domingo, 29 de julho de 2012

A TERRA, O CORPO, A FORÇA DA EMOÇÃO, A FELICIDADE DA ERUDIÇÃO, O PRAZER DE CONTAR UMA HISTÓRIA


Não é frequente os escritores serem tão generosos como valter hugo mãe nas palavras reproduzidas na cinta que envolve este último livro de Afonso Cruz:
 
“Não vou descansar até que todos os leitores descubram o Afonso Cruz. Já prometi usar de violência física para obrigar um a um a ler a maravilha que ele escreve, e não estou a brincar.
Faz-me a alma luxuosa. Passo a ter joias na imaginação.

Estou absolutamente de acordo com o valter. A escrita de Afonso Cruz é como um grande ovo a transbordar de literatura, ou melhor, a transbordar de vida.

Afonso Cruz atinge neste romance um ponto muito alto do seu processo de trabalho. Um sentido duro e trágico da terra e do corpo;  uma erudição partilhada de forma divertida e, por vezes, delirante; uma maneira caleidoscópica de entrelaçar muitas formas de escrita e de referência a outras escritas.

Ao arrepio de uma linha que tende a identificar qualidade literária com geometrismo racionalista, com negritude traçada a regra e esquadro, com uma relação porventura perversa entre leitura e sofrimento, Afonso Cruz faz do processo de criação literária um rio onde desaguam as suas várias formas de se apropriar da respiração da vida e fá-lo de forma em que tragédia e comédia se dão o braço, mas em que, acima de tudo, ressalta o prazer. O prazer de escrever, o prazer de contar, o prazer de pensar, o prazer de inventar, o prazer de viver mesmo nas margens mais ásperas da vida.

Há um jogo fantástico em que o Afonso envolve a sua escrita desde o primeiro livro. Trata-se de um jogo de brincar à erudição, baralhando e voltando a dar, misturando, provocando, divertindo.

Mas neste romance, o Afonso cria um tempo alentejano, uma respiração pesada, uma linha narrativa de Terra, prima dos melhores contos de Manuel da Fonseca. E em redor desse tem entretece e a sua magnífica capacidade de tergiversar, misturar ideias, citações, reflexões avulsas mas subterraneamente interligadas numa trama densa com que nos arranca um sorriso ou uma gargalhada, para logo a seguir nos dar um pontapé no estômago que nos faz perceber que este jogo é muito mais sério do que possa parecer.
 
E é bom sublinhar que a ideia de Jesus Cristo a beber cerveja não é uma graça rasteira mas advém de uma reflexão muito séria do professor Borja, personagem notável, que descobre o fogo do sexo aos 77 anos e que acha que aquilo que cria vida é a morte e que sendo a cerveja resultado do apodrecimento do cereal, é a verdadeira fonte da vida.

No seu jogo de citações, desta vez, o Afonso vai ainda mais longe Inventa um romanceco de cow-boys (que vem em anexo ao livro principal) que é lido por Rosa, a personagem principal, que vai repetir o destino do cow-boy, herói improvável com o nome ainda mais improvável de Harold Estefânia, matador romântico. E desse livrinho, em que o narrador é o próprio deserto, ou seja, talvez aquilo que há de mais próximo do próprio Deus se é que ele existe, saltam muitas citações que vão pontuar a narração central.

Enfim, já era um admirador da escrita do Afonso. Agora sou mais. E acho que este romance junto com “O teu rosto será o último” de João Ricardo Pedro, com o qual, aliás, tem vários pontos de contacto, são os dois romances portugueses que, talvez no último ano, mais me emocionaram.

Isto anda no bom caminho, parece-me. Ao contrário da desgovernação.

Está provado que os homens bons deste país andam muito mais pelas artes do que pela economia e pela política.


1 comentário:

anamarg disse...

Ainda não li este livro, mas fiquei entusiasmada com esta critica.
Comprei recentemente "A Contradição Humana" e gostei imenso. Um livro que deveria ser lido, comentado e partilhado nas nossas escolas.