segunda-feira, 25 de abril de 2011

VIVA MÉXICO



Alexandra Lucas Coelho tem-se vindo a mostrar uma repórter notável. As suas reportagens sobre o Afeganistão e depois sobre o México são do melhor que o nosso jornalismo nos tem dado.

Li ocasionalmente algumas dessas reportagens quando publicadas no Público. Agora que estão publicadas em livro pude lê-las todas e ter delas uma visão de conjunto. E deliciei-me, emocionei-me, fiquei ansioso por conhecer este país fabuloso.

A autora leva-nos pela mão através da desmesura mexicana,das suas gentes, dos seus dramas e das suas paixões, da sua história trágica, convulsa, feroz, intensa. Aborda os mitos que são Frida Khalo e Diego Rivera, visita as suas casas, toca nos vestidos de Frida, observa as fotografias. Tudo caldeado pela recordação aqui e ali do que sobre o México e os seu mitos escreveram Octávio Paz, Le Clézio, Carlos Fuentes e vários outros.

Alexandra Lucas Coelho vai aos museus, às escavações arqueológicas, mete-se por becos, entra em livrarias, fala com um historiador ou com um velho sapateiro zapatista, com um editor, um padre, uma freira, e mais e mais.

Viaja de camioneta, de avião,de taxi e de metro, regista as grandes e as pequenas coisas, anota isto e aquilo à medida do seu deambular, usa as palavras como uma máquina fotográfica que apanha museus, escavações arqueológicas, paisagens, a dimensão delirante da Universidade da Cidade do México, as grandes praças e monumentos com as suas igrejas e vendedores e polícias, e tudo sem maneirismos para turista ver.

E apanha ainda o pequeno momento fugaz das personagens que estão a assistir a um jogo de futebol, as baratas que estão no lavatório do hotel, as mulheres que acabam de fazer a maquilhagem na viagem de metro, a ementa do restaurante, o domingo de fé e loucura na adoração à Virgem de Guadalupe, a tragédia do narcotráfico em Juarez

Esta escrita não julga, não moraliza, procura apenas desvendar, mostrar numa espécie de visão caleidoscópica onde as imagens, as reflexões, as notas se entrecruzam e nos fazem sentir a respiração desmedida e por vezes trágica deste país único.

A autora procura deixar de fora a sua emoção que aparece não pela sua mas pela acumulação de pontos de vista por vezes inesperados, por vezes violentamente contraditórios.

Sabemos que a forma de mostrar ou de não mostrar é sempre uma escolha. Essa escolha é a da pessoa que escreve. E a escolha de Alexandra é tornar a reportagem numa prima da ficção, isto é, faz da realidade uma espécie de romance que torna a leitura num prazer raro.

Resumindo e concluindo: quero ir ao México depressa, e ler e ouvir e beber o México, e a culpa é da Alexandra Lucas Coelho.

domingo, 24 de abril de 2011

LITERATURA E FEITIÇARIA



Mia Couto é um contador de histórias e um feiticeiro na oficina das palavras. Sabe comboiá-las. Sabe fazer com que se torçam e contorçam como artistas do grande circo da literatura.

É claro que sabemos que literaturas há muitas. Modernas e pós-modernas e outras que nem uma coisa nem outra. E são sempre pontes de palavras que vão do escritor para o peito de outras pessoas, mesmo aquelas que nunca o leram. Ou que vão do escritor para sítio nenhum , ou melhor, para um estranho deserto onde alguns leitores encontram uma trave ou um degrau da grande casa da sua desolação.

A literatura do Mia é uma ponte que vai longe no coração das pessoas e na respiração da terra.

Os poemas deste livro são exactamente o que são e não o que outras pessoas que andam com definições de poesia no bolso quereriam que eles fossem.

A poesia do Mia não é muito diferente dos seus contos e dos seus romances. É a voz de um homem que trabalha do lado da amabilidade, da humanidade, do grande fogo preso de quem se apaga perante as mãos, os olhos, as alegrias e o sofrimento dos seres humanos em seu redor, para, num acto de magia, transformar a escuridão em luz, e a luz no bailado das borboletas que são as suas palavras.

Muitas destes poemas são histórias pequeninas, retratos inesperados de gente vista por dentro, pequenas frases, quase aforismos. E sobretudo são declarações de amor pelo amor, pelos homens seus vizinhos, pela mulher, pela vida.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

MILAN KUNDERA, FIGURA MAIOR DA CULTURA EUROPEIA



De Milan Kundera, publicou a D. Quixote um conjunto de textos de cariz ensaístico, compilados numa obra que tem como título “ Um Encontro”. É uma obra em que a inteligência, o humanismo e a cultura do autor estão sobejamente demonstrados. Uma obra que se lê com prazer e se relê ainda com maior prazer. Por isso, estas linhas, a assinalar o seu aparecimento, em Portugal.
Um tanto ao acaso, destacarei o capítulo dedicado aos autores que, ao longo dos tempos, vão passando para a “lista negra” dos autores designados de “malditos” ( os esquecidos ou os que deixaram de estar na moda). Entre eles, Anatole France, considerado hoje como um autor menor, que nada diz às gerações actuais.O que sempre surpreendeu Kundera, pois guarda uma lembrança extremamente positiva de alguns textos seus, como “Les dieux ont soif” (há uma edição portuguesa, esgotada, creio). É exactamente essa obra que Kundera valoriza, no capítulo “As Listas Negras ou Homenagem a Anatole France”. O ensaísta checo tenta explicar essa descida aos infernos deste “autor maldito”:
“ O cortejo fúnebre que acompanhava Anatole France tinha vários quilómetros de comprimento. Depois tudo se alterou. Exaltados pela sua morte, quatro jovens poetas surrealistas escreveram um panfleto contra ele. (...)”De facto , mal o caixão tocou o fundo da cova, começou para ele a marcha para a lista negra”

De onde vêm as maldições como a que caiu sobre Anatole France?
“Dos salões. Em nenhuma parte do mundo desempenharam um papel tão importante como em França. Graças à tradição aristocrática que dura há séculos, depois graças a Paris, onde, num espaço exíguo, se amontoa e fabrica opiniões de toda a elite intelectual do país; não os propaga através de estudos críticos, de debates eruditos, mas de fórmulas surpreendentes, de jogos de palavras, de tolices estrondosas(...)
Anatole France, no seu romance “Os Deuses Têm Sede, faz-nos uma análise das forças políticas e sociais que se desenvolveram durante a Revolução Francesa, análise que nos diz mais do que a História nos tem apresentado. Mas o livro de Kundera não se limita à análise literária. Outros temas são abordados, sempre com o inconformismo e a argúcia que o caracterizam. Assim, por exemplo, estabelece uma diferença radical entre “As Duas Grandes Primaveras”, ou seja, entre a “primavera francesa”, a do Maio de 1968, e a “primavera checa”, ocorrida no mesmo ano, acontecimentos que os franceses dessa época consideraram idênticos. Kundera esclarece:
“O Maio de 68 foi uma explosão inesperada. A Primavera de Praga foi o culminar de um longo processo enraizado no choque do Terror estalinista dos primeiros anos que se seguiram a 1948.
O Maio de Paris , resultando em primeiro lugar da iniciativa dos jovens, estava impregnado do lirismo revolucionário. A Primavera de Praga inspirava-se no cepticismo pós- revolucionário dos adultos.
O Maio de Paris era uma contestação jovial da cultura europeia, considerada enfadonha, oficial, esclerosada. A Primavera de Praga era a exaltação desta mesma cultura durante muito tempo abafada pela ideotia ideológica, a defesa tanto do cristianismo como da descrença libertina e, obviamente, da arte moderna (digo bem: moderna, não pós-moderna).
O Maio de Paris exibia o seu internacionalismo. A Primavera de Praga pretendia voltar a conferir a uma pequena nação a sua originalidae e a sua independência”
Esta reflexão de Kundera é extremamente actual e corresponde a uma tendência que os diferentes povos têm de explicar o que acontece com outros, à luz do que ocorreu com eles. Situação semelhante tem acontecido entre nós, nos últimos tempos ao compararem-se os movimentos insurreccionais de massa, em curso nos países árabes do Norte de África, com o nosso 25 de Abril de 1974. Esta centração no que acontece entre nós para explicar o que se passa com os outros, é de um primarismo alarmante, pois revela um desconhecimento total do que é a História, a Política, a Sociologia dos diferentes povos e regiões.
E mais alarmante é ainda por ser um fenómeno que tem afectado grande parte do mundo ocidental, ao longo dos últimos séculos. Enfim, uma matriz psicossocial que nos formata e dificulta uma real mundividência.



Mas Kundera não é apenas um grande escritor ou um analista de apurada subtileza do fenómeno político. É também um estudioso das correntes musicais que atravessaram o século XX. Ao comparar a literatura com a música, diz-nos, no capítulo “ A Recusa Integral da Herança de Iannis Xenakis”:
“ Por mais que um Stravinsky rejeite a música como expressão de sentimentos, o simples ouvinte não sabe compreendê-la de outro modo. É a maldição da música, é o seu lado animal. Basta que um violinista toque três primeiras lentas notas de um largo para que um ouvinte sensível suspire: «Há que maravilha!». Nestas três primeiras notas que provocaram emoção, não há nada, nenhuma invenção, nenhuma criação, absolutamente nada: o mais ridículo «embuste sentimental». Mas ninguém está livre dessa percepção da música, deste suspiro ingénuo que suscita”.
A música ocidental baseia-se no som artificial de uma nota, de uma gama; é assim que se encontra no oposto da sonoridade objectiva do mundo. Está ligada , desde o seu aparecimento, por uma convenção de insuperável, à necessidade de exprimir uma subjectividade.”

Ora, esta “subjectividade” não tem necessariamente paralelo na literatura: James Joyce, “o profeta da insensibilidade”continuará sempre a ser um romancista. Xenakis, pelo contrário, ao tomar partido pela “sonoridade ojectiva”, cortou todos os laços com as tradições musicais, situando-se num plano diferente, que dificilmente poderemos considerar música. Embora esta concepção seja discutível, revela uma tomada de posição extremamente curiosa.
Creio que os exemplos que acabei de citar nos dão uma panorâmica da riqueza do pensamento desta grande figura da cultura europeia do século XX e XXI.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

A DELICIOSA FRAUDE



Romain Gary, escritor francês nascido lituano, comete duas deliciosas fraudes com este romance.

A primeira é que assinou-o com o pseudónimo de Émile Ajar e, como não foi identificado, ganhou pela segunda vez o prémio Goncourt que só pode ser atiribuído uma única vez a cada escritor.

A segunda fraude, entre aspas se se quiser, é a de criar um pequeno narrador marroquino, Mohamed, que não tem a idade que julga que tem e vive em casa de uma senhora judia, ex-prostituta sobrevivente de Auschwitz que ganha dinheiro recebendo e cuidando de filhos de prostitutas.

As reflexões e aforismos de Mohamed são deliciosas porque o seu olhar sobre o mundo e as pessoas está isento dos lugares comuns e de uma certa moralidade com que normalmente se constrói o crescimento e a socialização de uma criança.

"No início não tinha uma mãe nem sabia que era preciso ter uma."

"Aquele sacana não era deste mundo. Já tinha 4 anos e ainda era feliz."

"- São os pediatras que se ocupam das crianças.

- Só quando são bebés. Depois são os psiquiatras."

"...o sono dos justoS... Acho que são os injustos que dormem melhor, porque se estão a borrifar, enquanto os justos não pregam olho e preocupam-se com tudo. Se não não seriam justos."

"Eu sabia que tinha toda uma vida á minha frente, mas não me ia pôr doente por causa disso."

"Eu acho que os judeus são pessoas como toda a gente mas não devemos ficar ressentidos com isso."

"... o que era importante era tocar muito tãtã para afastar a morte que já devia estar por aí e que tinha pavor aos tãtãs por razões pessoais."

Mohamed é uma espécie de menino da selva, se bem que a selva seja um bairro pobre de Paris onde abundam os africanos, os judeus e os árabes. E, no seu deambular pela vida e pelo bairro, talvez sem o saber, procura uma mãe para poder tratar dela. E no seu sonho chega a desejar uma mãe prostituta para que ele seja seu chulo e, assim, possa protegê-la...!

A história cresce como uma comédia negra que se vai adensando e nos leva a pensar no que é o amor, a doença, a morte, e onde a solidariedade, sem palavras grandiloquentes a embrulhá-la, é apenas a forma única de sobrevivência entre vizinhos de um prédio, de um bairro ou do mundo.


quarta-feira, 13 de abril de 2011

"Sei qual é a velocidade da luz mas não aprendemos qual é a da escuridão!"



Malboro Sarajevo

de

Miljenko Jergovic

Editora Cavalo de Ferro

Nos tempos que correm apesar de muita gente pensar dever recuperar o velho hábito de ter lápis e bloco de notas de despesas o preço dos livros jamais pode ser desculpa para não se ler, até porque existem bibliotecas.

Ultimamente tenho-me cruzado com livros de editoras desaparecidas ou esquecidas. Livros que não foram iluminados pela vertigem da moda. E se os livros alimentam uma indústria a leitura alimenta-nos a alma e essa não pode morrer de inanição por muito que seja o corpo a preocupação que colocamos em primeiro lugar.

Da Cavalo de Ferro tenho encontrado edições cuidadas e bonitas quase a preço de café em estação de serviço. O que significa que os livros têm sido muito baratos e o café demasiado caro. Não recordo o café mas dou por bem empregue 1 euro que custou o livro.

Autores desconhecidos. Lugares onde nunca fomos. Pessoas que nunca cruzámos iguais a outras que se cruzam connosco todos os dias povoam este livro de Miljenko Jergovic, um escritor de uma geração de autores publicados durante o tempo do cerco de Sarajevo. Não conhecia o autor mas recomendo o livro: Malboro Sarajevo.

Malboro Sarajevo, o cigarro que a Philip Morris adaptou ao gosto dos fumadores bósnios, surge numa espantosa conversa entre um bósnio e um americano no conto “”O Túmulo”.

“(…)Para alguns all over the world é de Bascarsija a Marijindvor, para outros é à volta do globo terrestre. E feliz, tal como infeliz, pode ser quer um quer outro. (…) Pergunta-me se tenho pena de, depois de ter dado volta ao mundo três vezes, acabar em Sarajevo sitiada, e eu digo-lhe que não acabei aqui, antes nasci aqui e graças a Deus não deixei a cabeça em nenhum outro lugar(…) A vida vale só se sabes que a tens senão a morte apanha-te desprevenido(…)"

Gosto de livros de contos. Por vezes ficamos ligados a eles por um ou outro conto e os restantes perdem-se nos recantos da memória, neste todos eles se complementam compondo um puzzle de lugares e pessoas ao mesmo tempo cruel e terno.

Na velha questão de valer a história ou o talento de a contar eu faço questão das duas, sabendo que o grande talento de contar torna grandes as pequenas histórias.

“Os saxofonistas não escrevem a História, tocam. As palavras não proferidas formam o silêncio na doçura do qual, depois da tagarelice e das guerras, para o bem e para o mal, os sobreviventes dormem placidamente.”

”(…)Não faz sentido impedir que o fogo devore aquilo que a indiferença dos Homens já devorou.(…)”

“ (…)No mundo, tal como está, existe uma regra fundamental, a mesma que Zuko Dzumhur formulou pensando na Bósnia, e que se reduz a duas malas sempre feitas. Nelas devem caber todos os teus bens e todas as tuas memórias. Tudo o que esteja fora disso já está perdido.(…)”

Penso na perda material das memórias. Como sobrevivem tantas pessoas à perda de tudo no meio de uma guerra? Podem voltar a ter coisas… Mas as memórias… Como imagino ser duro viver no meio de recordações sem qualquer enquadramento material, será como ter dores num braço amputado.

Há lugares que aparecem na nossa sala, acenam à nossa frente nas páginas dos jornais em dias de grande desgraça e depois desaparecem silenciosamente. As feridas ficam lá longe, cicatrizam, ficam cicatrizes que doem. A vida das pessoas continua com mágoas invisíveis que se arrastam em cidades sem o “glamour” de Paris ou o cosmopolitismo de Nova York mas onde os sonhos não são menos brilhantes.

“É estranho, está sol, mas mesmo assim nada seca. Estava agradavelmente a refrescar a cara e a pensar: Heraclito troçava apenas de si próprio, enquanto Zenão zombava com o mundo inteiro. Platão era o travesti que pretendia revestir a humanidade, a Sócrates tiveram de o matar para que não fizesse uma peça de teatro da sua própria morte.(…)”

“O mundo desaparece com as palavras não proferidas”

“Não é fácil livrar-nos de coisas supérfluas”

Mais do que os livros que ficam sob os holofotes prefiro os que são iluminados por velhos candeeiros em ruas esconsas. Os que nos falam da vida, de corpos que sagram, de árvores que dão maçãs com vida. Quando lemos viajamos, a viagem não se faz por sítios despovoados, aprendemos a conhecer as pessoas. Partimos, levamos quem mora dentro de nós e tudo o que lemos. Mesmo se perdermos aquelas duas malas que nos aconselha…

“Acaricia com ternura os teus livros, forasteiro, e lembra-te que são pó”

Livros assim merecem ser acariciados com ternura, lidos e pensados. Há vida para lá das manchetes que (já não) vendem jornais. Vidas que um dia serão pó, como todos seremos.

Seremos melhores pessoas… Amanhã.

domingo, 10 de abril de 2011

Cândido ou Um Sonho Tido Na Sicília


...

A verdade é que se fora embora: e só os factos contam, só os factos devem contar. Nós somos aquilo que fazemos. As intenções, especialmente se forem boas, e os remorsos, especialmente se forem justificados, cada um dentro de si pode jogá-los como quiser, até a desintegração, até a loucura. Mas um facto é um facto: não há contradições, não há ambiguidades, não contém o diferente e o contrário.
...

Um facto. Fazer perguntas, inquirir, investigar servia só para complicar dolorosamente o que fora simples e verdadeiro.

Cândido ou um sonho tido na Sicília


Acerca desse seu livro, o escritor siciliano Leonardo Sciascia (1921 - 1989) cita, numa nota final, Montesquieu, segundo o qual "uma obra original faz quase sempre nascer outras quinhentas ou seiscentas, servindo-se estas da primeira mais ou menos como os geómetras se servem das suas fórmulas". E segue, "Não sei se o Cândido serviu de fórmula a outros quinhentos ou seiscentos livros. Creio que não, infelizmente: pois certamente ter-nos-íamos aborrecido menos, com tanta literatura. Contudo, quer este meu conto seja o primeiro ou o seiscentésimo, foi dessa fórmula que tentei servir-me. Mas parece-me que não o consegui bem, e que este livro se assemelha aos outros meus. Aquele ritmo e leveza já não é possível encontrá-los: mesmo por mim, que creio que nunca aborreci o leitor. Se não o resultado que valha portanto a intenção: procurei ter ritmo, ser leve. Mas sério é o nosso tempo, bastante sério."

Tendo como inspiração a obra mais famosa da literatura sobre o optimismo, Sciacia cria um personagem de coração puro e alma límpida, Cândido Munafò. A sua honestidade, a sua incapacidade para mentir e de ser cúmplice da hipocrisia, levam a quase todos, mãe, pai, avó, a criada próxima, a hierarquia clerical, o secretário local do partido comunista, a considerá-lo um "monstro".

O equivalente do filósofo leibniziano, Pangloss, o optimista total que afirmava que o mundo era o melhor de todos e que mesmo o terremoto de Lisboa poderia ter sido muito pior, é na obra de Sciascia, Don António, um padre que troca a igreja católica pela igreja do partido comunista. Don António acreditava que fora do partido não havia salvação possível. Esta salvação, não estava contudo, à medida da razão de Cândido, para quem o comunismo "era uma facto da natureza" e não da ideologia.

Assim, evolui Cândido na direcção do iluminismo, na direcção da natureza e duma utopia algo anarquista, caminho que o conduz à pátria da razão e da esperança, Paris, pátria de Voltaire.

Uma obra actual, de grande destreza literária, e com interessantes traços auto-biográficos, pois em certa medida, a brilhante obra de Sciascia versa essencialmente sobre o sonho, a razão e sobre a Sicília.

Orfeu B.





quinta-feira, 24 de março de 2011

"... eu sou do tamanho do que vejo/E não, do tamanho da minha altura... " Alberto Caeiro


A árvore que dava olhos

Texto de João Paulo Cotrim

Ilustrações de Marial Keil

Editora Calendário

Tal como as árvores precisam de tempo para crescer os livros precisam de tempo para chegar aos seus leitores, precisam de quem não os deixe cair no esquecimento ao fim de uns meses, precisam de um vento que os espalhe por todos os lugares onde possam dar frutos. Por isso não desisto deste, uma colheita de 2007, já desaparecido de muitas livrarias e ainda, infelizmente, ausente de muitas bibliotecas. "A árvore que dava olhos" é um livro que merece ser lido, relido e recomendado e que, tal como todos os bons livros para crianças, é um livro para todas as idades.

Uma árvore de quintal com raízes presas num espaço limitado avisa que não pode ver o vê nem falar do que fala. É essa sua perplexidade, e a nossa, a história deste livro ou até de todas as histórias nascidas dentro de quem quer ver além da linha do horizonte.

A árvore deve dar frutos então porque não dar diferentes frutos? Ou usar os ramos para riscar o céu, ser aeroporto de borboletas, farol de gatos?

Esta árvore sonha e no seu sonho convivem o real e o impossível: ser casa de pássaro e navio voador. Tudo porque é uma árvore que dá olhos e com olhos abertos se vai a todo o lado.

Um belo texto de João Paulo Cotrim, numa união feliz com as ilustrações da Maria Keil que, mais cedo ou mais tarde, é imperdoável não reconhecer.

Maria Keil, infelizmente demasiado cedo arrumada e quase esquecida. Uma senhora que vem de longe e ainda enxerga longe, como a sua árvore que não cabe inteira nas páginas onde, por vezes, coloca uma cadeira, lugar de gente, lugar da Maria. Uma cadeira onde é suposto o leitor se sentar, ser árvore, ter olhos abertos. E ver longe pelo livro e pela imaginação. Sílvia Alves



quarta-feira, 23 de março de 2011

Film Socialisme

Jean-Luc nunca foi um dos meus favoritos. Muito provavelmente porque frequentemente fico algo irritado com a crueza e a frontalidade de seus julgamentos. E também porque a originalidade da Nouvelle Vague, embora atraente e próxima das minhas preocupações ideológicas e sociais, nunca me pareceu estar à altura da minha paixão pelo cinema italiano, que numas poucas décadas produziu encenadores geniais como De Sica, Rossellini, Fellini, Visconti, Pasolini, Antoniani, Bertolucci, Wertmueller, entre outros, e um sem número de actores e actrizes inesquecíveis.

O desaparecimento desta brilhante linhagem de cineastas empobreceu-nos tristemente e deixou um vazio que é muito raramente preenchido. Os filmes sucedem-se uns aos outros, mas para mim nada se compara ao festim intelectual e dos sentidos que era ir, sobretudo na adolescência, ver a última invenção do cinema italiano. Mas claramente, Godard também sempre foi uma referência. Assim, no mesmismo das ideias previsíveis e dos modismos cinematográficos dos dias correntes, o aparecimento dum novo filme de Godard é um acontecimento que merece ser celebrado. Na minha opinião, os filmes de Godard são obrigatórios e devem ser vistos como se fossem o texto dum manifesto. E Godard tem sido profícuo em produzi-los e torná-los incontornáveis. Justifico assim estas linhas sobre um filme num blog sobre livros.



Film Socialisme é, como aliás tudo de Godard, um filme irreverente, inquietante, instigador, inesperado e rico em questões para reflexão e em ideias cinematográficas. Os filmes de Goddard são também textos ilustrados. Em Film Socialisme, ao turbilhão de ideias juntam-se imagens de grande beleza estética que são dialecticamente confrontadas com segmentos ilustrativos do luxo kitsch dum consumismo vazio e embrutecedor, que é apresentado com imagens sem qualidade, sonorizadas por música auditivamente dolorosa e banal, e diálogos velados, truncados e em vozes off. A mensagem é clara e explícita: a sociedade de consumo não permite levar-nos para além da fruição fútil e efémera. "O dinheiro é um bem comum" é a primeira afirmação do filme; fluido como a água, completam as imagens, mas o que permite adquirir é necessariamente adulterado e, com frequência, moralmente questionável. O ouro desaparece num sítio para reaparecer noutro qualquer sob o pretexto duma nova ordem moral que se impõe pela força e através da mentira.

Os portos sucedem-se uns aos outros, mas são apenas lugares para mais fotografias e para serem referências descaracterizadas dum estar precário que não deixa marcas nos passageiros do paquete. O que conta é desfrutar. Já e agora. Nada fica.

Na última parte do filme, Quo Vadis Europa, o drama sem sentido, mas absolutamente típico e universal duma família (francesa no caso) desenrola-se. O pai não entende porque não é amado depois duma vida de trabalho e sacrifício. Os filhos não respondem. A filha lê as "Ilusões perdidas" de Balzac, indiferente a tudo e a todos. Tão jovem, e já sem qualquer ilusão. A "comunicação social" está a postos para capturar as declarações, os potenciais actos de violência, o escabroso, o mesquinho. Não há valoração moral, não há qualquer hipótese dum verdadeiro diálogo ou aproximação afectiva dos intervenientes. As afirmações são todas abstractas e desprovidas de sentimento. Os personagens são estátuas a fazer declarações. Exigem tudo, culpam a todos, mas não são capazes de dar nada. Vivem para receber e acumular bens, mas são incapazes de dar. O diagnóstico é exacto, as imagens são cruas, as implicações perturbantes. Para onde vamos?

Obrigado, Jean-Luc!



Orfeu B.

segunda-feira, 7 de março de 2011

WILLIAM TREVOR, O ESPLENDOR DO CONTO EM LÍNGUA INGLESA



O irlandês William Trevor (1928) é um dos grandes contistas de língua inglesa, na actualidade. Grande por várias razões: pela variedade de temas dos seus contos, a caracterizarem múltiplos aspectos das gentes irlandesas; pela contenção e precisão da linguagem; pela mestria com que domina a arte do conto (atente-se, por exemplo, nos “fechos” admiráveis das suas histórias).
A”Relógio de Água” acaba de editar , em tradução cuidada, um seu livro, intitulado “Depois da Chuva”, no qual se agrupam doze contos. No primeiro destes textos, “O Afinador de Pianos”, aborda-se um tema extremamente interessante: um cego (o afinador de pianos) casa-se, ainda jovem, com Violet, que o ensina a ver o mundo através dos seus olhos. Tendo enviuvado, volta a casar-se, já idoso, com uma antiga apaixonada, Belle, que não só vê o mundo de forma diferente de Violet, como passa a desenvolver um ciúme crescente da sua antecessora, que se expressa através da contradição permanente do modo como Violet tinha descrito as cores e formas de ambientes domésticos e de paisagens ao afinador de pianos. O que origina alguma perturbação no cego que, gradualmente, se vai apercebendo do processo de transformação que está a sofrer, transformação que não pode deixar de aceitar se quiser sobreviver
“Cada casa que continha um piano exibia as suas contradições [note-se, ele ia há anos, de casa em casa, no exercício da sua profissão, primeiro guiado por Violet , agora por Bell]. As pérolas que a velha Mrs. Purtill usava eram opalas, a pele tão branca do dono da papelaria de Kliath era sardenta, os dois renques de carvalhos acima de Oghill eram certamente faias, verdes? Claro que sim – anuia Owen Drowgould [o afinador], já que era essa a reacção mais razoável. Não se poderia censurar Belle por demarcar o seu território e tal demarcação acarretava, inevitavelmente, estragos e destruição. No fim de contas, Belle acabaria por vencer, porque os vivos vencem sempre. E também isso parecia razoável, já[que] Violet triunfara no início e saboreara os melhores anos”
Enfim, uma história comovente que narra o processo algo traumático da substituição de um “software” por outro na mente de uma pessoa cega.
“ Depois da Chuva”, o conto que dá o título à obra, é uma belíssima história de amor, de uma suavidade, de uma melancolia que o aproxima das baladas que cantam os afectos perdidos, a solidão de quem sofreu e os perdeu. Uma história quase sem história, com um fio narrativo tão ténue que quase se não vislumbra. Uma história decorrente do jogo de entrelaçamento de um tempo presente com a memória de um tempo de infância, entrelaçamento suscitado pelo lugar (Pensione Cesarina), onde se desenrola a acção. Em suma, uma história muito bem construída, assente na conjugação do tempo e do espaço em que a “heroína” vive e viveu. Uma história em que o tempo e o lugar se conjugam numa ambiência de fina erotização emocional, feita de saudade e mistério. E termina com a mesma subtileza que a percorre ao longo das suas quinze páginas:

“Ele [o namorado que a havia abandonado] bateu em retirada, tal como os outros fizeram, quando tentou alterar as circunstâncias que constituem o passado impondo-lhes um presente mais alegre e, acima de tudo, a fidelidade futura. Nada lhe sugere a resposta quando reflecte acerca da solidão da sua estadia na Pensione Cesarina, e pressente que nunca virá a conhecer.[...] Vê-se a caminhar no calor da manhã, deixando para trás o cemitério e as bombas de gasolina enferrujadas. Vê-se a procurar a sombra dos castanheiros no parque, a cruzar a “piazza” até à “trattoria” quando cairam as primeiras gotas de chuva. Ouve o ruge-ruge da esfregona da limpeza na igreja de Santa Fabíola, os susurros dos turistas. Os dedos da mulher que reza remexem as contas do rosário, as velas bruxuleiam. A história de Santa Fabíola [refere-se à pintura que havia na igreja] perde-se nas sombras que foram os personagens da sua vida, o sepulcro exala um fedor inodoro a morte. A chuva tornou mais suave o ar agressivo, o anjo surge também misteriosamente”.

“Terreno Perdido” é uma história diferente, uma história escrita de um modo discreto, quase suave, o que acentua ainda mais a terribilidade do seu conteúdo: numa comunidade irlandesa, de prática protestante e intolerâncias e ódios ancestaris, um jovem tem uma visão estranha, quando estava no terreno agrícola do seu pai. Visão essa que o perturba e o conforta e que ele acaba por interpretar como sendo a de uma santa católica, a Santa Rosa. Visão de que ele não pode nem quer abdicar, mesmo que tal acarreter a oposição feroz da comunidade em que se insere e da sua família em particular. Nem as cocções e as perseguições de que, gradualmente, vai sendo vítima, o demove da fidelidade a essa aparição. Ostracizado pela família que acabou por o encerrar no quarto, ocultando-o do mundo, Milton, o jovem que teve a “revelação”, passa a ser considerado louco, tais são as coisas “ sem sentido” que diz. Para acabar por ser morto em sua casa, com um tiro na cabeça. O mistério da sua morte começa a desvendar-se-nos com a chegada para o enterro de uma irmã, que tinha ido viver para Inglaterra, em fuga ao ambiente sufocante da sua família. É durante o enterro que os sinais começam a fazer sentido para Hazel, a irmã regressada, que conclui que o irmão tinha sido “executado” por um outro irmão, com a aprovação da família - “ele tinha sido avisado...” Mas Hazel também sabe que esse segredo terrível nunca sairá das paredes daquela casa e pesará para sempre sobre a sua família:

“ A mãe daria o último suspiro com a terrível angústia do sucedido ainda a queimá-la por dentro; o pai iria recordar aquele acontecimento em todas as marchas de Julho [as festas da aldeia em que todos participavam e onde se começou a revelar “a perturbação” de Milton] que ainda lhe restavam. Os membros da família nunca conversariam acerca daquele dia, mas, através da dor, diriam a si próprios que as coisas eram mesmo assim, não havia alternativa. Milton tinha de morrer: eis o único consolo. O terreno perdido [o terreno onde tinha aparecido a santa] fora recuperado”.

Esta transcrição (assim como as anteriore), corresponde aos períodos finais dos contos a que fizemos referência e atestam, por si sós, as qualidades de contista de William Trevor.

sexta-feira, 4 de março de 2011

PARTILHA DE EMOÇÕES



Sempre vivi com as emoções às costas.

Quando leio um livro ou vejo um filme de que gosto muito tenho de o impingir a toda a gante. É mais forte do que eu. Se quiserem, de forma poética, direi que é uma ínapelável pulsão de partilha das emoções.

Alguns dos meus amigos já me pediram várias vezes para não lhes contar os filmes. Depois vão vê-los e acham-lhes menos graça...

Mas atenção serei um narrador obsessivo mas democrático. Tanto gosto de contar como que me contem filmes ou livros. Porque quase sempre vou ver outra coisa, de outro ângulo, vou ver outro filme naquele filme, o meu filme, que não fica magoado se me contarem o que cada um viu dentro daquele que eu vou ver.

Por isso, o título deste livro agarrou-me imediatamente. Esta é das minhas! A menina é uma de cinco filhos de um mineiro que ficou sem andar, viu a mulher fugir e adora cinema.

Para a sessão de cinema semanal só há dinheiro para um bilhete. O pai faz então um concurso entre os filhos. Quem vai ao cinema tem depois de contar o filme aos outros.

A menina é a eleita como melhor contadora. E vai tornar-se numa pequena vedeta daquele acampamento onde ficará a viver da memória dos filmes, mesmo depois de a mina fechar e todos partirem.

Hernán Rivera Letelier é um dos meus autores favoritos. Ex-mineiro nas minas do salitre no deserto de Atacama, Letelier fala-nos dos pobres, dos mais pobres, da vida duríssima da gente do deserto. E apesar dessa dureza, a sua escrita é atravessada por um sopro doce, amável, nostálgico, decente, trágico por vezes.

Quando acabo de ler os seus livros fico sempre a sentir-me carregado da mais funda humanidade que as palavras podem trazer-nos.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

“Não quero ser uma árvore, quero ser o seu significado.” Orhan Pamuk



Do Longe e do Perto

Quase-Diário

Yvette K. Centeno

Editora Sextante


“Do Longe e do Perto Quase-Diário” é um livro de Yvette Centeno, senhora dona de uma bela voz literal e literariamente falando, que se lê como um passeio pelos campos. Campos de erva, arbustos, árvores, flores, numa desordenada ordem ou numa ordenada desordem. É leve e profundo e fresco

“No Outono já sei o que quero fazer. Plantar. Romãzeiras perto da casa.”

Gosto desta ideia, nos dias de todas as queixas, plantar árvores. Uma ideia de futuro, símbolo de esperança e de paciência para esperar os frutos.

Há neste livro o retrato do nosso mundo de hoje, um mundo de lonjuras que virtualmente ficam próximas e de proximidades que não sabem como vencer a distância de um olhar.

Andamos, como há mil anos, a aprender a arte da vida usando equações que têm cada vez mais incógnitas. Os resultados, nunca exactos, são o olhar e o sentir de cada um.

Há rituais que sabem bem, como este onde me cruzei com este livro e com a sua autora, as Correntes d’escritas, na Póvoa de Varzim, doze anos a crescer e, mais que isso, a consolidar uma ideia de celebração do que é a nossa mais profunda humanidade: a palavra e os mundos que ela constrói para serem habitados dentro do nosso. As palavras com que celebramos o brilho dos olhos dos amantes e a magnitude das estrelas.

“O Sol renova os dias, mas os dias não me renovam. Virou-se a página sobre quantas folhas passadas sobre quantos livros lidos que me fariam falta. São livros que guardam os segredos da alma, ficarei sem os saber”.

Sempre que abrimos um livro e nele encontramos uma alma que nos segreda ficamos redimidos por aqueles que ainda não visitámos.

Gosto de ler mas não vou a correr ler outro, vou ficar mais um tempo a reler este: quase-diário, do longe e do perto, da vida e do tempo solar e lunar de que somos feitos, na exacta medida do coração para o qual se inventaram as romãs. Para, calma e pacientemente, bago a bago, ensaiar arte do amor.

Sílvia Alves

sábado, 26 de fevereiro de 2011

A Máquina do Mundo Repensada





I

...

de mágico pelouro por inteiro
o pasmasse: já o poeta drummond duro
escolado na pedra do mineiro

caminho seco sob o céu escuro
de chumbo - cético entre lobo e cão -
a ver por dentro o enigma do futuro

incurioso furtou-se e o canto-chão
do seu trem-do-viver foi ruminando
pela estrada de minas sóbrio chão

- e todos: camões dante e palmilhando
seu pedroso caminho o itabirano
viram no ROSTO o nosso se estampado

minto: menos drummond que ao desengano
de repintar e neutra face agora
com crenças desepultadas do imo arcano

desapeteceu: ciente estando embora
que dante no registo do íris no íris
viu - alcançando o topo e soada a hora -

...

II

...

galileo - aquele que heliocentra
o sistema - chegou depondo a terra
do seu trono senil que só sustenta

uma ciência obsoleta: o sábio a exterra
e faz descer na escala de grandeza:
ei-la - abatido o orgulho - feita perra

que lambe o hélios-sol (sem realeza)
o rastro do rei-posto (subalterna) -
e depois newton vem: a maça (reza

a lenda) cai-lhe aos pés - maga lanterna
vermelha - da alta rama e ao intelecto
pronto lhe ensina a lei (à queda interna)

da gravidade inscrita no trajecto
dos corpos mais pesados do que o ar
por amor-atração sempre que o objecto

se precipite e tombe sem cessar
- lei universal seja aos mais pequenos
seja aos maiores corpos a ordenar

...

III

com esse paradoxo encerro a glosa
que entreteci à borda do caminho
da física evoluindo: deixo a prosa

ou relação de meu descaminho
para tentar erguer-me até o mirante
de onde a gesta do cosmos descortino:

no imaginar me finjo e na gigante
lente de um telescópio o ollho colando
abismo - apto a observar o cosmorante

berçário do universo gerando:
gerando aqui o big-bang - o começo(?)
de tudo - borborigma esse ur-canto

...

camões ao bravo gama todo-audácia
a máquina do mundo fez abrir -
não desenhou a nauta desta graça

e seguiu deleitoso a descobrir
o que não pode ver a vã ciência
dos ìnferos mortais: por um zefir

pôs-se a descortinar na transparência
o ptolomaico engenho de onze esferas
na na terra tem centro e pertinência

...

finjo uma hipótese entre o não e o sim?
remiro-me no espelho do perplexo?
recolho-me por dentro? vou de mim

para fora de mim tacteando o nexo?
observo o paradoxo de outrossim
e do outronão discuto o anjo e o sexo?

O nexo o nexo o nexo o nexo e nex


A Máquina do Mundo Repensada


Um livro de grande beleza do poeta, crítico, tradutor e professor brasileiro Haroldo de Campos (1929-2003), figura central da dita "poesia concreta". O movimento, que tinha ligações com o europeu (poesia concreta/konkrete poesie/concrete poetry), surgiu no Brasil em 1956-1957, através do grupo "Noigandes", título da revista que era o seu meio de expressão. O movimento brasileiro tinha uma vertente paulistana (oriundo da cidade de São Paulo, capital do estado de São Paulo) representada por Haroldo, seu irmão Augusto de Campos e o poeta Décio Pignatari, e uma corrente "carioca" composta por Wlademir Dias Pinto, Ferreira Gullar (Prémio Camões 2010) e Ronaldo Azeredo. Razões ideológicas deram origem à secessão do grupo carioca, que subsequentemente se auto-intitulou de "Neoconcretos". A poesia concreta caracteriza-se marcadamente pelo minimalismo linguístico e pela distribuição espacial não trivial e criativa das palavras, vocábulos e fonemas. Há inúmeros exemplos de grande beleza como os que reproduzimos abaixo e que são da autoria de Haroldo e Augusto de Campos, respectivamente.





Haroldo de Campos foi também um tradutor de excelência, responsável pela tradução para o português de vertente brasileira de obras fundamentais da literatura universal como a Ilíada de Homero, a prosa de Joyce, a poesia de Mallarmé. Nos seus últimos anos almejava apresentar ao público uma tradução integral da Divina Comédia de Dante. A sua sensibilidade e criatividade de poeta eram visíveis nas suas soluções de tradução e levaram Umberto Eco a afirmar que o poeta brasileiro era o melhor dos tradutores de Dante no mundo.

A Máquina do Mundo Repensada (2000), é segundo o seu autor, um livro que resultou da leitura dialogal da Divina Comédia de Dante, dos Lusíadas de Camões, e da Máquina do Mundo de Carlos Drummond de Andrade, para além de livros de divulgação de astronomia, cosmologia e física.

Digna de menção é também a edição brasileira (Ateliê Editorial) deste magnífico livro, na qual o prazer da linguagem é multiplicado por sugestivas ilustrações da galáxia Andrómeda e dalguns belos exemplos de nebulosas. Enfim, um livro que é uma obra de arte integral.

Orfeu B.