terça-feira, 2 de agosto de 2011

Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos

Os Estados-providência não eram necessariamente socialistas na origem ou propósito. Eram produto de outra mudança radical nos assuntos públicos que arrebatou o Ocidente entre os anos 30 e nos anos 60: uma mudança que atraiu para o exercício da administração especialistas e estudiosos, intelectuais e tecnocratas. O resultado, no seu melhor foi o sistema de Segurança Social americano, ou o Serviço Nacional de Saúde da Grã-Bretanha. Ambos foram inovações extraordinariamente dispendiosas, que romperam com as reformas e ajustamentos graduais do passado.

A importância dessas iniciativas de segurança social não estava nas ideias em si - a noção de que seria melhor garantir a todos os norte-americanos uma velhice em segurança, ou disponibilizar aos cidadãos britânicos um tratamento médico de primeira ordem sem ter de pagar de imediato, não era novidade. Mas o que não tinha precedente era a ideia que o Estado fazia melhor essas coisas, e que por isso elas deviam ser feitas pelo Estado.


Um livro brilhante, escrito em condições terminais, pelo historiador britânico Tony Robert Judt (1948 - 2010). Marxista sionista na juventude, Tony Judt rompeu com o sionismo depois de viver em Israel na década de 1960, e depois com o marxismo na década seguinte. Declarando-se um "social democrata universal", como historiador o seu trabalho concentrou-se na história da Europa do pós-guerra, sendo o seu internacionalmente aclamado "Postwar" considerado um livro de referência sobre o período.

A sua actividade acadêmica levou-o à liderança do Instituto Erich Maria Remarque em Nova Iorque depois de assumir a cátedra de mesmo nome na Universidade de Nova Iorque.

Algumas semanas antes de falecer Judt declarou que: "Vejo-me primeiro e acima de tudo, como um professor de história; depois como um autor que escreve sobre a história da Europa; de seguida como um comentador de assuntos europeus; depois como uma das vozes públicas dos intelectuais da esquerda americana; e só então, de forma ocasional, como um participante oportunista sobre a dolorosa discussão na América sobre a questão judaica ..."

Em 2008, foi-lhe diagnosticada uma esclerose amiotrópica lateral, também designada por doença de Lou Gehrig. A partir de Outubro de 2009, ficou paralisado do pescoço para baixo, mas apesar deste estado foi capaz de continuar a leccionar e ditar este magnífico livro. Este é uma verdadeira dádiva, um legado extraordinário, donde se destaca a lucidez, a perspicácia da análise, e a profundidade do conhecimento e das ilações do seu autor.

Mas qual é a causa, segundo Judt, do nosso mal-estar colectivo, dos nossos descontentamentos hodiernos? Nas palavras do autor:

"Há algo de profundamente errado no modo como pensamos que devemos viver hoje em dia. Durante 30 anos orgulhámo-nos do contrato social que definiu a vida da sociedade do pós-guerra na Europa e na América - a garantia de segurança, estabilidade e justiça. Tudo isto foi perdendo o seu real significado, revestindo agora em muitos aspectos apenas meras formalidades. Questões anteriormente pertinentes, em tempos até do foro do político, sobre a bondade ou a justiça das coisas, deixaram de ser colocadas ...

A qualidade materialista e egoísta da vida contemporânea não é intrínseca à condição humana. Muito do que hoje parece 'natural' remonta aos anos 80: a obsessão pela criação de riqueza, o culto da privatização, as crescentes disparidades entre ricos e pobres. E sobretudo a retórica que vem a par de tudo isto: admiração acrítica dos mercados sem entraves, desdém pelo sector público, a ilusão do crescimento ilimitado.

Não podemos continuar a viver assim. O pequeno crash de 2008 foi um aviso de que o capitalismo não-regulado é o pior inimigo de si mesmo: mais cedo ou mais tarde há-de ser vítima dos seus próprios excessos e para salvar-se recorrerá novamente ao Estado ..."


Quanto à capacidade das nossas lideranças políticas na condução dos nossos destinos, o veredicto de Judt, não poderia ser mais claro:

" ... as democracias ocidentais foram lideradas por uma classe distintamente superior de estadistas. Quaisquer que fossem as suas afinidades políticas, Léon Blum e Winston Churchill, Luigi Enaudi e Willy Brandt, David Lloyd George e Franklin Roosevelt representavam uma classe política profundamente sensível às suas responsabilidades sociais e morais. É uma questão em aberto se foram as circunstâncias que produziram os políticos, ou a cultura da época que levou homens deste calibre a entrar para a política. Hoje nenhum desses incentivos está a funcionar. Politicamente falando, a nossa época é de pigmeus."

E há também um lado ético da discussão, que na minha opinião, é limpidamente sintetizado pela citação de John Stuart Mill que serve de mote para o sub-capítulo sobre o Mercado Regulado:

"É uma ideia essencialmente repugnante, a de uma sociedade que se mantém unida apenas pelas relações e sensações despertadas pelo interesse pecuniário".

Em nossa opinião, este livro é uma leitura obrigatória para todos que querem entender os condicionantes e as motivações dos protagonistas neo-liberais que ameaçam destruir a estabilidade e a igualdade social construída ao longo décadas pelas sociedades democráticas ocidentais mais avançadas.

Orfeu B.

domingo, 31 de julho de 2011

LENDAS DA ÍNDIA



A afabilidade do Luís Filipe Castro Mendes só tem tido para mim paralelo no discreto classicismo da sua poesia.

Desde há anos que acompanho a sua poesia e o rigor elegante da sua obra e reconhecendo nela a primazia dada ao canto do amor.

Estas "Lendas da Índia", resultantes por certo da sua vida de diplomata errante, vêm trazer algumas surpresas. Primeiro, o verso livre que substitui a forma clássica dominante na poesia anterior, só deixando no final do livro dois comoventes sonetos à morte do pai. Segundo, a dominância de uma outra música, menos "sinfónica", porventura, mas mais inquieta, melancólica e tangente ao tema do amor como presença permanente mas enublada pelo tecido translúcido da reflexão sobre a pertença e não pertença, a pátria como raiz em memórias e sinais inequívocos da História dos portugueses na Índia.

A erudição do autor tem o condão de não obscurecer a poesia mas de lhe conferir uma espessura tecida em retratos, reflexões e sussurros nascidos de prosódia envolvente, lenta e bela.

Luís Filipe Castro Mendes nunca foi um poeta especialmente referenciado. E é lamentável. Porque vale muito a pena ser lido. E, hoje por hoje, será uma das poucas vozes que prolonga a dimensão da grande poesia do século XX.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Solar


If an alien arrived on earth and saw all this sunlight, he'd be amazed to hear that we think we've got an energy problem. Photovoltaics! I read Einstein on it, I read you. The Conflation is brilliant. And God's greatest gift to us is surely this, that the photon striking a semiconductor releases an electron. The laws of physics are benign, so generous. And get this. There's a guy in the forest in the rain and he's dying of thirst. He has an axe and he starts cutting down the threes to drink the sap. A mouthful in each three. All around him is wasteland, no wildlife, and he knows that thanks to him the forest is disappearing fast. So why doesn't he just open his mouth and drink the rain? Because he's brilliant at chopping down threes, he's always done things this way, and he thinks that people who advocate rain drinking is weird. The rain is our sunlight, Professor Beard.

Solar


Solar é uma ambiciosa novela, cuja maior parte dos críticos qualifica como satírica. Não há dúvida que a história tem momentos hilariantes, porém não há como não pensar na degradação duma mente brilhante, e as decorrentes implicações, como uma tragédia em pequena escala.

A novela aborda uma das grandes questões do nosso tempo, o problema do aquecimento global, por meio das vivências de Michael Beard, recipiente do prémio Nobel de Física, pela descoberta da "conflação". Supostamente, este fenómeno consiste numa subtil configuração electrónica que dá origem a uma emissão de fotões análoga à emissão espontânea e estimulada desvendada por Einstein em artigos de 1916 e 1917, e cuja aplicação tecnológica mais notável é o laser. Naturalmente, estamos no domínio da "física ficcional".

O obeso, calvo e quase sexagenário Michael Beard vive essencialmente dos louros auferidos pela descoberta da conflação e da remuneração que recebe por emprestar o seu nome a instituições científicas de renome e a uma recente iniciativa do governo britânico para responder à questão do aquecimento global através de ideias inovadoras.

Depois do fracasso do seu quinto casamento, Beard vê-se, por força dum bizarro acidente, na posse dum dossiê contendo ideias, esboços e as equações dum projecto de fotossíntese artificial com revolucionárias implicações tecnológicas, que foram desenvolvidas por um jovem pós-doutor (pós-doc) associado ao instituto de inovação britânico. A apropriação das ideias do falecido pós-doc, permite a Beard relançar a sua carreira e protagonizar uma acidentada cruzada para salvar a humanidade do desastre ambiental.

Um livro que demonstra eloquentemente as extraordinárias capacidades literárias de McEwan, autor de obras notáveis como Amsterdam, On the Chesil Beach, Saturday, The Daydreamer, entre outras.

Orfeu B.

terça-feira, 26 de julho de 2011

UM COPO DE RUM E UM BOLERO


Existe uma espécie de Clube de fãs da literatura de Leonardo Padura. Quando abrirem as inscrições serei um dos primeiros sócios.

Li todos os romances do autor em que a personagem principal é o inspector Mário Conde, polícia amante de Hemingway e escritor frustrado. Servindo-se da estrutura dos melhores policiais, Padura tem-nos dado um retrato corajoso da Cuba que ama e onde vive. E digo corajoso porque, à margem da propaganda oficial, não esconde os seus podres, as suas contradições, os seus desacertos. Mas traz-nos um amor pela sua terra servido por uma narrativa cheia de música, melancolia e um tremendo respeito por valores de verdade, solidariedade e amizade como é raro ver nos escritores do chamado pós-modernismo.

Na sua escrita, a cidade de Havana está sempre presente com o seu cheiro, o seu som, o seu mar, os seus habitantes generosos e pobres. Dela o autor faz o cenário de quase todos os seus livros. E em todos há uma melancolia dos tempos idos, dos tempos da juventude, dos tempos em que os valores eram claros e inscritos a preto e branco nas ruas percorridas por uma boémia tropical.

Neste romance, Padura vai mais longe. Conta-nos duas histórias que se cruzam e implicam com cerca de século e meio de distância e que ambas nos falam do amor à pátria (parece que esta palavra não está na moda…) e à essência do que é o amor à Ilha de Cuba.
Ao longo do romance e através das suas memórias intituladas “Romance da minha vida” tomamos conhecimento da história de José Maria Heredia, revolucionário independentista e anti-esclavagista, aplaudido poeta inicial da literatura Cubana na primeira metade do séc. XIX, exilado na maior parte da sua vida.

Por outro lado temos Fernando Terry, expulso no início dos anos 80 do séc. XX professor da Universidade por suspeitas de dissidência.

Fernando foge para Madrid e regressa a Cuba 20 anos depois para procurar os escritos perdidos de Heredia, para ver o mar e a Ilha, para se encontrar com os velhos amigos, para se confrontar com os seus fantasmas, para tentar saber quem o denunciou injustamente e o condenou ao exílio e para renascer para o amor que julgava abandonado e esquecido numa gaveta do passado.

São ambas histórias de exílio e nostalgia que se cruzam e se iluminam num exercício brilhante de cruzamento de tempos e de palavras que convergem para um mesmo amor à terra e à identidade cubanas.

Pelo meio vamos conhecendo parte da história da maçonaria cubana que teve um papel fundamental na luta pela liberdade e pela independência e que, talvez por isso, tenha sido a única a ser autorizada nos países socialistas.

Tudo isto constitui um tecido narrativo delicioso onde Padura diferencia o tido de escrita, dando um desenho completamente diferente ao que é supostamente escrito por Heredia (a que confere um perfil exaltado e romântico) da narração dos passo de Fernando que trazem a música de um bolero nostálgico como compete a qualquer bolero. Senão veja-se:

“- Foste tu (que me traíste)?
Miguel Angel demorou a resposta com os olhos avermelhados cravados nos de Fernando.
- Não – disse. – Não fui eu. Porque se tivesse sido eu, ter-me-ia matado – afirmou levando outro cigarro aos lábios e acendendo-o. - Mas posso ajudar-te a saber quem foi.”

A seguir a isto, que nos resta? Um copo de rum e um bolero.

sábado, 23 de julho de 2011

Depois de Stieg Larsson

Lars Kepler é o pseudónimo de um casal de escritores Suecos (ela é descendente de Portugueses e especialista em Fernando Pessoa). O que tem de fabuloso é que não deixaram órfãos os fãs pela trilogia de Stieg Larsson: Millennium porque nos seus livros, principalmente no recentemente editado pela Porto Editora "O Executor", tem todos os ingredientes que são necessários que nos levam a ficar "amarrados": além do mistério de algumas mortes que surgem como se fossem suicídio ou acidentes, um comissário desconfiado das coisas que lhe aparentam como definitivas e que contraria sempre a vontade dos seus chefes, grandes interesses económicos por trás de mortes extremamente violentas, acção quase cinematográfica, crime, perversidade, etc...
Há quem diga que este tipo de literatura é de cordel, uma literatura fácil sem grande profundidade, sem grande experimentalismo literário, com um argumento simples onde os bons ganham e os maus perdem. Deve ser, eu não percebo nada de literatura, mas este foi um livro que me deu imenso prazer em ler, devorei-o tal como o fiz com a triologia de Stieg Larsson e com os chocolates. Ao ler os policiais de Lars Kepler e Stieg Larsson compreendemos como a estrema-direita e outros grupos radicais de direita são um fenómeno em crescimento nos países nórdicos e que este recente atentado na Noruega ilustra esta violência estrema e eminente.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

UM CONTRATO DE LEITURA


Cada escritor estabelece virtualmente um contrato de leitura com cada leitor. Esse contrato contempla a forma como o leitor tem de se relacionar com o texto.

Há textos que não exigem muito. Basta seguir em frente com ligeireza para chegar ao fim e saber como é que a história acaba. Neste tipo de narrativa grande parte da escrita serve apenas, de alguma forma, para passar tempo.

Para a minha amiga Filomena toda a escrita é importante porque toda ela, cada parágrafo, cada frase nos desafia e nos faz caminhar frequentemente em vários sentidos diferentes. É importante lê-la toda e com toda a atenção porque além de saber como é que a história acaba, é ainda determinante conhecer cada pormenor, cada gesto das personagens, cada cheiro, cada frase e cada viravolta da narrativa.



Filomena Marona Beja confere à sua escrita um ritmo intenso e compassado e um arco narrativo que avança, recua e se desloca, dando-nos uma visão caleidoscópica dessa mesma narrativa vista de vários pontos de vista diferentes.

É neste mecanismo que assenta esse contrato de leitura que exige uma grande atenção e disponibilidade por parte do leitor que se torna numa espécie de organizador do painel de mosaico em que se move o entretecer da história narrada.

Os seus contos são deliciosos. Alguns, breves voos de asa. Outros quase noveletas. Em todos e em diferentes épocas é quase sempre o mundo feminino que, com mais ou menos discrição nos é revelado, numa multiplicidade de pormenores que nos envolve e se interrompe aqui ou ali para nos deixar um lugar de participação na própria invenção do tempo narrado.

As fotografias que acompanham o conto são do André Beja, filho da Filomena e excelente fotógrafo. Ficam muito prejudicadas pelo processo de impresão e pela qualidade do papel. O João Rodrigues, editor da Sextante que publicou o livro, foi o primeiro a lamentar o facto e a prometer que numa 2ª edição as fotografia serão tratadas com outro respeito.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Verão



Once upon a time he used to think that the men who dreamed up the South African version of public order, who brought into being the vast system of labour reserves and internal passports and satellite townships, had based their vision on a tragic misreading of history. They had misread history because, born on farms or in small towns in the hinterland, and isolated within a language spoken nowhere else in the world, they had no appreciation of the scale of the forces that had since 1945 been sweeping away the old colonial world.

Summertime


Verão completa a excitante trilogia biográfica ficcionada de J. M. Coetzee, Prémio Nobel de Literatura de 2003, autor de obras notáveis como Desgraça, As vidas dos animais, Elizabeth Costello, Diário de um Mau Ano, entre outras.

Verão dá seguimento aos relatos Infância e Juventude, ambos escritos no estilo directo e preciso do autor. Em o Verão no entanto, encontramos uma distorção muito original da realidade. A biografia, que se concentra nos anos essenciais da formação do escritor, período identificado como entre 1972 e 1977, é-nos contada através de entrevistas a amigos e conhecidos do escritor, organizadas por um jovem escritor inglês que nunca conheceu o já falecido autor J.M. Coetzee!

O distanciamento ganho com o subterfúgio de tratar-se a si mesmo como outra pessoa e de ser a biografia póstuma, permite ao escritor sul-africano, descrever-se de forma implacável, auto-irónica, e muitas vezes divertida. Destas entrevistas surge um homem desajeitado, extremamente ligado aos livros, e duma timidez que não lhe permite se relacionar facilmente com as pessoas. Um homem que é visto pela própria família como um estrangeirado, com uma obstinada insistência em realizar tarefas manuais, um excêntrico por ter cabelos longos e barba, e por supostamente escrever poesia. Alguém que procurou abandonar a sua tribo - o autor completou o seu doutoramento em linguística das línguas germânicas na Universidade do Texas, em Austin - mas que não foi capaz de sobreviver no estrangeiro.

Um livro de grande riqueza humana, mesclado com experiências literárias de grande interesse. À narrativa biográfica de o Verão, juntam-se textos escritos pelo autor no período em questão, e nestes é evidente a difícil e extremamente crítica relação que o autor mantém com o seu país natal - de que o enxerto acima é um exemplo. De facto, em 2002 J.M. Coetzee emigrou para a Austrália, onde é Professor de Literatura na Universidade de Adelaide.


Orfeu B.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

“Tu és a minha terra” in Sparkenbroke de Charles Morgan


Só Para o Meu Amor é Sempre Maio

Cartas do Verão de 1943

de António José Saraiva / Maria Isabel Saraiva

1997, Gradiva

Em tempos idos eram as cartas… Levavam e traziam sentimentos, despertavam e acalmavam saudades. Cada tempo tem o seu quê de vantagem. Não gostaria de prescindir, hoje, das vantagens da comunicação mas lamento a perda das cartas. Havia um lado bom na sua lentidão, no seu registo perene, na possibilidade de se poderem acariciar nas mãos. Não, não dá para colocar uma fita à volta de uma panóplia de mails, ou sms, chorar sobre eles ou estreitá-los de encontro ao coração. Por muito démodé que seja o meu lamento é um lamento.

Este livro, agora relido, consta da correspondência trocada entre António José Saraiva e sua futura mulher, Maria Isabel Saraiva, durante os meses de Verão de 1943. As suas cartas permitem-nos acompanhar o enamoramento, pinceladas da vida profissional, dilemas pessoais, registos da época, quase como uma autobiografia a duas mãos.

Tudo começou, segundo ela conta, numa aula dele a que ela assistia, quando ele era primeiro-assistente do professor Vitorino Nemésio.

“A menina não se importa de desenvolver mais o que disse? Gostei muito de a ouvir. As suas palavras ficaram a dançar no ar.”

Começou aí e as palavras continuaram a dançar… O António esperava-a à saída da Faculdade de Letras e iam da Rua do Arco até Santos, onde ela apanhava o eléctrico para Belém. Ambos gostavam de andar a pé, gosto que mantiveram vida fora. Falavam de tudo, da guerra, raramente de política, sobretudo de Literatura. António gostava muito de Camões, é de um soneto de Camões, de que António gostava particularmente, o título deste livro.

Quando se conheceram a Isabel namorava outro rapaz, um bom partido, com o qual se sentia incompreendida. António começa por ser seu confidente, o namoro só começará mais a tarde, a 8 de Julho precisamente, segundo ela conta. Têm a oposição da família, até no casamento que acontecerá a 16 de Outubro do mesmo ano, em cerimónia simples, também por esse facto, nos Jerónimos.

As cartas de um e de outro contam das impaciências e da paciência. De detalhes e contratempos próprios da época: no mandar um telegrama, fazer um telefonema, uma viagem ou do receber uma encomenda de livros. Desfiam-se os relatos das hora a que se escreveu, da data em que a carta devia ter chegado, da circunstância em que chega… Num ritmo lento que parece tornar meses em anos. Neste passeio ao passado acompanhamos tricas dos colegas da Universidade, Vitorino Nemésio, Óscar Lopes, Agostinho da Silva... As relações familiares, as dificuldades económicas. É curioso o preciosismo com que enumeram os gastos, os preços do que compraram ou pretendem comprar. Detalham pequenos nadas que só se partilham com o beneplácito do amor e da ternura.

A relação de Isabel e António cria um espaço próprio apesar de muito condicionada por tudo o que gira à volta deles. Passamos pela História, episódios com a censura, notas de exames da Faculdade, um desentendimento do António José Saraiva com Vitorino Nemésio (ficarão de relações cortadas e apenas Isabel continuará a relacionar-se com ele). Andanças várias com detalhe dos lugares e pessoas que vão cruzando as suas vidas. Falta-lhes a loucura das grandes paixões, são comedidos na ousadia. A leitura das cartas permite-nos fazer um esboço da maneira de ser de um e de outro, ainda em fase de definição e ver, na época, um certo lado preconceituoso e conservador de ambos. Numa carta António admoesta-a pelo facto de se ter pintado, facto que ele descobre através de uma foto. E na carta seguinte ela justifica-se, entregando-lhe a razão, algo submissa e recatada como era suposto uma boa mulher ser na época. Noutra ela assume a sua dificuldade em relacionar-se entre cheiros ou tarefas mais “populares”. No entanto, Maria Isabel vai revelando nas cartas uma força uma capacidade maior, por acção ou conciliação, de resistir a adversidades. Interessante a forma como o lado feminino evolui e ancora uma relação. António dizia-o embora, creio, sem ter total consciência do alcance do dito: “Tu és a minha terra.”

Interessante a referência aos livros e histórias de amor que os entusiasmam e que eles comentam nos pontos em se sentem mais próximos ou mais afastados, como Sparkenbroke ou Tristão e Isolda, na tentativa de chegarem à melhor definição do que sentem um pelo outro, de encontrar um caminho, uma vida comum dentro da harmonia. Ou as reflexões sobre o pecado e a moral seja nos sentimentos seja na forma de ver o mundo exterior a eles. Lemos sugestões para a uma tese, conselhos para um trabalho ou recomendações sobre a saúde. Preocupações dele pela magreza dela. Ou os planos para mobilar a casa com parcos recursos. Tudo parece arquitectura de um plano maior para o seu amor.

“quando nos encontrámos começamos a a caminhar naturalmente como se sempre tivesse sido assim” AJS

"Estou mais triste que contente mas é uma tristeza calma e sossegada" MIS

“O correio de hoje não trouxe carta tua. Ontem, antes de te conseguir falar, tive uma grande questão com o telefonista do hotel” AJS

"O Correio da Guarda chega cá às 9h30m da noite. Não chegaste a comprar a gravata? Gostei muito de falar contigo ontem. Foi o dia em gostei mais. Pareceste-me muito simpático. Responde às minhas cartas" MIS

“Ontem pensei que, se tu morresses, eu também morria. Só posso pensar a vida contigo. Que coisa extraordinária!” AJS

"Quando eu penso que poderíamos não nos ter encontrado falta-me logo o ar, sinto o desespero de quem quer respirar e não pode" MIS

“Tem confiança em mim. Eu sou uma cousa segura. Tenho a certeza que no fim da vida pensarás que valeu a pena viver comigo. Valeu, porque tu vieste comigo.”AJS

"Eu sinto saudades de tudo de ti. Tenho saudades de falar contigo, de apertar as tuas mãos, de andarmos de ombro a ombro. " MIS

“Meu amor, não te sei dizer mais nada. Logo telefono-te. Mas a telefonar-te também não me sinto bem. Estamos a 12 de Agosto. Vais-te embora daqui a oito dias. O tempo parece-me comprido. O que já passou tem custado a passar; mas o que está para vir ainda mais. Ainda não “criei a situação” de estar longe de ti. “AJS

"Não desperdiçamos hora a hora uma riqueza que nunca mais recuperaremos. não leias isto como umas palavras quaisquer, vê se por detrás das palavras consegues sentir a força e a vida das coisas"MIS

“Sinto cousas para te dizer esta noite. Quando te escrevo agora fujo para o meu país. Às vezes todo o mundo à roda me parece tão diferente do nosso país. Tu és a única pessoa com quem posso ser ingénuo e crente. Mas nós dois juntos talvez possamos ser ingénuos e crentes no mundo” AJS

"Cada dia que vier é uma prova e eu quereria muito que no fim do dia pudéssemos dizer que vencemos" MIS

Há uma certa puerilidade. Estamos em 1943… Não é de todo a única justificação, mais que a época pesam, talvez, as características da personalidade de cada um. Não sei como terá sido depois. Se o apaziguamento que ansiavam os deixou menos românticos. Não fui à procura de detalhes do seu relacionamento posterior. Mas é elucidativo e enternecedor o que escreve Isabel, no prólogo, sobre o efeito da leitura das cartas à data da publicação:

“Depois… a vida foi o que foi. Mas houve coisas boas e muito bonitas: uma delas são os três filhos, o António, o José António e o Pedro. Hoje ao reler as cartas, apaixonei-me – e não digo tornei a apaixonar-me porque os sentimentos não se repetem - por quem as escreveu, e amei aquele homem como se fosse pela primeira vez, como se nada do que se passou entre aquele Verão de 43 e hoje tivesse acontecido”.

Maria Isabel revela nesta breve introdução uma capacidade de análise distanciada e lúcida distinta já da Menina e Moça que parafraseava Bernadim Ribeiro. Revela o seu lado de mulher mais capaz de decompor e analisar a realidade, de agir com força e determinação por entre as vicissitudes da vida, sobre os seus pequenos desencantos.

Qualquer pessoa apaixonada sonha, romanticamente, cartas que cheguem pelo meio dos dias comuns sem mais razão que aquela que o coração dita. Anoitecem os dias, ensombra-se o espírito na espera se o carteiro não tocar, uma, duas vezes, ad eternum … O momento escrito permite guardar a memória do vivido e, assim, na leitura, ser revisitado, vivido, ad eternum

Se esta partilha de livro vos inspirar à leitura terá cumprido sua missão. Se vos colocar no trilho da escrita epistolar alguém por certo vos agradecerá.