quarta-feira, 27 de agosto de 2008

O Anjo Literário


Há algum tempo atrás falei-vos aqui de “Um Diário de Leituras” de Alberto Manguel. Esse livro fez-me recordar outra obra, lida há alguns meses atrás, e que constitui um exercício literário deveras interessante. Trata-se de “O Anjo Literário” de Eduardo Halfon. A pergunta de base do autor é “Porque é que alguém começa a escrever? Existirá o momento da primeira inspiração literária, de um despertar narrativo”. Eduardo Halfon oferece-nos assim cinco exercícios difíceis de catalogar (oscilando entre o conto, o “ensaio” e um diário reflexivo do próprio autor) sobre Herman Hesse, Ernest Hemingway, Raymond Carver (um dos meus contistas de eleição!), Ricardo Paglia (que confesso desconhecer) e Vladimir Nabokov. A resposta à pergunta de base imaginada por Eduardo Halfon não é linear e esse momento de inspiração é interpretado/imaginado de diversas maneiras. E o que é belíssimo neste livro é que Eduardo Halfon consegue mimetizar o estilo de cada um dos cinco autores ao descrever “esse momento de inspiração literária”.Por exemplo, no caso de Herman Hesse é descrito um dia na infância passado a correr na floresta acompanhado de um duende. A magia de Herman Hesse está presente: “Ser mago. Sem o saber, sem jamais o ter pretendido, o doutor Gundert gerou em Herman o seu mais intenso desejo: aspira a converter-se em mago. Desde muito pequeno que sente um profundo descontentamento por aquilo a que os outros costumam chamar realidade, considerando-a uma ridícula convenção dos adultos. Quer encantá-la, transformá-la, potenciá-la. Deseja fazer crescer maçãs durante o Inverno. Concentra-se em encher os bolsos de ouro. Sonha encontrar tesouros, paralisar os inimigos, ressuscitar os mortos e tornar-se invisível”. Um mentira sobre a origem de uns figos leva o pai de Herman Hesse a castigá-lo obrigando-o a passar uma noite no sótão, castigo esse que funciona como fonte literária. Herman Hesse descobre no fundo de um caixote um grosso livro amarelo. Abre-o. E começa a ler as peripécias, os delitos e os sofrimentos de um bandoleiro alemão. “Vira as páginas com irreprimível ansiedade até que, algumas horas mais tarde, regressa ao início e começa a ler tudo de novo. Está encantado. Pela primeira na sua vida uma narrativa inspirou-lhe um profundo e prazenteiro sossego. Através do pirata, entende-se a si mesmo. E tudo, pensa Herman, apenas com a palavra escrita”. Para citar mais um exemplo, Eduardo Halfon, quando se debruça sobre Raymond Carver, adopta o estilo depurado, desencantado, de frases curtas descritivas característico do autor. Tal como em Raymond Carver o texto começa num “corte temporal” e termina sem um fim concreto. É-nos relatado o dia-a-dia de Raymond Carver jovem, casado com a sua primeira mulher, já com dois filhos. A presença constante do álcool, das dificuldades económicas, o dia-a-dia ressacado e desencantado, a paixão pela leitura e pelo seu autor inspirador (Chekov) estão disseminadas pelo texto. Vamos encontrar de início Raymond Carver numa lavaria de Iowa City, a ler um conto de Chekov enquanto a roupa dos seus quatro filhos dava voltas em quatro máquinas de lavar. “Não se lembrava de quando decidira tornar-se escritor. Nem porquê. Porém, sem que disso se apercebesse, tinha afastado a possibilidade de escrever um romance. Para além de não conseguir concentrar-se durante períodos muito longos, achava que os romancistas viviam num mundo que, para eles, tinha sentido. O seu mundo, em contrapartida, era insensato. Passava o mês inteiro a preocupar-se com o pagamento da renda e a manutenção dos filhos. Não havia tempo para grandes narrativas. Só escrevia textos de uma assentada. Poemas. Contos. Depois, durante semanas, reescrevia-os com prazer, dez, quinze, vinte vezes”.
Estes belos textos de Eduardo Halfon são acompanhados de um diário do período de escrita e de uma descrição de forma reflexiva sobre o próprio processo da sua escrita.
Em suma, uma excelente obra e cinco belíssimos exercícios.

2 comentários:

JOSÉ FANHA disse...

Já o li. Vi-o na livraria no dia em que saiu a público e o título bem como a badana não engavam.

É um exercício divertido e delicioso este livro desse jovem... Engenheiro apaixonado pela leitura e que acabou por se tornar escritor.

Seria interessante fazer uma bibliografia de livros cuja trama ficcional ande à volta de livros, de bibliotecas, do próprio acto de ler.

Abraços,

JFanha

Anónimo disse...

Recentemente, publiquei na revista Rede2020 uma recensão à obra O Anjo Literário, do escritor guatemalteco Eduardo Halfon. A ligação para a minha crítica é:

http://sites.google.com/site/mancelos/home/OAnjoLiterario.pdf

Um abraço,

João de Mancelos