em boa verdade houve tempo em que tive uma
ou duas artes poéticas,
agora não tenho nada:
sento-me, abro um caderno, pego numa esferográfica
e traço meia dúzia de linhas:
às vezes apenas duas ou três linhas;
outras, vinte ou trinta:
houve momentos em que fui apanhado neste jogo e cheguei
a encher umas quantas páginas do caderno
aconteceu também por vezes que o papel pareceu
estremecer,
mas o mundo, não: nunca senti que o mundo estremecesse
sob as minhas palavras escritas,
o que já senti, e é de facto um pouco estranho, foi isto:
enquanto escrevia, o mundo parecia deslocar-se,
e quando eu chegava ao fim das linhas escritas,
sabia que estava tudo feito,
sentia que deveria morrer
mas, como se vê, nunca o mais simples atingiu em mim a
sua própria profundidade
Herberto Helder
O mais simples é possivelmente o mais inacessível. Tornar com que umas poucas linhas façam mais sentido que todas as linhas que as antecederam. Entender que a profundidade é capturar a rasura dos dias e emprestar-lhes um significado até o derradeiro momento. Encerrar a obra no ponto verdadeiramente final.
Agora o poeta não voltará a escrever, a obra está concluída e reverbera na mente dos sonâmbulos sobreviventes. Ler um poema de Herberto Helder era como mergulhar num sonho, mas agora nós acordamos e não haverá novos poemas, destros ou canhotos. Deixou-nos o poeta, ficou-nos a sua ciência e a sua poesia.
Foi assim e será o Herberto Helder dos 13 poemas canhotos finais, o último destes com rimas em ão. Impossível! Não há impossíveis na poesia, o que há são imaginações demasiado curtas, ou imaginações fora do alcance da imaginação. A fabulação de Herberto Helder era ser a cada poema, um outro Herberto Helder, sempre sendo Herberto Helder.
Um poema não salva o mundo, mas o protege da cacofonia dos maus poemas e dos sofismas de outros discursos. Todo poeta deveria pensar, poisar a pena e fazer um minuto de silêncio. Talvez, escrever o poema longuíssimo de um minuto de silêncio de muitas vidas.
Orfeu B.
escrever poemas não é boa maneira de atordoar os
tempos do verbo,
não é o mesmo que meter a cabeça num buraco abissínio,
nem perder algures uma perna/ e lembrar-me depois de perder ainda a outra:
ninguém ganha assim uma barra de ouro,
ninguém glorifica o corpo queimando-o com barras de ouro,
ninguém transforma assim uma chaga a beleza humana,
tórax e membros e a cabeça por entre a espuma:
e como só de pensá-lo o corpo avança! escrever,
deixar de escrever,
escrever ou não escrever não é acabar assim tão depressa
quanto se pensava
um poema ou dois ou cem não é nunca até ao fim,
escrever poemas não é apenas vou ali e já volto à morte do costume:
colinas tão próximas como se guardassem os nossos próprios olhos,
e logo depois leva-as o vento para adjectivos longínquos,
tudo tão prodigioso que se não entende nada:
uma rosa é uma rosa é uma rosa - disse ela em inglês
(há quantos anos li isso!)
(há quantos anos fiquei bêbedo desse talhão de roseiras!)
a rose is a rose is a rose et coetera
- mudou-me a vida?
oh faminta ciência da paciência!
coisas bem menores mudaram para sempre a minha vida,
e então porque não a mudaria uma rosa compactamente múltipla?
morrer por uma rosa é que fia mais fino:
que fabuloso fio em que roca e em que fuso,
que segredo do mundo
Herberto Helder
2 comentários:
Se puderem dar uma lida na minha história e deixar opiniões ficaria muito feliz: https://www.wattpad.com/130093162-cogumelos-comestíveis-prólogo
Por favor, indique a direcção URL correcta. Cumprimentos, Orfeu B.
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