“-Como esta casa deve ser triste às três
horas da tarde.”
A frase,
convocada pela memória da personagem Beatriz logo no início do livro, é um dos
pontos de partida deste romance, uma memória da juventude do autor e também uma
citação do seu primeiro romance, Memória
de Elefante. Assim se define uma das temáticas centrais: a passagem do
tempo e a memória. Neste romance tudo se orienta e tudo se constrói a partir da
morte da mãe, origem do labirinto das memórias individuais de uma vida familiar,
que vão ser a sua substância narrativa.
Aquele domingo
de Páscoa, 23 de Março, às 6 horas da tarde, momento da morte, sorte suprema de
um romance estruturado como uma corrida de touros, é o pretexto para que o
marido, os filhos e a criada Mercília se assumam como vozes narrativas de cada
um dos quatro andamentos das cinco sortes tauromáquicas da corrida, que podem
ser também as da vida e as da escrita.
Na linha de uma
temática recorrente na obra de ALA, desde, pelo menos, Auto dos Danados, o romance revela-nos uma família desagregada e
disfuncional, onde as relações e manifestações de ternura e afecto são sempre
difíceis ou inexistentes, e onde as personagens procuram, na alienação ou no
delírio, mitigar o deserto da sua dificuldade emocional e da carência que dela
decorre.
Neste romance
encontramos uns pais distantes, cujo afecto pelos filhos é sempre recusado ou apenas
concedido em breves momentos, como aquele, real ou imaginário, em que o pai
convida Beatriz a subir ao estribo do cavalo e a leva junto ao mar. É nesse
espaço de fronteira para um limiar da imaginação que esta jura ter visto a
sombra dos cavalos, memória eufórica e insistentemente convocada por esta
personagem, que abre e fecha o romance.
A mãe, cuja morte
se aproxima, como que delega em Mercília o amor e a proximidade que sempre
recusou aos filhos. Mercília, afinal alter
ego maternal que todos amam e simultaneamente desprezam ou rejeitam, única
fonte de afecto que a todos protege e cujos pecados encobre. Mercília e o seu
álbum de fotografias, que revela um surpreendente passado familiar que se vai entrelaçando
no presente. Mercília, revelada tia por esse passado, e que, após a morte da
mãe, tem também sofre a sua sorte suprema, ao ser expulsa por Francisco.
“-Onde é o
passeio dona Mercília?
-Longe”
O afecto é
procurado nos espaços de alienação exteriores à quinta, exteriores à terra, à
mãe, à família. É procurado por Ana, no baldio onde se relaciona com o
traficante de heroína que a explora e maltrata:
“-Quem é o teu
dono?”
Também é
procurado por João, homossexual e pedófilo, no parque em que transacciona o amor
com os meninos, único lugar em que parece conseguir exprimir a dádiva do amor:
“-Quanto custas
menino?”
Pelo pai, sempre
ausente nos trabalhos da terra, pelos quais tenta sublimar a relação falhada
com a mulher e que se vai perdendo e arruinando no jogo, numa repetição
constante e obsessiva da aposta no número dezassete, um número que, por sempre
falhar, parece não existir na roleta daquele casino, espaço de sortes adversas
em que vai delapidando a fortuna e a vida.
O afecto é ainda
procurado por Francisco, que sofre a obsessão da avareza e da vingança, e que
tudo faz ilicitamente para ficar com os bens da família, possuído por uma
espécie de racionalidade materialista de quem se sente injustiçado e que tudo
rejeita e odeia nessa cegueira da carência:
“-Não tenho
pais.”
Por fim, a
personagem Rita, a quem a lua sorria, que atravessa o romance devastada pelo
cancro, como um espectro nas vozes dos irmãos. Irmãos que paradoxalmente, para
além da enunciação desta condição, parecem nada ter de fraterno, vivendo num
universo de tensão, repulsa e raiva, ainda que pontualmente marcado por
memórias de momentos intensos de alguma ternura.
A quinta onde
vivem é o lugar matricial do romance, lugar amado e rejeitado, por oposição à
cidade ou à casa da cidade, e que contamina a todo o momento um discurso
povoado de elementos telúricos, onde os touros e os cavalos, junto às
azinheiras, são tantas vezes metáfora e metonímia de medos e fantasmas.
O discurso exerce-se
na técnica polifónica, magistralmente reelaborada por ALA, onde múltiplas vozes
se entretecem à volta de uma dominante, que configuram, muitas vezes, apenas
ecos distantes da recordação de situações ou objectos. Uma polifonia em que a voz
do autor-narrador também emerge, exprimindo as suas dúvidas ou hesitações
criativas que muitas vezes transfere para a consciência das personagens de cujos
destinos é artífice.
As frases são reiteradas,
numa técnica habitual em ALA, como que figurações de temas com inúmeras variações
ou modulações de tonalidade, formando uma filigrana narrativa depurada segmento
a segmento, palavra a palavra, por vezes mesmo letra a letra, num exercício de
composição que confere à escrita de ALA um carácter de palavra essencial: nela
nada está a mais ou a menos, como se uma outra palavra, em vez da que está,
desse origem a um outro livro que não este.
Estamos perante
uma escrita que, na sua ambiguidade e desestruturação, nos interpela e nos
fascina e que obriga o leitor a reconstruir dentro de si toda a teia lógica do
romance.
Que Cavalos São Aqueles que Fazem Sombra no Mar? é um romance de
sombra e sol, em que os cavalos, sob a luz, vão ludibriando a morte que se
anuncia projectando a sua sombra sobre as águas, destruidoras ou criativas, que
nem todos conseguem alcançar ou sequer vislumbrar. O lente, lente currite, noctis equi, como se os mesmos cavalos do
verso de Ovídio pudessem trazer a noite.
“Chegam os
cavalos que fazem sombra no mar e assim que o mar emergir do escuro
desaparecemos para sempre.”
1 comentário:
Instigante seu artigo. Antonio Lobo Antunes é, talvez, o maior dos escritores de nossa língua, entre os vivos. Gostaria que você apreciasse meu conto NOITE EM PARIS já publicado em livro, mas também publicado no meu blogue: http://deus-carmo-literatura.blogspot.com.br/2010/05/noite-em-paris.html
Fico-lhe inteiramente agradecido.
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