sábado, 8 de setembro de 2012

“Aparentemente/existe um número infinito de seres vivos/que seguem a lei da probabilidade//O astrónomo pode calcular/onde se encontrará o planeta Júpiter em três mil anos./Mas nenhum biólogo pode prever/onde a borboleta pousará.” Affonso Romano de Sant’Anna


Escolhas

Affonso Romano de Sant’Anna nasceu em Belo Horizonte, em 1937. Foi professor de Literatura em universidades de vários países e um activo participante dos movimentos de vanguarda no Brasil na década de sessenta e setenta. A sua tese de doutoramento versou a poesia de Drummond de Andrade: “Drummond, um gauche no tempo”Drummond que o próprio Affonso substituiu como cronista no “Jornal do Brasil”, em 1984. De 1990 a 1996 esteve à frente da Biblioteca Nacional. Foi o criador do sistema Proler (Plano de leitura no Brasil) e do programa “Uma biblioteca em cada município”. 
Affonso Romano foi e é um personagem interventivo na história do livro e da leitura que muitos tiveram oportunidade de ouvir em Beja, no decorrer das Palavras Andarilhas onde foi um dos convidados. (http://www.palavrasandarilhas.org/)



Ouvi-lo tornou, mais uma vez, claro que andamos há mitos anos a ignorar a importância dos livros e da leitura. Apesar de concordarmos, avançamos, paramos e recuamos como se pudesse ser uma questão intermitente e secundária. Mas é um problema caro, duplamente caro, na sua importância e na factura que pagamos ao negligenciá-lo.
Mas retomo a sua poesia que por isso o trouxe aqui. 
Confesso que a não conhecia, não está publicada em Portugal. Apesar da língua comum assim acontece com muitos. Uma realidade que tarda em mudar por falta de estratégias e generosidade para percorrer mutuamente esse caminho.
No Jardim Público de Beja, o lugar excelente onde decorreram os três dias das Palavras Andarilhas, do desconhecimento passei à descoberta. Havia alguns livros seus vindos do Brasil e neles parei sentada numa providencial cadeira, caso não havia a relva que cresce devagar, a tempo certo e sempre nos devolve a calma que a ausência de verde e de tempo nos tira… Parei, dizia, a ler umas quantas páginas. Não é que hoje em dia a Amazon não nos permita recebê-los, tê-los até a um preço mais simpático que o encontrado nestas feiras ocasionais mas nada se compara ao namoro, da leitura página a página com o toque dos dedos. Assim, entre quatro exemplares de poesia, escolhi esta “Poesia Reunida” de 1965 a 1999.



Foi uma escolha algo representativa no meio de uma vasta obra virada para vários mundos de fora e de dentro do Homem, do homem e da mulher, sempre escrita de um ponto de vista masculino mas numa visão deslumbrada pela pluralidade do feminino. Uma poesia debruçada sobre os problemas sociais e políticos de um país concreto mas que pode ser lida para lá dessa geografia e do tempo em que foi vivenciada e escrita. Alguns, soube depois, são muito conhecidos, foram música e bandeira como aconteceu com “A Implosão da Mentira” Ou “Que país é este?”

“Mentiram-me. Mentiram-me ontem/E hoje mentem novamente. Mentem/De corpo e alma, completamente./E mentem de maneira tão pungente/Que acho que mentem sinceramente. //(…)”

O país pode ser o Brasil, pode ser muitos outros…“Que país é este?”. Responda quem souber…

Diversa é a sua poesia. Como um canivete suíço nem tudo se usa da mesma maneira, e, decididamente, não ao mesmo tempo. Há poemas longos entrelaçados a realidades multifacetadas, de situação social e política, de história, da ciência ou do sentido profundo na existência do Homem. Outros poemas curtos e incisivos. 
Poemas onde as palavras balançam entre dois extremos, celebrando o amor. O espírito e o corpo nem sempre vistos com equidistância mas sempre com encontro e interdependência. E sempre uma visão de homem sobre a mulher que o inspira. Muitas vezes presente o Tempo, o que ele faz, o que estraga e o que acrescenta, o lado dinâmico das vivências na proximidade.

É impossível ler “Mitos e Ritos” sem pensar em Marina Colasanti com quem Affonso Romano partilha, há mais de quatro décadas, uma vida de cumplicidades várias. Ou ficar indiferente ao paradoxo de serem as palavras tão vitais no relacionamento amoroso mesmo quando se dispensam em "Silêncio Amoroso"

“Minha mulher/tem outra mulher com várias mulheres sob a pele./Tecelãs, pastoras, princesas/afloram de seus lábios e cabelos./Dispo-a com amor ela suspira./E é aí que fadas e dragões se batem/e em nossos corpos/a fantasia da carne/- delira.” 

"Deixa que eu te ame em silêncio./Não pergunte, não se explique, deixe
Que nossas línguas se toquem, e as bocas/e a pele/falem seus líquidos desejos.//Deixa que eu ame sem palavras/a não ser aquelas que na lembrança ficarão/pulsando para sempre como se amor e vida/fossem um discurso de impronunciáveis emoções."

A leitura de um livro que nos revela um poeta exige pausas para nos distanciarmos da pessoa e para ler o poema despindo-o e vestindo-o no momento da leitura com  novas emoções. Tem de ser lido em doses homeopáticas e em ritmos solares e lunares. É feita de palavras que tomamos para serem nossas, para ler passados e escrever futuros. Não escrevo sobre a poesia. Escrevo sobre um livro de poesia a que irei voltando para descobrir os seus sentidos, até encontrar o que resta desligado do que o poeta escreveu e sentiu. O próprio poeta o diz melhor que eu em "O Leitor E A Poesia".

“Poesia/Não é o que o autor nomeia/é o que o leitor incendeia.//Não é o que o autor pavoneia/é o que o leitor colhe à colmeia// Não é o ouro na veia/é o que vem na bateia.//Poesia/ não é o que o autor dá na ceia,/mas o que o leitor banqueteia.” 

Assim é, também, a poesia de Affonso Romano de Sant’Anna, uma viagem que vale a pena fazer, que cada um fará à sua medida.

O Amor, A Casa E Os Objectos
O amor mantém ligados os objectos./Cada um na sua luz,/no seu restrito ou volumoso/-modo de ser.//O amor, e só o amor, arquitecta/paredes duplas, vigas, mestras, telhas vãs,/condutos e portas , justapondo/à luz interna o céu exterior.//Quando há amor, os objectos/tornam-se suaves./Não há asperezas/em suas formas e frases.//Como um gato, o corpo/passeia entre arestas e não se fere./Nada lhe é hostil./Nada é obstáculo/Nada está perdido/no trânsito da casa.//É como se o corpo, além de frutas e flores,/mesmo parado, criasse asas.//Daí uma certa displicência dos objectos na mesa,/ na estante,/ no chão./Como corpos derramados nos tapetes/ ou cama,/que esta é forma de estar/quando se ama./O que não for isto, não é amor./É ordem exterior às coisas./Pois quando amamos,/os objectos nos olham/sem inveja. Antes, secretas glórias afloram de suas formas/como o corpo aflora aos lábios,/e a poltrona, o pelo de sua fauna, aflora.//As casa têm raízes/quando há amor./Até ratos, baratas e cavalos,/além de plantas e pássaros/antenam vibrações nos subterrâneos/da casa de quem ama.//O corpo trescala aroma após o banho,/ almíscar flui dos sexos, alfazema/banha os gestos. Enrolados em suas toalhas/os corpos como as ondas/se desmacham em orgasmos no lençol da tarde.//Os objectos estendem os homens, quando há amor./Vão ás festas e guerras, e se acaso/suicidam caindo das prateleiras/São capazes de ostentar sua vida/mesmo numa natureza morta.//O amor não submete, o amor permeia/cada coisa em seu lugar e, como o Sol,/passeia iluminando as espirais de ouro e prata/ que decoram nossos corpos.// Não há limite entre a casa e o mundo, quando há amor./Os amantes invadem tudo a toda a hora/ e a paisagem do mundo à paisagem da casa/ se incorpora.// Affonso Romano de Sant’Anna.


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