cor da época sem cortar o normal correr da leitura.

Resumindo: um romance absolutamente cagalhofeiro.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

AQUILINO RIBEIRO - 5O ANOS DEPOIS




Os autores – os melhores, diga-se – fazem eco dentro de nós, deixam rasto. Alguns ressoam na nossa memória e acompanham-nos pela vida fora. No meu caso, Aquilino é um deles. Dizer que comecei a interessar-me por ele em virtude da aura política que lhe veio do processo movido pelo Estado Novo, quando da publicação de Quando os lobos uivam, talvez seja exagero. É sabido como uma perseguição da PIDE salazarista dava ânimo a qualquer livro, mas Aquilino não precisava disso. A minha sedução pela sua obra é anterior. Quando comecei a ganhar gosto pelos livros, Aquilino era então um dos maiores nomes da nossa literatura, se não mesmo o maior, e daí a obrigação de o ler, o dever de o apreciar e o alegre esforço para alcançar esse nível e, consequentemente, essa satisfação, esse puro prazer. Aquilino exigia (e exige) esforço; mas qual o grande autor (o grande amor) que o não exige?
Há quem o acuse de falta de profundidade psicológica, de uma trama pouco densa e estimulante, de falta de dramaticidade nos seus romances, e até de um formalismo já algo tardio, e, portanto, serôdio. Talvez seja verdade. Não esquecer, porém, outros da mesma época, de grande qualidade, como Tomaz de Figueiredo, João de Araújo Correia, por exemplo, onde o que se manifesta é esse gosto da forma a traduzir uma realidade social e cultural muito forte e nítida, que se lhes impunha e que eles procuravam traduzir e recriar. É pois o tipo de argumento que, face à obra em causa, sempre me pareceu algo deslocado, difícil de integrar na realidade sistémica que, sobretudo no caso de Aquilino, o seu estilo impunha.
Porque ele não era fácil, hoje talvez ainda menos, mas o sabor da sua prosa valia (e vale) bem o trabalho de o ler, compensando-nos largamente de tudo. Não era de pressas. A sua ação pausada, as suas lentas e gongóricas descrições, os seus largos excursos eruditos ou evocativos, as suas sintaxes envolventes e de frases longas e, sobretudo, o seu léxico rico, vastíssimo, inesperado, inventivo, amiúde extravasando o melhor dicionário, entre o popular, o regionalista e o vernáculo, nunca esquecendo os clássicos, (traduzindo, vertendo) nem a latinidade, a sacralidade, a santanidade, e até a liturgia, com sua parafernália de ternos e expressões, numa mistura muito própria que a sua filigrana estilística única e inimitável exigia. Não era fácil, não. Mas deleitava.
Em Aquilino, como disse, o enredo, interessando talvez menos, não é, todavia o livro sem história à moda de alguns atuais, sobretudo da área do já antigo “novo romance”, ou do desconstrutivismo posterior. Não, o enredo existe e prende, mas é sempre submetido ao seu modo de contar, e este à exigência de uma sintaxe elaborada, frequentemente retorcida, ao seu vocabulário que não perde a oportunidade de pôr ao sol termos esquecidos, de endireitar outros, empenados pelo mau uso, de criar muitos, ali mesmo, para a necessidade do momento, e sempre sob a aba inspiradora de sabor oitocentista e setecentista, que as frases e as palavras evocam, e de uma ancestralidade que ressoa nas nossas reminiscências dir-se-ia que platónicas, se não fosse quase escandaloso dizê-lo hoje.
É pois uma escrita sempre subordinada ao classicismo da construção, à riqueza e originalidade do vocabulário, ao gosto de uma descrição que não permite uma prosa dinâmica, e menos ainda desestruturada e desconstruída que a literatura contemporânea nos veio propor. Aquilino Ribeiro é talvez o nosso último grande clássico. Mas, passados cinquenta anos sobre a sua morte, e depois de tanta experiência, de tantos experimentalismos, artísticos e outros, ainda bem que o foi, e valha-nos isso!


É pois um autor para ler devagar, que não se casa bem com a diluição atual duma certa identidade que foi tão nossa, nem com a desestruturação cultural a que se assiste, nem com muitas das regras gramaticais que a moderna literatura começou a praticar, ou a despraticar, nem com a aridez vocabular corrente, nem com a pesporrência da literatura televisiva dominante, nem com a incultura transformada em cultura, nem com o palavrório ininterrupto, embora construído com meia dúzia de palavras. Menos ainda com a moderna vertigem substitutiva dos estímulos, que tira o sabor à vida, e ainda menos com uma era de eletrónicas em que tudo desaparece no momento em que aparece, etc. etc. Nesta sentido Aquilino é hoje uma força conta a corrente, e, portanto, uma rocha a que nos podemos agarrar. Em suma, um autor com um valor educativo hoje altamente acrescentado.
É, por outro lado, a imagem dum Portugal que existiu, e de que pouco ou nada já resta: rural, pobre, política e economicamente injusto, mas ativo, habitado e animado, demograficamente vivo, humano e humilde, mas teso, finório e boçal, afável e velhaco, troca-tintas e honrado. Disso, desta mistura donde todos descendemos, Aquilino nos dá testemunhos através de tipos humanos inigualáveis, em inúmeras histórias e situações pitorescas, cruéis, hilariantes, traiçoeiras, amenas…
Mas o melhor de Aquilino está no gosto de descrever as paisagens beirãs, as aldeias, as festas, os trabalhos, as pessoas, os bichos; o amor na procura das raízes vocabulares e sintáticas, no trabalho da língua, de sentirmos o formão e a goiva da sua marcenaria fina afeiçoando uma madeira dura e macia, que deixa, depois de bem trabalhada, obra feita. Para durar. E perfeita. Aquilino Ribeiro é sobretudo um prosador, a gente sente-o a saborear o que escreve e a amar o que descreve e conta. E ao lê-lo, assim como mergulhamos numa portugalidade antiga que nos moldou os ossos e os sentimentos, para o melhor e o pior, e de que andamos esquecidos, ou a tentar fugir, cheios de prosápia, também usufruirmos de uma espécie de reorganização interior, uma reformulação de alma que todo o sentimento estético nos provoca e engrandece.
A grande literatura é essa forma incessante de nos reorganizarmos, de acrescentarmos ao que éramos uma outra nova e mais rica forma de ser, de sentir por nós dentro esse oxigénio que a funda enxada, cavando, fortalece, revigora e amacia. Ler Aquilino é mergulhar nesse Portugal desaparecido, rural, duro, resistente, devoto e anticlerical, macio e cruel, atrasado e finório, que era o mundo que foi o dos nossos pais, avós e tetravós. Para os mais novos é um modo de ter notícia desse tempo perdido, de conhecer os sentimentos, as vozes, os olhares, os valores estéticos e morais de que era feito, e, ao mesmo tempo, ter a experiência de um País profundo, ancestral, resultante da acumulação de muitos sedimentos de gentes, hábitos, culturas, lugares, ocorrências, e que é, desta terra pobre e castigada, muito da sua melhor herança. Se todos os portugueses, hoje, pudessem ler, gostar e interpretar Aquilino Ribeiro, pelo que significaria de amor à Pátria, de conhecimento dela e de sentido crítico para os seus defeitos e qualidades, que grande, que incomparável mudança nas mentalidades não sofreríamos todos.


João Boavida

quarta-feira, 10 de julho de 2013

E SE DELIRÁSSEMOS UM BOCADINHO GRANDE?



Há anos, uma amiga emprestou-me um livro de Eduardo Mendoza, escritor catalão multiuacetado. Fiquei fã. Já aqui falei de um exccelente romance seu, "Rixa de Gatos", coisa séria e intensa passada no início da Guerra Civil Espanhola em Madrid.

Entrei nesta história absolutamente delirante, passada em Barcelona e com um vago recorde policial em que tudo é levado a um alto nível de disparate e comicidade invulgar.

Bem sei que sou facilzinho no que diz respeito a emoções, sejam de lágrimas ou de gargalhadas. Mas há muito tempo que não dava comigo a rir desalmadamente durante uma leitura

Basicamente Eduardo Mendoza retoma a figura de um ex-presidiário e ex-internado num manicómio, agora cabeleireiro de senhoras sem clientes que vai tentar salvar um amigo, Rómulo, El Guapo, criminoso particularmente desastrado, que entrou num plano diabólico de um terrorista internacional para raptar Ândela Merkel em Barcelona.

O nosso herói vai tentar evitar o rapto e para isso conta com a colaboração de Juli, homem-estátua africano albino, Pollo Morgan também homem-estátua que faz uma magnífica Rainha Leonor de Portugal embora com bigode e ainda Moski, russa estalinista que toca concertina nas ruas e no metro.

Mas ainda há mais: Quesito, uma miúda de 13 anos que só Magnuns e é capaz de arrombar qualquer porta; Cândida, a irmã do nosso herói, ex-prostituta que tem como medalha de honra ter batido uma segóvia ao bispo de Tudela; um swami, mestre de ioga e meditação transcendental, um restaurante chamado VENDE-SE CÃO e cento e desasseis chineses vestidos de tiroleses, de batman e do que mais calhou, intitulando-se COLÓNIA ALEMÃ DE BARCELONA cagindo em bloco sob comando do dono do Bazar chinés "LA BAMBA".

Se esta discrição não chegar para vos aguçar o apetite, meus amigos, resta-vos uma magnífica carreira como carpideiras profissionais!

quarta-feira, 3 de julho de 2013

e os hipopótamos cozeram nos seus tanques



OS BARES FECHAM ÀS TRÊS DA MANHÃ NAS NOITES DE SÁBADO e por isso cheguei a casa por volta das 3.45 depois de tomar o pequeno-almoço no Riker’s na esquina da Christopher com a Sétima Avenida. Atirei o News e o Mirror para cima do sofá, despi o meu casaco de crepom às riscas e larguei-o em cima deles. Ia direito para a cama.


Nesse momento, a campainha tocou. É uma campainha estridente que fura os ouvidos e por isso corri rapidamente para carregar no botão que abre a porta da rua. Depois tirei o casaco do sofá, pendurei-o numa cadeira para que ninguém pudesse sentar-se em cima dele e meti os jornais numa gaveta. Queria ter a certeza de os ter ali quando acordasse de manhã. A seguir atravessei a sala e abri a porta. Calculei o tempo precisamente para que não tivessem oportunidade e bater.

Entraram quatro pessoas. Agora vou dizer-vos por alto quem eram essas pessoas e que aspecto tinham, uma vez que esta história é quase toda acerca de duas delas.

William S. Burroughs & Jack Kerouac


Uma descrição dos acontecimentos que conduziram ao crime passional e que em certa medida foi a centelha original dos escritores Beats, William S. Burroughs (1914-1997), Jack Kerouac (1922-1969) e Allen Ginsberg (1926-1997). Escrito a meias por Burroughs e Kerouac em 1945, em capítulos quase alternados assinados por Will Dennison (Burroughs) e Mike Ryko (Kerouac), o manuscrito esteve perdido no espólio de Kerouac durante 60 anos e só foi publicado em 2008. Um livro que não sendo uma obra prima tem interesse do ponto vista histórico e sociológico. Um relato sobre os acontecimentos romanceados que antecederam um crime passional que teve lugar em Nova Iorque no final da II Grande Guerra e que envolveu dois homens, ambos amigos dos autores e de Ginsberg. Num estilo existencialista, podemos ler a descrição de vidas vazias, pontuadas pela indolência, pelo alcoolismo, pelo consumo de drogas e por relações hetero, homo e bissexuais complicadas, e claramente infelizes e frustradas. O crime passional é resultado da tensão e da ambiguidade destas relações. 

É interessante referir que este crime foi retratado no seu tempo com sensacionalismo e fez parte, durante alguns anos, da cultura urbana de Nova Iorque. Merece ser também mencionado que foi a reacção extremamente negativa dos professores e mentores de Ginsberg que o demoveram da intenção de escrever ele também o seu relato dos acontecimentos.  

Recordemos que este manuscrito antecede em muitos anos "Howl and Other Poems" (1956) de Ginsberg, "On the Road" (1957) de Kerouac e "Naked Lunch" (1959) de Burroughs, livros que são inquestionavelmente os mais marcantes e emblemáticos da Beat generation. Percebe-se com este "E os Hipopótamos Cozeram nos seus Tanques", que o romantismo em que estão envoltos os escritores desta geração é largamente exagerado. 

A obra, que em Portugal é editada pela Quetzal, conta também com um esclarecedor posfácio do editor nova-iorquino James Grauerholz. 

Orfeu B.     




O TEATRO DA LEI


Com a prática deste blog tenho descoberto a distância que vai da leitura à escrita. E também como a escrita nos ajuda a consolidar a leitura. Quando lemos com o propósito de vir a escrver, mesmo que seja só para consumo própio, somos obrigados a ir mais fundo que o simples entretenimento

Por isso este exercício se torna por vezes difícil de manter sobretudo quando o dia-a-dia é balburdento e o tempo escasseia

A leitura não a deixo. Mas quando quero parar para escrever, ao fim do dia, não me sobra a felicidade da preguiça tão importante para estruturar o escrito. Por isso se acumulam as leituras com que quero infectar os amigos e os leitores deste blog e escaseia o tempo para tornar esse desejo em palavra escrita.

Parece que agora o tempo chegou Tenho muitos livros lidos de que quero falar. Pequenos e grandes prazeres que quero partilhar. E começo por "Os dois irmãos" do meu amigo Germano de Almeida.

Por volta sw 1976, a seguir à ind, deixando Maria Joana, a jovem esposa, na aldeia. Ao longo do tempo, André vai-ze afastando

3 anos depois recebe uma carta do pai a anunciar-lhe que o irmão mais novo se envolveu com Maria Joana desonrando assim não só o marido como toda a família.

André tem uma ternura especial pelo irmão e regressa à aldeia para tentar encontrar alguma solução pacificadora. Mas toda a aldeia, começar pelo pai, lhe exige que mate o irmão.

21 dias depois de regressar, André mata o irmão e é levado a tribunal acusado de fratricídio.

A narrativa é conduzida com mão de mestre por Germano de Almeida, num balanço que vai do julgamento aos acontecimentos que o provocaram e confronta as várias versões e testemunhos com a verdade, ou a possível verdade, na busca da resposta à grande dúvida: até que ponto André terá sido apenas a mão de uma justiça ancestral que se recusa a conjugar-se com os critérios de uma justiça moderna. E se André terá porventura de ser condenado à luz da justiça oficial, tornar-se-á um herói perante a sua famúilia e a sua aldeia.

A história é baseado em factos verídicos e Germano de Almeida foi na realidade o agente do Ministério Público que fez a acusação ao fratricida.

O que é brilhante é ter conseguido construir uma história concentrada e multifacetada, com um ritmo que nos agarra pelos colarinhos e que mostra como se pode narrar histórias verídicos não do lado da estrita realidade jornalística mas do lado do puro talento talento e da arte literária.


segunda-feira, 1 de julho de 2013

"Estamos sós com tudo aquilo que amamos" Novalis

Leituras de Verão... Respigando bibliotecas.


O Tempo Esquecido”

de Anita Brookner.
Difel


A boa escrita de Anita Brookner que prende e desconcerta. Como se, até na sombra de dentro de casa, confortavelmente sentados numa voltaire, com água fresca ao lado, nos assolasse o sufoco e o cansaço de percorrer ruas em abafadas e quentes tardes de Verão. 

sexta-feira, 7 de junho de 2013

A Vítima




Há noites em que Nova Iorque é tão quente como Banguecoque. É como se o continente inteiro saísse do seu lugar e deslizasse para mais perto do equador, o implacável e cinzento Atlântico se tornasse verde e tropical e as pessoas que enchem as ruas se transformassem em bárbaros felás no meio dos majestosos monumentos da sua fé, cujas luzes, numa profusão estonteante, se fundiam incessantemente com o calor do céu. 

Numa dessas noites Asa Leventhal apeou-se apressadamente de um comboio na Terceira Avenida. Absorto em pensamentos, quase ia deixando passar a sua paragem. Quando a reconheceu deu um salto e gritou ao condutor:

- Eh, aguente aí, espere um minuto! 

Saul Bellow



Asa Leventhal é o protagonista deste romance de 1947, escrito numa linguagem directa e desprovida de ornamentos, muito ao estilo dos grandes romancistas norte-americanos, Hemingway, Faulkner e Steinbeck. Sendo um dos seus primeiros romances, parece-me inevitável que o autor de obras primas como Herzog, Jerusalém ida e volta, O planeta do senhor Samler, tenha sido influenciado pelos grandes romancistas do seu tempo. Porém, há neste romance, o embrião dum estilo muito próprio e da abordagem temática que permeia toda a obra de Bellow, nomeadamente a instabilidade psicológica dos personagens que não escapam à fricção da cultura europeia dos judeus radicados nos Estados Unidos e a cultura fluída, mutante e em contínuo estado de auto-destruição e reconstrução que caracteriza as correntes sociais duma América multi-cultural. 

Asa Leventhal é um desses personagens. Por trás da forma concreta e directa como aborda a vida e os seus problemas, há um homem emocionalmente frágil, extremamente dependente duma rotina invariante e com uma obsessão muito judaica de agir correctamente e de não causar o mal. Quando durante a ausência da esposa num longo e escaldante Verão recebe a visita dum conhecido que há muitos anos o havia proposta para um emprego e que agora o culpa por ter perdido o emprego, Asa é incapaz de defender-se da acusação e deixa-se enredar numa vil e despropositada chantagem.

Um livro dotado duma subtileza psicológica muito refinada, e embora não sendo uma das obras mais importantes do autor, permite-nos ter uma excelente perspectiva da evolução estilística e das preocupações deste grande autor norte-americano, Prémio Nobel de Literatura de 1976.          

Naturalmente, a obra de Bellow é muito bem conhecida e objecto de estudo em vários contextos, porém parece-me particularmente interessante a sinopse comentada da obra de Bellow por outro grande escritor norte-americano, Philip Roth:


Orfeu B.
     



sábado, 18 de maio de 2013

Teorema


Não são as coisas que parecem mais certas e simples
que se revelam, em conclusão, mais obscuras e difíceis?
Não é a própria vida, na sua naturalidade, 
que é misteriosa - e não as suas complicações?


Actualmente
lê O Banquete … Pode fazê-lo?
inteiramente de forma impune?
Enfim, na minha família, todos vivemos
na existência como ela deve ser;
as ideias através das quais nos julgamos a nós próprios
e aos outros, os valores e os acontecimentos,
são, como costuma dizer-se, um património comum 
a todo o nosso mundo social.


Ele doou aos operários a sua fábrica; vocês são agora os seus proprietários: mas não vos humilha o facto de terem recebido esta doação?

A participação no poder sobre a fábrica, obtida através de uma série de doações - ou melhor dizendo concessões - onde pode conduzir a classe operária?

A mutação do homem em pequena burguesia seria total?


Pier Paolo Pasolini

Depois de ver o intrigante filme, ler o livro, passados mais de 35 anos não deixa de ser experiência invulgar. Mas a perspectiva temporal não apaga a indelével marca da impressão inicial. Alguma surpresa inesperada? Não exactamente, pois quando se trata de um dos mais provocantes filmes do mestre do cinema italiano, Pier Paolo Pasolini, a surpresa é uma constante e já o sabíamos à partida. A inteligência do encenador e poeta nunca cessa de nos surpreender. Teorema, do grego, "exibição", "intuição" ou "teorema no sentido matemático", foi produzido em 1968, com roteiro do encenador; o livro surgiu anos mais tarde, e subsequentemente, o texto deu origem a uma ópera de Giorgio Battistelli e a uma peça de teatro em Holanda. 

O texto aborda a crise estrutural do capitalismo (que só hoje percebemos quão profunda) do ponto de vista da sua célula mais básica: a família. A acção tem lugar numa família da alta burguesia de Milão que ao receber um hóspede, colega do filho, vivência um processo de irreversível dissolução. O jovem hóspede seduz toda a família, a criada, o filho, a filha, a mãe e o pai, transformando-lhes no processo o sentido de suas existências. Pasolini pretende demonstrar que um relacionamento regulado pela pulsão básica do sexo, liberta os personagens dos condicionantes subjacentes à sociedade de classes, pondo a nu a fragilidade e a artificialidade da ordem burguesa. O relacionamento com o jovem, desarticula a identidade burguesa dos personagens e a transformação decorrente é necessariamente de ruptura. O pai decide doar aos seus operários a fábrica que lhe pertencia e alterar a sua orientação sexual. O filho procura encontrar uma nova identidade através da negação do que lhe estava anteriormente reservado por conta da sua situação sócio-económica e ser artista plástico. A filha fica paralisada, com o punho cerrado para não perder as suas lembranças mais fundamentais. A mãe mergulha na tristeza e em aventuras amorosas com homens mais novos. A criada volta à sua aldeia e entrega-se à sua religiosidade febril e auto-destrutiva.

Mas Pasolini, com a genialidade que lhe era característica, não nos permite  extrair da trama interpretações mono-cromáticas. De facto, apesar de ser essencialmente marxista a análise sobre a esterilidade da ordem burguesa, a leitura de Pasolini da realidade é mais rica e tem uma clara vertente de sacralização. Os personagens da trama são "tocados", "iluminados" pela presença e pelo relacionamento com o enigmático visitante. O gesto do industrial, paterfamilias e detentor dos meios de produção, tem a dimensão mística do despojamento auto-imposto de Buda, Francisco de Assis e outros. A religiosidade da criada é um retorno ao culto primitivo do milagre e da sua associação à auto-flagelação. 

Também na sua forma, o livro de Pasolini, não deixa de ser invulgar, dado que o texto é pontuado por belos poemas que guiam o leitor ao longo da narrativa. Um texto de invulgar beleza, cuja conclusão parece-me ser a mais óbvia: a inteligência e a sensibilidade de artistas como Pasolini fazem-nos muita falta.     

Orfeu B.



domingo, 12 de maio de 2013

LONDRES OU UMA VASTA CONSPIRAÇÃO PARA DESORIENTAR OS ESTRANGEIROS





Carlos Vaz Marques é o director desta magnífica colecção de livros sobre viagens, não das de turismo mas das outras, das que se fazem por dentro do coração, da inquietação, da curiosidade.

Enric González é jornalista e foi correspondente do El País durante vários anos em Londres. E sobre a cidade diz-nos ele:

"Há cidades belas e cruéis como Paris. Ou elegantes e cépticas, como Roma. Ou densas e obsessivas como Nova Iorque. Londres não pode ser reduzida a antropomorfismos."

Neste livro delicioso, que se lê de uma assentada, o autor passeia pelo espaço fíisico de Londres, ruas e praças, pubs e estações de Metro, museus e catacumbas. E viaja também pela História desta cidade mítica e tão cheia de História como de histórias e de literatura.

Com um notável sentido de humor, Enric González brinca com o que vê e ouve e, se o seu olhar vem de fora, a sua palavra mergulha apaixonadamente nos dédalos arquitectónicos e humanos da cidade para lhe cantar uma bela balada de amor.

Procure-se a a lógica de Londres e certamente não a encontraremos. González cita George Mikes quando afirma que:

"É preciso ter consciência de que uma cidade inglesa é uma vasta conspiração para desorientar os estrangeiros."

E conclui que:

"São precisos muitos passeios para percebermos a harmonia secreta dentro do caos."

O livro resume esses passeios que nos vão revelando o crescimento da cidade no tempo e as diferenças que vão caracterizando bairros e populações. E também nos leva pela organização espafúrdia da Casa Real, pelas origens dos Clubes de Futebol Londrinos, pelas histórias de Jack o Estripador, pela destruição do sistema de saúde inglês pela política ultra-liberal de Margaret Thatcher, pela estrutura e organização política do parlamento inglês, pelas ruas da City onde se resolvem os negócios do mundo, pelos pubs e pala diversidade de cervejas e whiskies, pelos hábitos e natureza da Igreja Anglicana, pelas memórias do período de ouro imperial que foi o do reinado da Rainha Vitória.

E de tudo podemos extrair uma atitude de ironia, de curiosidade, de estranheza, de respeito pela diferença. É assim que se conhece o mundo. Pelos nossos pés e também pela arte da narrativa de autores como Enric González.

(E a propósito, Carlos Vaz Marques diz-nos na introdução que há mais dois livros do mesmo autor com os títulos de "Histórias de Roma" e "Histórias de Nova Iorque", tendio este último recebido grandes e raros elogios de Joé Saramago. Fico ansioso pela tradução para português. Senão lá terei de os mandar vir de Espanha. Carlos, faça o favor de se antecipar e publique-os na sua colecção)



quarta-feira, 8 de maio de 2013

À BEIRA DA LIBERDADE





grande História é feita de muitas pequenas histórias.

Falamos do 25 de Abril, da maravilhosa chegada da liberdade, da festa de podermos falar abertamente uns com os outros, de nos abraçarmos e de sonharmos por vezes de formas abstrusas e delirantes, mas também esses delírios faziam parte da descoberta de um país que estava há 48 anos debaixo do ferro da ditadura. Da memória desses dias faz parte também o momento em que se abrem as portas das prisões onde imperava a tortura e o medo.

A História tudo isso vai registando com imagens, textos, análises.

Mas, a Joana Pereira Bastos não é historiadora, é jornalista. Está interessada nas pequenas histórias de que é feita a grande História. Histórias pessoais de alguns homens e mulheres que foram presos poucos meses ou poucas semanas antes do 25 de Abril e encerrados em Caxias numa altura em que a repressão se intensificava porque também a resistência crescia a olhos vistos.

A autora priveligia a emoção no seu processo narrativo. O lá por dentro dos que sofreram a tortura e depois se calaram porque muitos deles ainda hoje têm pesadelos, insónias, alterações psíquicas permanentes que os fazem tentar calar e esquecer a extrema dureza de uma polícia, a PIDE, que foi muitíssimo eficaz na destruição das pessoas que agrediu, torturou e humilhou.

É o documento humano que nos arrasta num apaixonante entretecer de dados factuais e relatos pessoais. A descrição das torturas, estátua, sono, agressões brutais. Documento precioso. Eu que o diga. Podia lá ter estado nesses dias. Companheiros meus por lá passaram. Vários dos presos de que o livro fala são amigos queridos. Nuno Teotónio Pereira, Conceição Moita, Luís Moita, José Manuel Tengarrinha... Tremi ao conhecer a história deles, o terror por que viveram, as dores que tiveram, as angústias por que passaram.

Poderia aqui trazer um sem número de pormenores mas recordo dois momentos que me emocionaram de forma diferente.

Durante o dia 25 de Abril, eles souberam que tinha havido uma revolução. Mas continuavam fechados e vários deles pensaram que podia tratar-se de um golpe de extrema-direita, uma "pinochetada". Durante a noite de 25 para 26 vários se prepararam mentalmente para enfrentar o fuzilamento. E só no fim do dia 26, já madrugada de 27, é que os portões se abriram para um tempo novo e tão esperado.

Outro momento, uma narrativa notável de um ex-preso que anos depois entra num restaurante e dá com o PIDE que o torturara a almoçar com a família. Vai ao carro buscar uma pistola para o matar. Quando regressa ao restaurante o PIDE já se tinha ido embora.

A democracia e a liberdade acabaram com as grades mas não com as dores e essas é bom que fiquem guardadas na nemória.

Obrigado Joana.

domingo, 5 de maio de 2013

A FORMA COMO SE ESCREVE



Há cerca de 30 anos, mais coisa menos coisa, o encenador José Caldas encenou esta "Vida íntima de Laura" no TAS de Setúbal. Não pude ver. Lamento. Mas fiquei com esta Laura na caixinha da minha curiosidade, um texto de Clarice Lispector.

Vi um outro espectáculo encenado por José Caldas, um dos espectáculos que mais me emocionou na vida: "Acende a noite" a partir de textos de Ray Bradbury.

Há poucos dias soube que é ele que vai encenar um texto meu ("El hombre") para o Teatro Jangada de Lousada. Que bom!

Penso nestas ligações misteriosas que a vida tece quando pego, quase religiosamente, na edição portuguesa de "A vida íntima de Laura" e a leio avidamente.

Por vezes, tão ou mais importante do que aquilo que se escreve é a forma como se escreve. "A vida íntima de Laura" é um exemplo excepcional da importância que tem a forma de contar de uma das mais notáveis escritoras da língua portuguesa do séc XX

Laura é uma galinha vulgar, simpática, com um pescoço muito feio, burra, que não pensa mas pensa que pensa, casada com o galo Luís que gosta muito dela.

Nesta história vulgar Clarice dialogando directamente com o leitor, inventando o leitor, faz dele um cúmplice na forma divertida e um tanto blasé como conta a vida de Laura sem nenhuma cedência ao mau gosto, ao bonitinho, ao didactismo. Nomeadamente levantando a possibilidade de Laura, a simpática Laura, acabar na panela no meio de molho pardo.

As ilustrações são deliciosas, amáveis. Se se pode dizer isso de um traço, de uma paleta de cores, de uma forma de ocupar a página.

E há que elogiar a editora, Relógio d'Água, pela edição de quatro dos livros de Clarice Lispector para crianças que são exemplares e que deveriam ser lidos atentamente por muitos dos nossos escritores para a infância



quarta-feira, 1 de maio de 2013

No Jardim das Paixões Extintas



Um quarto de século passado sobre os dias plenos da liberdade e do caos - a semana mais romântica do meu namoro com a história, entre o 25 de Abril e o 1º de Maio de 1974 -, a memória trai-me, envolta na neblina melancólica das utopias mortas, tristes flores murchando no jardim das paixões extintas, folhas caídas sobre o caminho por onde vou, no surpreendente encantamento do último amor e da sua dorida subversão. Então, eu imaginava a semelhança com a outra cidade feliz, a do meu pai - Madrid na Primavera de 1936 -, outra pura ilusão que ele não me tinha contado, porque ainda não chegara ao fim do seu regresso à beira do Tejo, do começo da despedida e da imperfeita reconstrução da memória estilhaçada. 


Os tempos são outros … A realidade empurra-nos subitamente para o vazio a abarrotar de coisas, para o excesso, para o totalitarismo do dinheiro, do sexo, para o mimetismo, a indiferença, os riscos da salvação possível no instante em que se tornou a vida, essa certeza plena de presente, única e absoluta face do tempo.

Álvaro Guerra 


Um impressionante relato sobre a vida de personagens que protagonizaram o combate mortal entre o fascismo e o comunismo no século XX pela pena do jornalista, diploma e escritor Álvaro Guerra (1936-2002). Uma densa trama histórica e emocional descrita por um jornalista, alter ego do relato, que deslinda, através das memórias filtradas do pai, militante comunista e combatente pela causa republicana em Espanha, a forte ligação entre a paixão amorosa por uma combatente espanhola e a devoção pelo internacionalismo comunista. 

Uma intensa radiografia emocional da guerra civil espanhola, da crueldade franquista e do maquiavelismo estalinista; uma rica descrição da paixão carnal e da sua colagem à precariedade de vidas suspensas por uma guerra sangrenta num mundo encalhado no beco mais escuro da História. Uma descrição quase analítica da transformação das paixões até atingirem o hodierno hedonismo desprovido de dimensão histórica. Um retrato pungente das forças criativas libertas pelo 25 de Abril e da sua dissipação no individualismo e no consumismo. 

No Jardim das Paixões Extintas é indubitavelmente uma obra maior da literatura portuguesa contemporânea, um livro imprescindível para se compreender a dimensão trágica do mais conturbado século da História da  Humanidade.    

Orfeu B.


sábado, 27 de abril de 2013

MEMÓRIA DOCE E VIBRANTE





È uma obra muito interessante este livro de Memórias da Eugénio Lisboa, (Acta Est Fabula, Memórias I - Lourenço Marques, 1930 – 1947. Guimarães, Opera Omnia, 2012), dedicado tão sentidamente à cidade de Lourenço Marques que chega a agradecer-lhe o «ter existido para eu ter podido nascer nela», como diz no fim dos iniciais “Agradecimentos”. Chegado a uma certa idade, como diz Eugénio Lisboa, sentiu uma vontade irresistível de escrever as suas memórias mais recuadas, para seu gosto pessoal, pelo puro prazer de o fazer e sem outros intuitos que este seu deleite, considerando, por isso, que poucos ou nenhuns se interessarão por este trabalho. Penso que se engana. Primeiro, porque é difícil ceder às memórias quando elas, com o tempo, se vão decantando, ganhando tanta nitidez que têm que se expressar de alguma maneira, de tal modo sentimos que, nelas, está mais do que a nossa vida, somos nós mesmo que pelas memórias se redime de qualquer coisa que toda a vida nos apelou, mas que acaba quase sempre por nos escapar. E, portanto, o sentimento que o levou a revivê-las será compreendido por todos os que passaram uma certa etapa da vida, e isso é já uma boa razão. E em segundo lugar, porque elas acabam frequentemente por ser muito mais do que simples revivências pessoais, como é manifestamente o caso. Todos terão as suas, importantes e de muito interesse para a vida de cada um, mas algumas adquirem valor maior, ou pela riqueza própria ou pelo modo como são contadas. De facto, há muitos livros de memórias, mas mais do que o valor delas para o próprio, interessa a qualidade que alcancem. Felizes os que são capazes de as traduzir em formas de beleza ou de interesse suficiente para proveito próprio e alheio.

É certo que não se sente uma grande preocupação formal em Eugénio Lisboa, mas, mesmo que aqui e ali sejam algo coloquiais, (em expressões a propósito, diga-se) sempre prevalece a qualidade e a riqueza a que nos habituou, o seu estilo rico, dinâmico, enredado e cativante. E que acaba por casar muito bem com o que nos quer contar, ganhando assim uma segunda razão a publicação delas. É que as suas memórias são vivas, sentidas, luminosas, quentes, por um lado, e, por outro, cheias de referências que, só por si, são motivo de meditação nos tempos que correm, além de poderem servir de proveito e exemplo para muitos distraídos.



Há um primeiro aspeto que vale a pena referir. Eu não vivi na Lourenço Marques daqueles tempo, (nem depois; nunca lá estive) mas consegui sentir e “ver”muito daquilo que nos relata: o clima, as cores, os cheiros, os mercados indígenas, o Índico e suas praias, os baldios do futebol, os dias imensos das férias, em suma, essa sedução de África, que sentiram todos os que por lá passaram, ou lá nasceram, e que lhes ficou para sempre na alma. Assistimos, por outro lado, ao seu despertar para a vida, ao nascimento da sua consciência crítica, às primeiras evidências da estratificação social, que ele (e família) sentiram, pertencentes a um estatuto algo ambíguo entre os africanos do musseque e os brancos da Polana, entre o povo e os snobs, sentindo-se por isso um pouco estrangeiro entre os meninos do liceu, algo tolerado pela sua modéstia económica. Mas honrado e demasiado inteligente para ouvir o ímpeto da sua vontade e perceber a sua superioridade em relação a quase todos os colegas. Capaz, portanto, de desenvolver a força do seu sonho de futuro, intelectual, cultural e científico, numa Europa longínqua e então mítica, empolgado pela ideia de uma missão muito pessoal, embora indefinível, coisa corrente entre os adolescentes mais dotados. Assim, a sua condição de branco com poucas posses, vivendo longe da zona fina da cidade, acabou por lhe proporcionar a sorte de uma multiculturalidade, intercultural e transcultural, digamos assim, com todos os ingredientes de uma formação vivida, e estruturante, porque sem ressentimentos nem invejas, que a própria inteligência e sucesso escolar impedem, proporcionando, ao mesmo tempo, a capacidade de tirar dos dois lados o melhor que cada um tinha e assim superar a ambos.

Mais interessante ainda é acompanharmos o itinerário humano e cultural de Eugénio Lisboa, até pelo grande ensinamento para hoje. Sobretudo seguir a galeria das suas personagens e a ordem de aparecimento dos autores da sua formação, e que, para sempre, lhe serviram de referência. Os personagens, para além de alguns familiares, que ele fotografa bastante bem em ângulos afetivos e críticos, os exóticos ou típicos, aqueles que habitam a nossa juventude e que, ao fim de muitos anos, nos parecem quase irreais, como se nunca tivessem existido. Mas também, e sobretudo, a galeria dos seus professores. O rigor com que os descreve, mas de um modo muito humano e compreensivo chega a ser comovedor. E mostra-nos, - como se o não soubéssemos ainda – como os grandes professores marcam a nossa vida de uma maneira indelével e são os esteios de muito do que de bom e de valioso podemos vir a ser mais tarde. Há ali páginas muito belas, de ternura e agradecimento para alguns dos seus melhores professores da instrução primário e do liceu. E também outras muito críticas para com os maus, os balofos e os pérfidos, que também os havia, como se sabe.

Finalmente, é muito interessante seguir a descrição que nos faz do seu itinerário literário, o gosto pelos livros e o pouco dinheiro para os comprar, o “namoro” das montras das livrarias, a “Minerva Central”, a “Progresso” (ah, como eu o compreendo!) o aparecimento dos autores e as marcas que iam deixando numa personalidade em formação: Herculano, Garrett, Júlio Dinis, e depois e sobretudo Stendhal, e a perturbação dos americanos, Mark Twain, Hemingway, Faulkner, Sorayan e de novo os europeus, Óscar Wilde, Gide, Proust, Roger Martin du Gard, George Eliot, Dickens, Charlotte Brontë, e José Régio, claro! E doutros mais ligeiros, (por que não?) algum Emílio Salgari, Júlio Verne, Condessa de Segür, etc. E sempre novos autores, novas experiências e a consciência crescente desse campo riquíssimo, contraditório e inesgotável que é a grande literatura. Eugénio Lisboa levou-me a sentir de novo, embora por outras paragens e a uma geração de distância, a sedução dos autores, o cheiro dos livros, certas palavras mágicas como “Portugália Editora”, “Editorial Gleba”, “Livros do Brasil”,“Editorial Inquérito”, “Romances Universais” e a perturbação de certas obras, a experiência funda e fecunda que causam numa personalidade em formação.
Por tudo isto é muito interessante ver como ele reconhece a importância determinante que os grandes autores tiveram na sua formação. Pudera! Todo o livro é a veemente afirmação disso. Cito, a propósito (p. 142): «O 6º ano do liceu começou, como de costume, em Setembro (de 1945). Encontrava-me mais forte, mais desenvolto. Ter passado incólume pelas tragédias de O’Neill tinha-me fortalecido. “Atravessar” aquilo, sem ficar chamuscado, pelo contrário, sentir que algo dentro de mim se “lavara” e me purificara e fortalecia - dava-me uma sensação de confiança e de força». “Diz-me o que lês (ou leste) dir-te-ei quem és”, é uma das maiores verdades que se pode dizer sobre educação e formação em geral. Estranho é que haja gente, com responsabilidades educativas, que não o saiba. A profundidade humana, a riqueza e a complexidade das pessoas e das situações, os dramas, a experiência condensada que proporcionam, a libertação pela imaginação, a fruição da beleza e a plenitude que as grandes obras proporcionam, como é que se pode formar um ser humano sem tudo isto? E como é que esta riqueza inesgotável e esta experiência se podem substituir por resumos, súmulas, sinopses e outros miseráveis sucedâneos que por aí andam? E que até podem dar para tirar boas notas, mas que deixam pelo caminho seres planos, sem profundidade nem densidade, eternamente “inocentes”, mas convencidos, imaturos mas desde logo cediços, e acima de tudo indiferentes à beleza e sem perceberem o tudo que perdem. Nada substitui a leitura dos grandes mestres, como é possível que tanta gente “responsável” o não saiba e o não pratique? Como é possível que no nosso ensino se estejam a substituir os grandes autores pelos simulacros?

João Boavida

sábado, 13 de abril de 2013

POESIA - UM RESUMO



Já não é o primeiro ano em que a FNAC edita uma colecânea de poesia publicada no ano anterior e escolhida quatro poetas de diferentes gerações e diferentes gostos, imagino: Armando Silva Carvalho, José Alberto Oliveira, Luís Miguel Queirós, Manuel De Freitas

É o resumo do ano e se não estou em erro este tipo de antologia era feita também no início dos anos 70. Só não recordo quem a editava nem quem eram os antologiadore (talvez o Egito Gonçalves entre outros).

Uma antologia é um material precioso pelo que escolhe tanto quanto pelo que exclui. Neste "RESUMO" estão presentes cânones próximos, caminhos não excessivamente divergentes, vozes de alguma forma consonantes no trabalho poético que se afasta da metáfora, talvez até nalguns casos da própria dimensão estética, para privilegiar poemas que mergulham sobretudo na circunstância, no momento, no pequeno acontecimento que ganha inesperada proeminência pela própria escrita poética.

Devo dizer que adoro antologias. São um material de trabalho excelente. Ficam sempre como pontos de referência pelo que escolhem e pelo que excluem.

Neste "RESUMO" podemos ter uma ideia de quem são alguns dos poetas mais jovens em acção e como se cruzam ou não com outras gerações e outros caminhos.

A poesia portuguesa precisa destas publicações. E doutras a partir de outros cânones. Por que a poesia é feita de caminhos diversos que se tornam significativos na confrontação de vozes e silêncios, de éticas e estéticas, da relação mais próxima ou mais longínqua com aquilo a que se possa chamar público.

Hoje muita da mais jovem poesia vagueia pela net e por pequeníssimas edições. Para que não aconteça aquilo de que Alexandre O'Neill falava num poema que era:

"Quem nos lê a nós? São vocês.
Quem vos lê a vocês? Somos nós.
por isso fica tudo entre nós entre nós."

domingo, 24 de março de 2013

(...)/Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando./Prefiro ponderar a própria possibilidade/do ser ter sua razão.//Wislawa Szymborsk



“Outras Cores” de Orhan Pamuk
Ensaios sobre a Vida, a Arte, os Livros e as Cidades.
Editorial Presença



Há livros que lemos num sopro, cumprem o seu papel no tempo mais superficial ou profundo da sua agradável  leitura e vão para a estante. Alguns regressam, outros só nos passam pelas mãos em limpezas de pó. Há os que, para lá da sua importância literária, marcam um lugar e um tempo. Alguns são lidos em tempos longos. Pegamos neles e largamo-los ao sabor da nossa disposição, de tarefas, de outros livros que  se atravessam, de outras urgências maiores que nossa vontade. 
Há livros para voltar, para carregar em todas as mudanças, para falar deles aos filhos mesmo que, aparentemente, não nos ouçam, porque na vida não levamos mais nada do aquilo que temos, inexplicavelmente, dentro de nós, quando partimos de um lugar.

“Outras Cores” é um livro de ensaios que anda comigo há muito tempo, a data de compra remonta a 2009, foi sendo lido. Não está ainda esgotado. Vai continuar comigo. Muitas vezes aberto ao acaso, relido como um destino.

As sérias e sentidas reflexões revelam-nos um autor que se constrói com a escrita. Como, ainda há pouco tempo, dizia, numa conversa, a propósito do seu último livro "Dentro de Ti Ver O Mar", a escritora Inês Pedrosa, na livraria Arquivo.

Ainda não esgotei este livro por dentro e por isso não sei se é tempo de falar dele. Mas nem sei quando seria. Trago-o aqui na sua incompleta releitura e entendimento. Vale a pena ler.

“Neste mesmo lugar, há muito tempo”
Quanto tempo demoramos a escrever uma linha. Por vezes mais do que o tempo de escrever páginas inteiras. E, por vezes, uma linha muda tudo e nada fica igual depois de escrita. 
Será possível equilibrar o vivido e o escrito como uma construção em que não nos envolvemos?
Terá Miguel Ângelo ficado imaculado de tinta na tarefa de pintar a capela? E seria ela o que é se o tivesse feito em breve tempo? A arte de cada um é singular, bem como o seu tempo de chegar. O seu mérito e valor é sujeito à poeira do tempo. Mas é sempre um longo caminho acidentado de subidas irregulares e descidas traiçoeiras, o da escrita como a da vida.

"Um Apontamento Sobre  Justiça Poética”
Sobre como um escritor carrega o ser pequeno que foi dentro de si.

“Olhar pela janela”
Revendo um episódio de infância que coloca pessoas de diferentes gerações e diferentes geografias próximas no tempo e no espaço.

Pamuk levou-me de novo a Tristan Shandy. Às histórias das Mil e uma Noites, adiadas, reinventadas. Relembrou-me “Os Buddenbook” de Thomas Mann. O necessário repensar dos laços familiares.

“Política e refeições familiares nos feriados religiosos”
 O quotidiano das refeições que, mais que um milagre de fazer acontecer alimentos sobre a mesa, são momentos de rituais onde se passam testemunhos. Deviam ser.

 "Em Kars e Frankfurt"
A tentar perceber como eram são as expectativas da Turquia face à Europa.
Agora que se tornou mais fácil para todos a necessidade de rever a Europa. Não como um bloco uno, de onde um entra e outro sai mas como um conjunto dinâmico onde todos contam. 
É preciso entender esta Europa que se desfaz ou se refaz consoante o maior ou menor pessimismo que carregamos. Somos nós que levamos água aos moinhos. Somos nós que combatemos os gigantes que vemos em moinhos.

A entrevista que Pamuk deu à Paris Review, feita entre Março de 2004 e Abril de 2005, pelo meio das suas posições politicas na questão Curda/Arménia.

"Nove apontamentos sobrecapas de livros". Que nos coloca perante o que importa ainda e sempre que falamos do livro papel/digital.

Pamuk nasceu em 1952. Em Istambul. “Cresci numa casa em que todos liam romances”, diz ele. Uma sorte, digo eu.

E agora se me perguntassem: então se fosses para uma ilha deserta que livro levarias? 
Nenhum.Na verdade não me apetece ir para nenhuma ilha deserta. 
Apetece-me um sitio cheio de gente,  uma biblioteca perto, livrarias, frutarias, um antigo mercado, um jardim e risos de crianças. Outras Cores...
Sílvia Alves

domingo, 10 de março de 2013

ESTA ESCRITA É UM BELO LUGAR PARA MORAR





Erri de Luca e os seus belíssimos romances são uma descoberta feliz dos meus últimos anos de leitor.

A sua escrita é asseada e simples mas profunda, limpa mesmo quando fala das coisas sujas da vida, luminosa mesmo quando fala do lado mais negro da vida. Pelas suas palavras passam uma profunda dignidade e respeito pelo melhor do ser humano.

"Montedidio" é a história de rapazinho napolitano contada pelo próprio. Fala-nos do seu trabalho como aprendiz de marceneiro, da sua amizade pelo sapateiro judeu Raffaniello, corcunda que tem na cabeça uma bússula de cegonha e umas asas dentro da corcunda que um dia hão de abrir e levá-lo pelos ares até Jerusalém; e fala do seu primeiro amor e das primeiras experiências sexuais com Maria que não quer seirvir de moeda de troca ao senhorio a quem a mãe deve várias rendas de casa, do pai, estivador e do mar cujo cheiro traz preso ao casaco, da mãe que morre, da língua napolitana e da necessidade de aprender italiano para estudar,ter emprego, papeis legais.

Tudo isto nos é dado através de pequeninos capítulos como se de um diário fossem e de uma escrita delicadíssima e profundamente poética.

Montedidio fala de um tempo de pobreza, anos 50, na ressaca da II Guerra, de um tempo de gente que trabalha com as mãos e que faz do seu ofício uma verdade que vai até ao osso.

Aqui, "Todas as manhãs são uma ressurreição." e "É o sol dos meses frios que põe um cobertor sbre quem não tem um."

Aqui fala-se do sapateiro Rafaniello que "Canta para arejar os pensamentos, caso contrário, fechados na boca ganham bolor."

Aqui, nesta escrita é um lugar bom para morar e descansar sabendo que há uma esperança de luz para a nossa tão precária condição.