domingo, 4 de março de 2012

O clube do urânio de Hitler



O século XX foi um dos mais brutais da história. Duas grandes guerras, extermínios em massa, massacres e humilhações perpetradas por sistemas totalitários e ditaduras de toda espécie. Mas nada se compara à força destrutiva do nazi-fascismo que, só na Segunda Grande Guerra, ceifou cerca de 50 milhões de vidas. O mundo resultante dos escombros dessa destruição sem precedentes pode não ter sido o mais auspicioso, mas não há qualquer dúvida de que a vitória amargamente pírrica dos aliados foi o melhor resultado possível. Porém, a história poderia ter sido diferente se Hitler tivesse armamentos nucleares. A análise do desenvolvimento do programa nuclear de Hitler é o objecto deste livro, que disseca, com rigor científico e histórico, os dossiers da Operação Epsilon, que foram tornados públicos em 1992.

Esta operação secreta dá seguimento a uma operação anterior, a Operação ALSOS, que visava obter, na esteira do avanço anglo-americano através Europa liberta do nazismo, informação sobre o desenvolvimento nuclear na Alemanha durante a guerra. A Operação aliada Epsilon, que se iniciou com a derrota da Alemanha na primavera de 1945 e se estendeu até o início de 1946, consistiu na captura, transporte, alojamento e observação de dez dos mais eminentes cientistas nucleares alemães. Dentre esses encontravam-se dois Prémios Nobel, Max von Laue (que não esteve envolvido nas actividades de desenvolvimento nuclear e que foi um resistente ao regime) e Werner Heisenberg, para além de Otto Hahn, que descobriu experimentalmente a fissão nuclear em 1938, e que acabou por ser galardoado com o Prémio Nobel de 1945, precisamente enquanto estava sob detenção.

Estes dez cientistas (excepção feita a von Laue), faziam parte do "Uranverein" (Clube do Urânio) que, durante a guerra, foi incumbido pelo Exército Alemão de desenvolver, sob a liderança de Heisenberg, uma bomba atómica e para tal um reactor nuclear. Depois de capturados, os cientistas foram instalados numa casa de campo, Farm Hall, em Godmanchester, perto de Cambridge, e, sem o seu conhecimento, foram mantidos sob escuta.

A transcrição das conversas desse grupo é extraordinariamente reveladora e desmente categoricamente a ideia propagada depois da guerra, muito particularmente por Heisenberg e Carl von Weizsaecker, um hábil e politicamente bem colocado membro do grupo (era filho dum proeminente diplomata do Reich, Ernest von Weizsaecker), segundo a qual os cientistas alemães tinham desde o início adoptado a postura ética de não desenvolver armas nucleares para Hitler, ao passo que os cientistas anglo-americanos, apesar de livres, não tinham tido qualquer problema de consciência por desenvolver e utilizar as armas nucleares que haviam concebido.

Mas esta versão é cabalmente desmentida pela verdade dos factos, como nos revela a conversa livre entre os membros do grupo. E a verdade pode ser muito simplesmente resumida: as armas nucleares não foram desenvolvidas na Alemanha porquê os cientistas alemães não haviam compreendido aspectos fundamentais no desenvolvimento num reactor nuclear (a palavra alemã utilizada é "Machine") e da complexa problemática física e técnica envolvendo a construção e a detonação duma bomba nuclear. Contudo, a intenção era claríssima no que diz respeito a Heisenberg e von Weizsaecker, como o revelam inúmeros documentos, memorandos, pelo menos uma patente (de von Weizsaecker) e a documentação de discussões e apresentações com e para importantes membros da elite Nazi. Naturalmente, mesmo que o problema de construção da bomba atómica tivesse sido completamente compreendida pelos cientistas alemães, é pouco provável que estes pudessem mobilizar os recursos materiais, e sobretudo humanos, para a monumental tarefa de libertar a energia nuclear para fins militares. Mas a questão é que a intenção primordial do programa nuclear alemão era o desenvolvimento de armas nucleares.

É particularmente interessante a transformação psicológica que teve lugar na mente desses cientistas enquanto estiveram em cativeiro. Inicialmente, supuseram que haviam sido capturados pelo estágio superior dos seus conhecimentos em física nuclear. De facto, ao serem interrogados pelo físico holandês-americano Samuel Goudsmit (que foi incumbido para a tarefa no contexto da Operação ALSOS pelo general norte-americano Leslie Groves, líder administrativo e militar do projecto de construção da bomba atómica aliada, o Projecto Manhattan), nada lhes foi dito sobre o desenvolvimento alcançado pelos aliados. Quando souberam em 6 de Agosto de 1945, através da imprensa, da destruição de Hiroshima por uma bomba cujo material físsil era urânio enriquecido, a primeira reacção foi a de negação. Heisenberg chegou mesmo a afirmar que não se tratava duma arma atómica, mas dum explosivo convencional mais desenvolvido. Subsequentemente, acalentaram a ideia de que uma arma mais desenvolvida que usasse um elemento artificial, o plutónio, a ser produzido num reactor era inacessível aos aliados, e que eles teriam esse trunfo para negociar com os aliados a sua libertação. Contudo, esta ilusão foi rapidamente desfeita pelos factos, dado que em 9 de Agosto, a imprensa de todo o mundo notificava que Nagasaki havia sido destruída por uma bomba de fissão que usava o elemento artificial produzido num reactor nuclear, o plutónio. Perplexos e desmoralizados desenvolvem, pouco a pouco, a tese absurda e mentirosa de que nunca tinham tido a intenção de desenvolver armas nucleares e que estavam, na verdade, empenhados na construção dum reactor nuclear para fins pacíficos. Finalmente, em 14 de Agosto de 1945, Heisenberg dá um seminário técnico para o grupo, onde expõe a sua compreensão de como funcionava uma bomba atómica. A exposição revela impiedosamente todas as deficiências inerentes ao programa alemão, para além do desconhecimento de vários aspectos técnicos, e a incompreensão de muitos dos problemas mais fundamentais associados aos processos físicos relativos à fissão e à detonação do material físsil. Tudo isso sem falar nos milhares de problemas de física, de tecnologia e de produção que os cientistas alemães teriam que solucionar, mas sobre os quais ainda não tinham a mais pálida ideia devido ao primitivo estágio do seu programa nuclear.

O livro de Jeremy Bernstein permite-nos perceber o grau de desenvolvimento atingido pelos cientistas alemães, avaliar com clareza a verdadeira dimensão da degradação moral dos homens que trabalharam para Hitler, e elucidar com exactidão inúmeros aspectos técnicos (Bernstein tem formação em física nuclear) e históricos. Numa síntese final, Bernstein, faz uma rigorosa análise dos vários equívocos que circularam sobre o objectivo dos cientistas do Uranverein e o desenvolvimento da física nuclear na Alemanha durante a Segunda Grande Guerra por conta do desconhecimento das transcrições das conversas de Farm Hall. O livro de Bernstein é uma leitura obrigatória para todos que estiverem interessados na verdade histórica sobre os cientistas nucleares de Hitler.


Orfeu B.


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