sábado, 29 de setembro de 2012

DE NOVO GUILHERME CENTAZZI

Guilherme Centazzi – o renascido




Já aqui falei, em texto anterior, de O Estudante de Coimbra, ou relâmpagos da história portuguesa de 1826 a 1838, de Guilherme Centazzi, (Lisboa, Planeta, 2012), e da agradável surpresa literária que ele é. Mas há ainda outro aspeto surpreendente, que é o que se refere ao seu esquecimento desde 1861 até hoje, tendo em conta que revela evidentes qualidades literárias. O facto de ter sido descoberto por acaso por Pedro Almeida Vieira é revelador de como o esquecimento estratégico pode ser mortífero. É certo que ninguém garante que seja o resultado de uma estratégia, como se faz hoje e certamente sempre se fez, mas parece, ou é, pelo menos, uma hipótese a ponderar.
Na verdade há aqui uma questão, com duas vertentes, que merece reflexão, e que irá por certo ser tema de análise e de debate: a sua modernidade, por um lado, e, por outro, o esquecimento a que esteve votado até agora. Como entender estes dois factos em simultâneo? Penso que se devem colocar as duas perguntas em simultâneo, porque se ele não tivesse qualidade nem modernidade, era natural que tivesse sido esquecido. Mas, sendo evidentes estes dois aspetos, o esquecimento surge como muito mais difícil de explicar e transforma-se num problema mais vasto porque implica toda uma cultura, a nossa, e algumas das suas características.
Pedro Almeida Viera considera O estudante de Coimbra o primeiro romance moderno português, visto ser anterior (1840) aos marcos habitualmente considerados do nosso romantismo literário: O Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano, de 1844, e O Arco de Santana e Viagens na minha terra, de Almeida Garrett, de 1845 e 1846, respetivamente.
Por outro lado, o realismo das descrições, a naturalidade dos diálogos caracterizados, como diz Fátima Marinho no posfácio «pelo estilo popular e coloquial, sobretudo (…) com interlocutores do povo», a vivacidade das descrições, as peripécias de muitas situações, a distância que cria em relação ao estereotipado das narrativas setecentistas, faz dele um livro moderno, já dentro dos nossos horizontes e padrões estéticos. De algum modo até antecipando a modernidade, como se, embora integrando-se no romantismo e já com certas características do realismo posterior, passasse por cima de ambos vindo aterrar na literatura atual, por uma forte inclinação para a irreverência, o gosto pelo cómico das situações e as deambulações opinativas, numa torrente verbal mal dominada e sintaticamente irreverente, embora correta, como se o autor corresse atrás da própria pena e com dificuldade de a parar. Isto é, fazendo um arco, ou seja, indo do pícaro e aventuroso de romances como O D. Quixote, de Cervantes, O Gil Blas, de Santillana, A vida e as opiniões de Tristram Shandy de Laurence Sterne, e até o Manuscrito encontrado em Saragoça, de Jan Potocki (com as devidas distâncias literárias, temáticas e até volumétricas), passando pelo romântico das relações amorosas, da visão do feminino, dos ambientes tenebrosos e do maniqueísmo das personagens, até uma certa liberdade formal e uma desenvoltura descritiva próximas do que atualmente se escreve.
Não se percebe, pois, por que razão nunca é referenciado pelas elites do seu tempo, tendo estado morto durante cento e setenta anos. Para explicar este mistério Pedro A. Vieira formula algumas hipóteses:
O não lhe terem reconhecido a nacionalidade portuguesa, quando é sabido ter nascido no Algarve, ele o diz e tem orgulho nisso;
ter-se, talvez, catalogado o livro como uma obra de memórias de um estudante de Coimbra, envolvendo-o naquela imensa bibliografia coimbrã onde há de tudo, e não dando pelas suas qualidades literárias;
ter sido reduzida a tiragem do livro, e de nula distribuição, como ainda ocorre;
e, sobretudo, ser demasiado crítico para com muita gente que era figura grada por altura da publicação.
Para lá desta última razão, a mais plausível, talvez haja outras. Se o compararmos com Herculano e Garrett, é óbvia a aparente falta de “acabamento” literário, o que talvez o desqualificasse aos olhos dos contemporâneos, tal como uma certa desformalização, que a irreverência crítica e a vivacidade do autor impõem à narrativa, o qualificam à nossa apreciação contemporânea. Mas, vendo assim a questão, somos tentados a colocá-lo mais na linha de Camilo do que na que vai de Garrett a Eça de Queiroz. Mas Camilo é uma árvore frondosa, impossível de ignorar, o que não acontecia com o arbusto Centazzi, irreverente, brincalhão, ocupado com muitas tarefas, desde médicas a musicais e a políticas, não dando grande importância à sua obra literária, e, ainda por cima, ou sobretudo, vivendo lá para o Reino dos Algarves, antes de Fontes Pereira de Melo e de todas as modernidades comunicantes.
Por outro lado, e quem sabe até se principalmente, a vivacidade da escrita, o pícaro de certos episódios, a incapacidade de resistir às situações cómicas e de as descrever com impetuosidade e graça, terão favorecido a marginalidade da sua obra literária em relação à de outros concorrentes mais famosos. Enfim, tudo isso talvez possa explicar o “esquecimento” a que o pensamento dominante e o gosto do tempo o votaram. Somos demasiado “sérios” para apreciar escritores deste tipo, apesar do dramático daquelas situações e do humanismo que perpassa pela obra.
Trata-se de uma hipótese, mas sabendo como funcionam muitas elites, como a “seriedade” sempre dominou a nossa cultura judaico-cristã, como abominamos mais o humor que Maomé o toucinho e como fugimos mais às críticas que o Diabo à cruz, talvez a hipótese não seja insensata.

(Este não é o Guilherme. Mas tem graça)

João Boavida

3 comentários:

João Boavida disse...

A graça toda está no facto de a caixa ser dos rebuçados Centazzi, criação do nosso autor, que era médico e divulgador científico. A firma que os produziu não tinha nada a ver com ele, mas era dele a sua fórmula. Repare-se que o rosto que aparece é o mesmo rosto maroto, como disse a professora Ofélia Monteiro, da Faculdade de Letras de Coimbra, numa apresentação do livro na Biblioteca Geral, que aparece na atual edição.

Pedro Almeida Vieira disse...

Caro Prof. João Boavida, agradeço-lhe imenso as várias referências que tem vindo a fazer ao «O Estudante de Coimbra» e a Guilherme Centazzi, que subscrevo inteiramente... Apenas uma correcção de pormenor: Centazzi, depois de regressar a Portugal, fixou-se na região de Lisboa, mas não propriamente na capital. Durante anos exerceu medicina em Mafra, Ericeira e Arruda dos Vinhos (longe das elites) e penso que somente a partir dos anos 60 se fixou em definitivo em Lisboa. Pelo que trespassa sobretudo em algumas introduções de obras suas, era homem que não participava nos círculos literário e até lhes deu algumas alfinetadas...
Cumprimentos
Pedro Almeida Vieira

João Boavida disse...

Caro Pedro Almeida Vieira
Obrigado pela sua informação. Eu até já sabia que ele se tinha fixado na região de Mafra, por ter lido num dos textos seus que acompanham o livro, mas acabei por esquecer e localizá-lo no Algarve. Facilitou a minha tese sobre o seu "esquecimento", mas não me parece contrariar o mais importante dela. De qualquer modo, penso que a partir de agora muita gente vai estudar o Guilherme Centazzi e tudo isso se esclarecerá, ou obterá informações que permitirão tirar algumas conclusões.
O mais importante, porém, é que o livro foi descoberto por si, reeditado, e bem, e esse trabalho temos que lhe agradecer. Ou me engano muito ou este livro vai em breve passar a ser um clássico de várias coisas, desde o romance pícaro setencentista, que muita falta faz na nossa cultura, ao romântico, ao moderno e até ao memorialista coimbrão. Em boa hora se meteu nesta tarefa.