quinta-feira, 20 de novembro de 2014

INDÍCIOS DE OURO

INDÍCIOS DE OIRO
“Indícios de Oiro” é o título do último livro de poesia de Mário de Sá-Carneiro, publicado em 1937, pela revista Presença. O poeta, no entanto, havia-se suicidado, em Paris, em 1916, com vinte e seis anos incompletos. O conceito “indícios” já tinha sido utilizado por Mário de Sá-Carneiro em poemas anteriores, como “Quasi”, de que se transcreve a estrofe inicial: QUASI Um pouco mais de sol – eu era brasa Um pouco mais de azul – eu era além Para atingir, faltou-me um golpe d’asa... Se ao menos eu permanecesse aquém... Mas são exactamente os indícios desse “além” que se repercutem no “aquém” (a que estamos confinados), que se constituem em o verdadeiro Oiro da sua expressão poética – o que o autor não reconhece enquanto tal. Mário de Sá-Carneiro considera que não consegue atingir o “além”, mas que no “aquém” não pode permanecer. Daí, as tentativas de suicídio, a presença da morte nos últimos poemas, para mim, os mais belos. E o que acontece na Poesia, também ocorre noutras Artes, como a Música. Estou a pensar numa novela de Julio Cortázar (1914-1984), publicada na sua obra “As Armas Secretas”, edição da Cavalo de Ferro, em 2014. Nessa novela (é mais uma novela do que um conto), Cortázar dá notícia dos últimos tempos de vida de um músico norte-americano de Jazz, Charlie Parker. O texto, que tem como título “O Perseguidor”, é uma história romanceada dos últimos meses de Charlie Parker, a quem ele chama de Johnny Parker, o músico de Jazz, que, através do seu saxofone, persegue uma sonoridade muito pessoal, dificilmente vislumbrada, que lhe foge. Sonoridade talvez alcançada numa peça musical, “Amorous”, gravada sem a sua autorização. Se Mário de Sá-Carneiro vivia mergulhado em absinto, Parker era um consumidor inveterado de drogas duras. Quando morre, com quarenta e tal anos, tem o aspecto de um homem de mais de setenta anos. Cortázar diz-nos que tendo sido perguntado a Parker o que via, o que sentia, quando tocava peças como o “Amorous”, ele fala da Morte que o acompanha nesses momentos, em que tudo está perto, mas não se atinge. Que nunca se alcançará: “Campos cheios de urnas, Bruno. Montes de urnas invisíveis, enterradas num campo imenso”. E, mais adiante: “Não é uma questão de mais ou menos música, é outra coisa... por exemplo, é a diferença entre Bee [a filha] estar morta e estar viva. O que toco é Bee morta, sabes, enquanto o que quero, o que quero...” Como acontece com Mário de Sá-Carneiro, também esta situação se passa em Paris. Também estes “indícios”, afinal, sejam o Oiro mais fino que se possa alcançar no campo da Música de Jazz.

1 comentário:

Anónimo disse...

"- (...) Então, como é possível que eu tenha estado a pensar um quarto de hora, hein, Bruno? Como se pode pensar um quarto de hora num minuto e meio? Juro-te que nesse dia não tinha fumado nem um bocadinho, nem uma folhita - acrescentou, como um menino que se desculpa. - E depois voltou-me a acontecer, agora começa-me a acontecer em todo o lado. Mas - acrescentou com astúcia - só no métro é que me apercebo porque viajar no métro é como estar enfiado num relógio. As estações são os minutos, compreendes, é esse vosso tempo, de agora; mas eu sei que há outro e estive a pensar, a pensar...

(...)

- Bruno, se eu pudesse viver apenas como nesses momentos ou como quando estou a tocar e também o tempo muda... Apercebes-te do que poderia acontecer num minuto e meio. Então um homem, não só eu mas também essa aí e tu e todos os rapazes, poderiam viver cem anos, se encontrássemos a forma poderíamos viver mil vezes mais do que estamos a viver por culpa dos relógios, dessa mania de minutos e de depois de amanhã..."

Julio Cortázar,
in O Perseguidor (As Armas Secretas)





Dispersão

Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...

Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.

(...)

Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida,
Eu sigo-a, mas permaneço...

(...)


Mário de Sá-Carneiro,
in Poemas Completos




Das coisas mais bonitas, intensas e verdadeiras que já tive a oportunidade de ler...



Ana