segunda-feira, 16 de junho de 2014

UM GOSTO AMARGO NA BOCA


A arte de iniciar a escrita de um livro é diversa. Há escritores que o iniciam com intensa velocidade, de modo a agarrarem-nos pelos ombros e não nos deixam abandonar a leitura até ao fim.

Outros vão devagarinho, levam tempo a chegar ao miolo da noz, ao fundo da questão. Vão de roda, perdem-se em coisas aparentemente secundárias, parecem moles e levam-nos pro vezes a alguma impaciência até que desatem os fios da questão central.

Neste último caso, o leitor tem que ser teimoso, tem de conquistar a narrativa, vencendo a dúvida que o faz recear que aquela lentidão .

Hitchcock criou o célebre “MacGuffin”, o perigo ou bomba relógio que colocava no local para onde queria conduzir o olhar inquieto do espectador, enquanto fazia a acção decorrer noutra margem

Donna Léon começa devagar em mais um destes romances que têm como cenário Veneza, os seus canais, os seus restaurantes, a sua poesia.

Parece não haver motivos para se desconfiar de um crime quando se encontra um aluno da Academia Militar enforcado numa casa de banho.

É claro que desde o início somos conduzidos pela desconfiança do Comissário Brunetti, personagem central de todo o romance, e ficamos com a quase certeza de que se trata de um falso suicídio.

Brunetti pertence à linha de um Maigret, com as devidas diferenças. É um funcionário rendido à sua função, um tanto depressivo, desconfiado dos seus superiores, permanentemente revoltado pela corrupção que parece omni-presente no aparelho de Estado italiano.

O que me começou a pegar à leitura do livro foi a atitude de fortíssima irritação e até preconceito (que viremos a perceber que tem toda a razão de ser) de Brunetti e da sua mulher Paola em relação ao exército italiano e aos seus comportamentos.

De facto, e ao contrário do geral do exército português, tendo atravessado duas guerras mundiais e tendo sido o braço armado do fascismo, o exército italiano é uma casta no mínimo conservadora, que se defende a si própria e que defende ideias cheias de panache e sem qualquer conteúdo.

Lembrei-me do “Amarcord” de Fellini e daquelças marchas ridículas dos militares no tempo do Mussolini
Mas acima de que tudo, o que sobressai é a corrupção capazde cilindrar seja quem for para se proteger, capaz de mentir, de esconder, de matar. É assustador, não muito mais do que o que se passa com os senhores da corrupção na nossa terra.

A história vai ganhando espessura e intensidade a caminho do fim e consegue surpreender-nos, emocionar-nos e deixar-nos um gosto amargo na boca.

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