Os setenta anos já percorridos significam um longo caminho não só de escrita, por livros e jornais, mas também de deambulações entre exílio, viagens e paragem onde escolheu ou foi escolhido para permanência.
A viver na Holanda, apesar de ser um regressado sistemático a Portugal, passou muitos anos à margem do país que, conhecendo-o, pouco o leu como se indiferente ao seu valor.Podia dar-se o caso de ser pouco divulgado por ser autor de uma escrita hermética e inacessível, mas tal não é o caso. A sua escrita é rigorosa mas perfeitamente lúcida e inteligível o que é um indiscutível mérito.De há uns tempos a esta parte começou a ser falado por todo o lado e, de repente, tornou-se crime de lesa nacionalidade desconhecê-lo.
Tempo Contado
J. Rentes de Carvalho
Editora Quetzal
“Tempo Contado”, um Diário, é o quarto livro editado pela Quetzal que promete continuar a fazer luz sobre toda a sua obra.
Este diário percorre terras transmontanas. As estradas, as gentes, a calma, por vezes pasmaceira, que só quem lá vive ou passa atento tão bem conhece. Os transmontanos lerão com o desfastio com que atravessam os dias e as estradas, ainda cheias de curvas e de tangentes nos carros que se cruzam.
Rentes de carvalho pertence e não pertence aos lugares que nos leva a percorrer. É da terra mas só de tempos a tempos lá vive. É da terra e estranho não sendo uma nem outra coisa. Essa condição permite-lhe olhar de fora e de dentro. Passar-nos o olhar crítico mas sem interferir com o visto como faria sendo estrangeiro. Sente-se esse equilíbrio, em toda a escrita, e um humor decantado e precioso.
Sendo um registo de um ano da década de noventa, 1994-1995 podem pensar que é coisa do passado, mas não é. O interior do nosso país move-se lentamente e Rentes de Carvalho tem a inteligência de fazer a sua escrita intemporal, mesmo no registo próximo do quotidiano.
Começa a 15 de Maio, data da celebração melancólica do seu aniversário, numa idade em que a vida é uma dádiva mas ainda não um estorvo, afinal tudo funciona como antes, diz. Escolher este registo traz-lhe à memória outro, de adolescência, e as memórias ainda vivas e magoadas do pai, da sua incompreensão. Estou a lê-lo ainda. Mas não quis deixar de o partilhar desde já convosco.
Deixo-vos:
“Domingo, 5 de Junho – A meio da manhã para Moncorvo para o ritual da compra dos jornais e a visita ao café. Ainda é cedo e o Expresso esgotou-se. Acho estranho e falo com o dono do quiosque que, numa vila com uns mil habitantes e outros tantos ou mais nas aldeias em redor, só encomenda dez exemplares do Verão e cinco no Inverno.
- Se encomendasse mais –diz ele- quem mos comprava? E olhe que mesmo tão poucos às vezes ainda sobram.
(…)”
É certo que, quem passa pelo interior sabe, os jornais no Verão são assim… Como a vida, difícil de acertar a dose. Não há receita. Viver é improviso
E continuamos… Amanhã:
“16 de Junho - O senhor Machado ri às gargalhadas (…)”
Neste país, amanhã, o senhor Machado será dos poucos que terá vontade de rir...
Vou demorar a lê-lo. Terminarei na última entrada a 15 de Maio de 2012. A certeza que me resta: viver, um pouco cada dia, neste “Tempo contado” lendo.
Sílvia Alves/5 de Junho
1 comentário:
Bom lembrá-lo!
Personalidade bem importante da nossa literatura!
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