sábado, 30 de agosto de 2014

A PRIMAVERA HÁ-DE CHEGAR


Não me canso de agradecer aos editores que me têm revelado e trazido para a língua portuguesa autores que eu não conhecia, mea culpa, mea culpa, e que vieram alargar o meu olhar sobre a literatura, ou seja sobre o sentido da vida.

Podia falar de muitos autores como Hernán Rivera Letelier, Olivier Rolin, Le Clézio, Errí de Luca, Julio Ramon Rybeiro, Barnard Malamud, Ignácio Martínez de Pisón e tantos outros mais como, agora, John Fante

Agradeço-vos a todos, queridos editores, a sensibilidade, a inteligência e quantas vezes o risco com que exercem a vossa profissão, sobretudo quando fogem aos sucessos garantidos por amor ao livro e à literatura.

A editora Ahab publicou o primeiro e o segundo romances do quarteto Bandini. O terceiro foi publicado pela Objectiva/Alfaguara e creio que o quarto romance não está publicado em português mas espero que alguém faça a gentileza e o acto de inteligência editorial de o publicar.

Descobri que Fante (1909-1983) é um autor extremamente elogiado no mundo literário americano, com rasgados elogios, entre outros, de Bukowski que dizia que ”Fante era o meu Deus”.

“A primavera há-de chegar, Bandini” é a história de um inverno na vida de Arturo, um jovem de 14 anos e da sua família italiana e pobre, constituída por pai, pedreiro, mãe, dona de casa, e três irmãos, Frederico, o patife, August o bonzinho que vai para padre, e Arturo, o mais velho, o nosso herói e narrador.

O romance passa elegantemente da voz de um narrador neutro para a voz de Arturo, passando, por vezes pela a voz do pai, Svevo, numa escrita brilhante, rápida, sem perdas de tempo, atravessando registos de grande dureza para logo desabar um pormenores de rara emoção e deixando tudo embrulhado aqui e ali, num inesperado fio poético.

O mundo de Bandini tem pontos óbvios de proximidade ou convergência com os romances de John Steinbeck. É o mundo dos pobres, dos trabalhadores.

Fala-nos do choque de uma família italiana e católica de origem rural do Sul de Itália, com os seus valores culturais e éticos, tratada pelos americanos como estrangeira.

E tem o sabor da pobreza experimentada por esta família, da verdadeira pobreza, a pobreza da América dos anos 30, e de uma solidariedade sem doçuras dentro da família.

Mas o que o romance sobretudo nos oferece é um extraordinário relato da vida feita por Arturo, em que se cruzam a forma como olha para o pai e para a mãe e ainda para a traição do pai com uma americana rica e do regresso do pai a casa, a expressão dos seus sonhos, do seu amor, da sua paixão pelo beisebol, do seu entendimento conturbado do catecismo e aquela inquietante lista de pecados da catequese que Arturo nunca sabe bem se são mortais ou não.

Deste delicioso diálogo do jovem com os pecados conclui ele que na hora da morte é preciso ser muito rápido para conseguir confessar-se antes de morrer e assim conseguir não morrer em pecado mortal.

O que é enternecedor é que Fante faz um acto de magia que só os grandes escritores conseguem quando conta um pouco da história todos nós, rapazes, de 14 anos de todos os tempos, ao contar a história de Arturo Bandini,

Todos nós tivemos amores deslumbrantes, inventámos grandes e complicadas ficções para nos entendermos com o mundo e com os outros, sofremos da mesma forma os desgostos de amor apenas sonhados, olhámos com espanto e inquietação para o desenvolvimento do desejo, tentámos entender-nos com o conceito de ciúme, e tentámos entender qual o papel que nos esperava como homens na sociedade e na família.

Trata-se de um livro que nos arrebata na verdadeira acepção da palavra e só posso acrescentar que estou mortinho para ler o segundo romance desta série que se intitula: “Pergunta ao pó”.


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