domingo, 3 de agosto de 2014

COMO SE NUNCA TIVESSE CONHECIDO RAÍZES NOS PÉS




“A mulher movia-se no silêncio nu da montanha como se nunca tivesse conhecido raízes nos pés.”

Um dia entrei numa livraria de Coimbra, a “Lápisdememórias” do Adelino Castro, e lá estava o Ondjaki a apresentar um livro. Não nos conhecíamos pessoalmente mas caímos nos braços um do outro e logo ali selámos uma daquelas valentes amizades que hão-de concretizar-se ao sabor dos acasos da vida.
Já guardava um cantinho das minhas paixões literárias para a escrita deste menino transcontinental que tem uma carga poética e emocional notáveis.
Esperava encontrar nestes contos aquelas narrativas realistas mas delicadas e ternas como em “Os da minha rua”.
Os contos reunidos neste livro são diversos. Vêm de lugares diferentes, de diferentes regiões do imaginário, de diferentes respirações da narrativa.
Avançam e recuam no espaço e no tempo, nas sombras do real e do irreal, do fantástico e do poético.
Cada conto tem o nome de um lugar, uma cidade, um sítio: Buenos Aires Budapeste, Madrid, Praga, Macau, Tânger, Nairobi, Dar Es Salaam
Porventura terão sido escritos ao sabor das viagens do autor. E estão divididos em 4 capítulos marcados por uma certa forma de atravessar o mundo com as palavras.
Há zonas onde predomina o labiríntico absurdo a soar a Borges, outros a cair no mágico, outros claramente poéticos apesar da prosa em que são vertidos.
Trata-se de um livro desigual, com altos e baixos em quem os baixos nunca são muito baixos e os altos conseguem chegar muito alto. Trata-se de um livro que exige uma entrega especial do seu leitor. É preciso deixarmo-nos mergulhar na escrita maravilhosa de Ondjaki, sem preconceito, sem querer saber: “E depois?” mas deixar que a chuva das palavras nos venha tocar no mais fundo da emoção
Ainda não li, mea culpa, “Os transparentes”, romance recente de Ondjaki. Tenho ouvido belos elogios e fico feliz por isso. Fico feliz por um bom livro e ainda por cima um bom livro de um bom amigo.
Destes “Sonhos…” gostava de salientar o conto que tem por título Massoxiangango, um dos mais belos poemas que li e de onde retirei a frase com que comecei esta prosa.


- E MAIS ALGUMA COISA -

Entusiasmado com o livro de Onjaki desatei a escrever sobre ele ainda me faltava o último conto. "Mossulo", história de fazer tremer, único momento explicitamente resultante de uma história vivida. E não é por acaso que se trata do último, uma vez que, de forma talvez oblíqua, é a chave de todos os contos, a raiz que prende os pés de quem lê à terra de que o autor faz nascer a ficção.


1 comentário:

Aline T.K.M. disse...

Excelente texto! Nunca li nada do Ondjaki, mas há tempos tenho vontade/curiosidade. Fui especialmente atraída quando você mencionou que nos contos deste livro há a presença do absurdo, do insólito - característica que me fascina quase sempre.
Ainda pretendo ler o autor e espero que não demore a fazê-lo.

Beijos, Livro Lab