sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Uma solidão demasiado ruidosa

Evoquei aqui o livro “Uma solidão demasiado ruidosa” de Bohumil Hrabal através de uma citação. Não queria, no entanto, deixar de vos chamar a atenção para esta pequena obra-prima, na minha modestíssima opinião.
O protagonista deste livro, Hanta, trabalha na cave de um depósito de reciclagem. “Durante trinta e cinco anos prensei papel velho, e se eu tivesse que optar de novo não quereria fazer outra coisa senão aquilo que fiz nestes trinta e cinco anos”. Trabalha com uma velha prensa e os seus dias passam-se a comprimir livros e papéis, actividade regada copiosamente de cântaros de cerveja. “Mas tal como na corrente turva de um rio que acaba de passar pelas fábricas de repente cintila um belo peixinho, assim também na corrente de papel velho brilha, subitamente, a lombada de um livro raro. Como que ofuscado, olho por uns momentos para outro lado e depois leio a primeira frase em que se fixam os meus olhos como um presságio homérico, e só depois deposito o livro entre outros belos achados numa caixa forrada com imagens santas que, por engano, alguém despejou na minha cave juntamente com os livros de preces. Depois começa a minha missa, o meu ritual, tenho não só que ler cada um desses livros, mas também colocá-los num dos pacotes, porque cada pacote que faço tem que ser embelezado, tenho que lhe dar o meu cunho pessoal, a minha assinatura”. A instalação de uma gigantesca prensa capaz de substituir vinte prensas como a de Hanta e o surgimento de dois jovens membros da brigada socialista de trabalho (bebedores de leite) remetem Hanta para um futuro repelente, transferido para a tipografia Melantich, onde iria empacotar apenas e só papel branco – ele que não podia viver sem a surpresa de a cada momento poder pescar, no papel repelente, um belo livro como prémio, então havia de ir empacotar papel branco, inumanamente imaculado? Hanta escolhe juntar-se aos seus livros e à sua velha prensa.
Este é um resumo possível do livro, mas não lhe faz inteira justiça. Por ele passam personagens mágicas, encantadas, que parecem flutuar acima do texto e da superfície do mundo. Mariazinha Borrada, personagem marcada pelas fezes, que ascende numa espiral de amores práticos (Mariazinha arranjou um carpinteiro que lhe fez toda a obra de carpintaria de uma vivenda, trocou-o por um canalizador, etc, etc.) até ao amor espiritual. O tio, agulheiro ferroviário reformado, a quem os amigos montam uma linha e um sistema de agulhas no jardim e a quem compram uma velha locomotiva. Duas ciganas que vendem papel ao patrão de Hanta e que trabalham para um cigano que todos os dias lhes tirava fotografias rodando o filme inexistente, enquanto as ciganas aplaudiam e rejubilavam. Há também todos as fugazes personagens a quem Hanta entrega livros que encontra (por exemplo o sacristão que se interessa por aviões). E o mesmo encantamento é dado à descrição aparentemente realista de cenas do quotidiano: um baile de aldeia, a fixação dos nomes dos escolhidos para as equipas de futebol para o fim-de-semana, uma estadia num hotel.
Se ainda não leram, quando tiverem um tempinho, leiam (com urgência), esta excelente narrativa.
Abraços

1 comentário:

Paula disse...

Estou precisamente a ler!
"Quando a minha mãe morreu, chorei para dentro, não soltei nem uma lágrima. Ao sair do crematório, vi como o fumo da chaminé se elevava para o céu... a minha mãe subia maravilhosamente aos céus e eu [...]". Concordo que é uma excelente narrativa.