terça-feira, 22 de junho de 2010

O TEMPO A ESCORRER ENTRE OS DEDOS



A ecrita da minha amiga Filomena Marona Beja é construída como um painel de azulejos que vai crescendo numa multiplicidade de apontamentos, pinceladas, breves retratos, avanços e recuos, frases e momentos suspensos no ar, acontecimentos entrevistos numa espiral que nos guia através de vários pontos de vista para o centro da narrativa.

Na sua escrita a Filomena põe o tempo a escorrer por entre os dedos. É assim em "As cidadãs", "A duração dos crepúsculos" ou nesse excelente "A cova do lagarto" que venceu o prémio de romance da APE em 2007 (os romances dela que li).

A autora trabalha extensamente a matéria do tempo em que situa as suas ficções. Trabalha-o por dentro, de uma forma tão cuidadosa que nos faz sentir por dentro a respiração desse tempo que porventura apenas conhecemos de uma certa forma de frieza característica dos manuais de História.

Este "Bute daí, Zé" li-o com paixão. Porque o tempo deste livro é o tempo da minha vida. E das minhas paixões. Frequentei grupos de jovens nalgumas coisas semelhantes ao grupo em que se envolvem os principais personagens deste romance. Passei por algumas inquietações aqui retratadas.

Momentos da leitura houve em que me identifiquei muito com a narrativa. Também eu sonhei assim, reagi assim, fiz aqueles disparates. Páginas à frente já achava que aquela narrativa estava errada, não era assim o que a minha memória me conta desse tempo.

É o problema do romance histórico sobre uma História que ainda se pode escrever com o próprio sangue e memória do leitor.

Intensamente voei neste romance e, ao chegar ao fim, pareceu-me que o grande personagem do romance é o próprio tempo. Esse tempo fantástico que agradeço ter vivido como jovem anti-fascista a rebentar de raiva nos últimos anos do Estado Novo e a voar em sonhos loucos e utopias desmedidas nos anos de fogo da revolução de 25 de Abril de 1974.

Um tempo que desaguou numa ressaca que nos deixou um sarro muito azedo na boca. E é já nesse outro tempo fosco da ressaca e melancolia que se deu o trágico acontecimento sobre o qual a Filomena construiu o seu romance: o assassinato de um militante de extrema-esquerda por um skin no final dos anos 80.

Não sei se a Filomena, neste seu romance, teve a explícita intenção de deixar as personagens resguardadas na sombra da voragem das suas própias acções.

Sei que a princípio, na primeira metade do romance, os personagens confundiram-se-me como se pertencessem a um mesmo corpo. Como se os seus papeis pudessem ser desempenhados alternadamente por um e outro. Como se todos fossem apenas facetas de um mesmo tempo.

É a fase do imediatamente antes e do imediatamente depois da revolução. Talvez esse tempo fosse demasiado vivo e as pessoas que o habitavam se dissolvessem nele e, só mais tarde, no tempo cinzento do desencanto começassem a reconhecer a sua própria individualidade.

Talvez tudo isto venha dos cenários onde dança a minha memória, que se confronta e se interroga com as memórias que fazem a matéria deste romance.

Mas os livros servem justamente para cada um construir e reconstruir o romance da sua própria vida, não é?

1 comentário:

Anónimo disse...

Um abraço, meu caro ZÉ!
Filomena