quarta-feira, 25 de abril de 2012

UMA ESPIRAL ACELERADA



1936. Vésperas do início da Guerra Civil de Espanha. Madrid está a arder. Quer dizer, fascistas, comunistas, socialistas, anarquistas, militares e civis. Os grupos civis enfrentam-se diariamente nas ruas. Os generais Mola, Queipo de Llano, Francisco Franco conspiram e preparam o golpe Estado. Os madrilenos (a que se dá o nome de gatos) riem, falam, juntam-se nas tabernas, cantam, brigam. A miséria vive a paredes meias com o luxo dos grandes de Espanha.

Um inglês fleumático como mandam as regras, especialista em pintura espanhola e principalmente em Velasquez, desloca-se a Madrid, onde é desafiado a analisar um suposto quadro do grande pintor escondido na cave o dpalacete de um aristocrata espanhol. O quadro deverá vir a ser vendido fora de Espanha e o dinheiro destinado a financiar a compra de armas para os fascistas.

Sem querer, o protagonistas acaba por ser usado, ameaçado, por todos os lados em contenda: a polícia ao serviço do governo, uma família aristocrática direitista, os fascistas de Primo de Rivera, os comoventes e pobres comunistas, os Serviços Secretos ingleses…

Mais ainda, além de frequentar uma pobre prostituta protegida por um simpático militante comunista que depois o tentará assassinar por ordens de Moscovo, e cai nos braços e na cama da noiva algo secreta de Primo de Rivera que apenas pretende resolver o problema da virgindade que o jovem e fogoso chefe fascista evita resolver para que a sua prometida não se torne num calcanhar da Aquiles da sua luta política.

O inglês, fascinado pelo quadro de Velasquez sonha com a oportunidade de ultrapassar concorrentes académicos de peso e dá-lo a conhecer ao mundo, alterando aquilo que se sabe sobre o pintor e lançando nova luz sobre um capítulo importante da História de Arte e do ambiente artístico e social da côrte de Filipe IV.

A magnífica escrita de Eduardo Mendoza desenvolve-se seguindo uma estrutura algo policial, num movimento de espiral acelerada que mais parece por vezes o desenho de um pesadelo e que toma foros de opereta sem deixar de ter os pés assentes num retrato poderoso de uma cidade de Madrid onde a guerra se pressente a cada passo.

domingo, 15 de abril de 2012

QUANDO SHERLOCK HOLMES EXISTIU NA REALIDADE





Arthur & George, de Julian Barnes, é um livro tecnicamente extraordinário. Mas, mais impressionante do que a forma como está escrito, é a riqueza e densidade de interpretações e visões que proporciona que o transformam num livro fascinante.

Partindo de uma premissa – baseada em factos reais – tão inesperada quanto brilhante (Arthur Conan Doyle, o escritor que criou Sherlock Holmes, investiga um caso real, tentando ilibar George Edalji de um crime que este não cometeu, aplicando numa investigação verdadeira e concreta os mesmos princípios detectivescos que atribuiu à sua personagem ficcional), Barnes conta-nos um pedaço de história verdadeira que é, simultaneamente, uma estória literária, dissipando de forma tão provocatória quanto deliciosa as fronteiras entre realidade e ficção, entre biografia e romance.


Começamos por acompanhar os percursos de vida de Arthur e de George, em separado; se um é uma individualidade marcante da sociedade inglesa de finais do século XIX e início do século XX, o outro é um simples anónimo embrenhado numa vida banal e algo peculiar que teve o azar de ser arrastado para uma situação complicada e injusta. Os caminhos de ambos acabarão por se cruzar lá para meio do livro, em momentos chave da vida de cada um, coincidindo num relacionamento breve mas determinante, para se voltarem inevitavelmente a separar. (O livro termina pouco depois da morte de Conan Doyle.)

Mais do que o relato de duas vidas de alguma forma extraordinárias e muito mais do que uma estória de detectives inteligente, este livro surge-nos como um retrato acutilante e abrangente da sociedade inglesa, nas suas vicissitudes e particularidades, nas suas riquezas e fraquezas. Na verdade, juntamente com os dois protagonistas, é-nos apresentada uma outra personagem, magistralmente criada, que acaba por se impor como a verdadeira protagonista: a “essência” do ser inglês, uma certa “britishness”.

Com uma leveza aparente e ilusória, oscilando entre o trágico e o cómico, Barnes conduz-nos afinal por entre inesperadas reflexões que acabam por constituir uma espécie de terceira camada do livro (se considerarmos que a primeira se ocupa de Arthur e George em particular, da forma como as suas personalidades evoluíram ao longo do tempo; e a segunda da sociedade inglesa em abstracto), conferindo-lhe uma densidade e abrangência imprevista; temas como o poder da imprensa, o arcaísmo arbitrário do sistema judicial, a dissimulação do racismo, a importância do empenho cívico individual activo, a incompetência e arrogância da polícia, a cegueira provocada pela religião, a pressão moral imposta pela sociedade através da ditadura da aparência, bem como questões mais íntimas como a solidão solitária e a solidão acompanhada ou o relacionamento individual com a morte, conferem a este livro – que não deixará de representar uma visão ficcionada de uma época história distante – uma actualidade não apenas desconcertante mas, principalmente, preocupante.


Paulo Kellerman

Leitor convidado: Paulo Kellerman é escritor. Tem vários livros publicados na Deriva. Ganhou o Prémio APE do Conto Camilo Castelo Branco. Escreve também para a (sua) Gaveta: http://agavetadopaulo.blogspot.pt/



segunda-feira, 9 de abril de 2012

"Deves ter sentido o teu espírito desamparado do teu corpo como uma casa arruinada. (...) solidão maior, porque um corpo é a nossa última companhia." Vergílio Ferreira. in "Em Nome da Terra"



“Como Carne Em Pedra Quente”
Ana Sofia Fonseca
Clube do Autor


O livro veio parar às minhas mãos por um acaso, aberto na página 22. Comecei a ler, a ler, e foi lido como se tricotasse para entreter o tempo e de repente me visse incapaz de parar o movimento das mãos hipnotizadas pelo ruído das agulhas. E regressei depois do final ao princípio. 

É o primeiro romance da jornalista Ana Sofia Fonseca e constrói-se à volta da narrativa de uma mulher sentenciada de morte. O médico dispara à queima-roupa e deixa-nos divididos entre o imenso peso da sentença de morte e a indignação pela insensibilidade que nos coloca na realidade familiar de muitos homens e mulheres "assassinados" com o corte brutal da esperança. Em passo rápido como se acompanhássemos uma maratona ficamos contaminados com o cansaço mas não desistimos. Algures queremos chegar à meta. Laura, é uma mulher sobrevivente de um cancro, amputada de um peito, a morrer de SIDA, que vai gravando para a sua filha uma herança de memórias e nesse registo leva-nos ao seu passado, às memórias dos seus antepassados. No limite das suas forças, uma mulher doente, bem e mal-amada, perseguindo vários fios da sua história.

Ana Sofia Fonseca tem talento para nos fazer reagir às palavras, pode-se gostar ou não, mas não ser indiferente. Não há palavras de consolo quando não há esperança.
E, seguimos o ajuste da memória, a preocupação pela filha, a incapacidade de comunicar com quem ainda ama, na dúvida de ser ainda amada.
  
O livro é atravessado por muitas leituras dobradas. Algures nas entrelinhas encontro Mia Couto, embora não nomeado, e o citado “Em nome da Terra” de Vergílio Ferreira a fazer sentido na solidão, no peso da morte, na crueza de toda a escravatura fisiológica e escatológica dum corpo.

O quotidiano segue sem voos, em passos certos e crus. E, de quando em quando, no regresso ao passado chegam alguns ecos de realismo mágico a prometer-nos uma história maior. Há livros, primeiros livros que cumprem tudo e nos deixam a interrogação se depois o segundo chegará ao mesmo patamar. Este, pelo contrário, abre diversas linhas narrativas que hão-de por certo cumprir-se em romances futuros.

Assim prometem os mortos guardados dentro dos vivos.
“ Como carne em pedra quente” é a chave de um passado.

Não há redenção. Fechado o livro, respiramos de alívio. Podemos sair para a rua em busca do sol, libertos das sombras. Ficamos com farripas de memórias, a professora Lurdinhas, um anel de ouro branco com duas pérolas como muitos relembram numa mão a acenar em muitas infâncias, uma avó analfabeta e sábia. “Os mortos não voltam” embora não partam enquanto vivem dentro dos vivos. Lisboa, África. Lutos vários. Guerras atravessadas, de Espanha a África. Olhos de lua e lágrima de rio. Teão, o vizinho do primeiro esquerdo. Um disco de um tango mil vezes repetido. ,Uma Maria Valente de bordel,  tecedora do paraíso de um viúvo avô, que sentencia:
“Senhora Puta rende mais que senhora de Fátima” (…) “Sem a devoção dos homens, ambas não são nada." 
Há uma memória geracional aqui aflorada, de fugida e com insistência. Puerilidades de infância, sonhos de mulher, desejos não atendidos. Fica a sensação de que mais haverá a dizer dessa memória de África. Um ajuste de contas ainda a cumprir-se.  Restos de memórias felizes. Promessas de futuro. Presente.
                                                                                                                 
 A morte só acontece quando não há peitos de vivos para guardar os mortos. A morte de Laura dolorosa de dupla maneira na carne e na ausência dos seus amores. Laura a morrer no esforço de um gesto belo e heróico e altruísta de devolver um sentido à espera de dois corações. A vida pode separar os que se amam mas a morte não. 

A beleza de algumas palavras e a crueza dura de outras cruzam-se como lantejoulas brilhantes entrelaçadas num tricô de linha áspera e baça. A história toca-nos ora como serapilheira sobre carne queimada ora como brisa e água fresca.
Não quero desvendar nada, leiam. 
Deixem-se levar. 

Por um tango de Gardel… “sus ojos se cerraram”

“burlándose el destino me robó su amor”

“Sem ti…”
“Eu também…”
“Como Carne em Pedra Quente”


sábado, 7 de abril de 2012

22 Winter Poetry

Toda escrita é um relógio da alma. Retardado, acelerado, invertido ou avariado. Toda escrita é um plano de voo sobre os factos, sobre as ilusões, sobre a conjecturas existenciais, sobre o tapete estendido do tempo. Toda escrita é um fragmento, uma relíquia do tempo passado, uma antevisão emocional do tempo futuro, do tempo mental cingido pela linha, pelo esboço da realidade que abdica da sua liberdade de ser tudo ao escolher o percurso pré-estabelecido pelo texto da vida que posteriormente fica plasmado num conjunto de linhas.

A poesia de inverno de Mathilde Sophia é constituída pelo mosaico de impressões que foram capturadas e congeladas pelo azoto líquido de 22 poemas. Poemas que cortam a pele como vento do inverno; poemas que aconchegam o corpo sob a manta de lembranças de leituras juvenis como no poema de número IV. Vinte dois poemas que celebram o rito de passagem dum período marcante na vida da autora; de quando a Mathilde cansou-se da jovialidade dos seus 21 anos e avançou para a casa seguinte.

Começo por referir o poema de número IV, porque este activou a maquinaria da minha já tão imperfeita memória e induziu nada menos que uma tripla associação: Fez-me recordar do Proust autor-leitor, que no "O prazer da leitura", deliciosamente descreveu como, na infância, o mergulho nos livros era tal que o mundo ficava reduzido ao vislumbre propiciado pelas páginas que se sucediam umas às outras; recordo-me também da autora desses 22 poemas de inverno a ler o "Du côté de chez Swann" à entrada do Edifício Ciência no Instituto Superior Técnico em 2009; recordo-me dum personagem a sair duma aula de laboratório cujo objectivo era medir as velocidades de corpos em colisão, e que ao longo de quatro horas efectuou medidas e as coligiu em colunas de cifras para então calcular uma média, uma média quadrática, e construir um histograma, esperando, em vão, que esse fosse semelhante a uma distribuição normal. Mas esperem, não fiquem impacientes, a história continua. Esgotadas as quatro horas, o personagem caminha cerca de 1 km e meio, espera pelo autocarro e quando este chega, senta-se, abre a mala de garoto de escola e faz os preparativos para a viagem de cerca de uma hora entre a paragem em frente à Faculdade de Arquitectura na Universidade de São Paulo e a Avenida Consolação. Sim, em 1977, este que agora vos dirige a palavra, tirou da mala, o primeiro volume da monumental obra "La Recherche du Temps Perdu" de Proust , o "No caminho de Swann" (o francês era-me então inacessível), e mergulhou no prazer de esquecer que há um mundo a ser rasgado pelo autocarro com o seu ruidoso motor que parecia estar prestes a explodir com o esforço de subir a Avenida Teodoro Sampaio.

Dois percursos de vida que têm em comum o prazer de ler Proust e o contacto com o que se pode chamar de "o mundo das equações". O personagem que leu Proust em 1977, seguiu o caminho das equações; a Mathilde, apesar de ter "sophia" suficiente para seguir o rasto das equações, possivelmente teve mais "sophia" ao seguir o canto da sereia das palavras. E dos frutos dessa escolha, eu sei que há uma interessante tese de mestrado sobre a influência de Keats em Pessoa e de pelo menos 22 poemas de inverno. E eu não tenho dúvidas que esse é só o início dum brilhante percurso no mundo das letras.

Como professor, eu tenho o hábito, alguns dirão que o péssimo hábito, de ser exaustivo. Como autor, eu procuro cultivar, ou ter a ilusão de cultivar, a elegância minimalista do essencial. Mas aqui-agora, entre amigos e ouvintes, incumbido da tarefa de exaltar a frescura do belo livro de poemas da Mathilde, sem que a minha retórica interfira com a naturalidade da linguagem da autora, não me ocorre mais do que uma navegação de cabotagem, de ir velejando ao longo da costa dos poemas dessa colectânea. Navegar, velejar, ler ao sabor do vento e do capricho de cada poema. Assim seja.

Sobre o poema número IV eu já falei. Ocorre-me dizer que o poema número VI é perigoso ao afirmar que: "Negro, de depressão em depressão,/Entre cumes e florestas sem côr/Onde Homens morrem sem supor/Que toda a viagem é em vão. ..." Não, Mathilde! Não há viagens em vão, como não há linhas em vão! São boas ou más, mas são viagens e linhas de ataque ao âmago da realidade. Mas sim, isso são coisas que nós só aprendemos quando temos 22 anos. Com o poema de número XII, eu ganhei alturas, veio-me à mente a indignação de Álvaro de Campos com a banalidade das coisas que nunca levantam voo, e também a lembrança duma birra dos personagens do "Les Enfants Terribles" de Jean Cocteau, e passo a citar: "Voo à velocidade duma noite escura/e nem uma árvore,/afoita e não suave,/me desvia do intento./Não. Faço o que quero! ..." O poema XVI versa sobre a voluptuosidade duma figura grave, sensual e perfeita, e dá-me uma satisfação muito especial, pois descubro, através da sua leitura, que afinal eu não sou assim tão anormal por achar que "La Mathématique" é uma senhora muito sexy. No poema XVII, percebemos que os pedaços de mar podem se perder resultando num asfixiante desconcerto. Diz-nos a autora: "Não sei onde está o pedaço de mar/que deixei espalhado ontem no quarto./Repugna-me não encontrar as minhas coisas/e a desesperança que me invade na cama descalça,/onde as almofadas se sentam quadradas/sob a minha face gélida, transpirando/asfixia." O poema XXI, "Ergue-te pena", descreve a dança da pena quase desaparecida, reformada compulsoriamente pela digitalização da escrita; poema que procura dar ritmo ao ballet das mãos, dos dedos, e ao esforço necessário para ter forças para escrever quando se é jovem e a vida é um chamamento constante e irresistível. Poema que termina com a pergunta inevitável: "Vais voltar a escrever?-/E fica ela vagamente/Erguida; vai cair,/Acudam, que forças/Lhe faltam p'ra se manter./Já nem dela precisam/Os mestres para rabiscar. -/Mas ergue-te pena! Uma vez/Mais, ergue-te, e vem dançar!"

Finalmente, o poema 22, canta, e como poderia ser doutra forma, Lisboa, e exige de Alfama um beijo mais autêntico: "Oh Alfama, beija-me, que não sou turista!” Não ouso enumerar as associações que me vêm à mente quando Alfama é mencionada. São imensas! E também eu me candidato para um beijo, apesar da minha actual condição de turista quando estou em Lisboa. Mas alternativamente a uma precária enumeração de mementos demasiado pessoais, ocorre-me meter-me pelos números e dizer que o número 22 faz-me recordar o bem conhecido "Catch 22" de Joseph Heller. O “catch” refere-se à cláusula 22 do código militar, segundo a qual para se obter uma licença médica para deixar de pilotar um avião de bombardeiro na Segunda Grande Guerra era necessário que o piloto apresentasse inequívocos sinais de loucura; contudo sabiam muito bem os pilotos que sem essa loucura era absolutamente impossível pilotar. Pergunto-me se não ocorre o mesmo com a obsessão do escritor. Escrever exige um certo descontrole dos sentidos e do intelecto, porém privado do exercício de escrever, todo autor possivelmente enlouqueceria. Loucura causada pela compulsão de escrever, loucura causada pela abstinência do exercício de escrever. É justa a comparação? Possivelmente, pois eu conheço pelo menos um caso. É pertinente no que se refere à Mathilde? Perguntem-lhe; eu suponho que não. Mas mesmo esquecendo essa pretensa analogia, não se deve omitir a uma jovem escritora que nisso de livros há uma dialéctica terrível, pois ao cume do projecto literário concluído, segue a implacável vertigem do vazio da página por se escrever. A implicação é óbvia: esperamos todos que o relógio interno do próximo livro já tenha sido activado. Mas isso agora é assunto da Mathilde. Eu só espero ter a alegria de não ter que esperar muitos invernos para ter o prazer de ler o próximo livro da jovem Mathilde Sophia.

Porto, 30 Março 2012 – Lisboa, 2 Abril 2012.

Orfeu B.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

QUE BELO OBJECTO PARA LER E VER E OLHAR



Inesperadamente ou talvez não encontram-se nas Bibliotecas Municipais alguns livros a que nunca deitámos olhos em qualquer livraria.

Este é um caso assinalável. Um belíssimo objecto para ler e ver e olhar, a começar na capa, no formato e na qualidade do papel, a continuar nos textos deliciosos de Carlos Tê e a acabar nas ilustrações prodigiosas de Manuela Bacelar.



O livro traz-nos poemas sobre o Porto, a partir do Porto, sobre os portuenses, pesrsonagens, mitos e outros quejandos.

Desfilam por nós as vizinhas,os polidores de esquinas, a passagem do ano nos Fenianos, os bilharistas, Campanhã, Cedofeita, os subsídios para uma teoria do portuense proverbial, S. Ildefonso, a Viela do Anjo, Massarelos, a mercearia do Sarmento, os cafés e tantos mais recantos e personagens a solicitar o verbo do poeta.





"Primeiro emigra-se de ventre para o berço,
do berço para o chão, do chão para o pátio,
do pátio para a rua, da rua para todas as ruas.
Começa o êxodo do Eu para outros Eus, a infindável procissão de nós mesmos
em que cada eu carrega um núcleo do Eu primordial,
um caroço irredutível e resistente à corrosão.
..."

("Emigrantes")

quinta-feira, 29 de março de 2012

JAMES JOYCE, ESSE DESCONHECIDO


Este texto pretende assinalar a publicação de uma tradução que considero notabilíssima de uma obra de James Joyce, ”Chamber Music” (“Música de Câmara”, em português).
A obra de Joyce só é parcialmente conhecida entre nós. Se exceptuarmos “Gente de Dublin”, “Retrato do Artista Quando Jovem” e “Ulisses”, pouco ou nada mais é conhecido pelo grande público que se limita a ler obras em língua nacional. De “Ulisses” circulam mesmo duas traduções: a do brasileiro António Houais (Difel) e a do português João Palma Ferreira (Livros do Brasil). A estas duas traduções já me referi em texto anterior publicado neste blogue. A tradução a que hoje me reporto é da autoria de João Flor, anglicista de renome e professor da Faculdade de Letras de Lisboa, e acaba de ser publicada pela Relógio d’ Água. Como não posso, nem devo fazer uma análise da poesia de Joyce, limitar-me-ei a uma chamada de atenção para esta tradução.
“Música de Câmara” é uma obra poética da juventude de Joyce (foi publicada quando tinha 25 anos), premonitória de escritos posteriores. Tradução digna de menção, esta, de João Flor, da qual salientarei apenas dois aspectos: o conhecimento profundo do texto e das suas filiações na cultura inglesa; recriação extremamente conseguida a que o tradutor procede em ordem a encontrar ressonâncias equivalentes em língua portuguesa. Assim, encontramos, ao longo poema, ressonâncias das Cantigas de Amigo, da sonoridade lírica camoneana ou, até, de modernistas portugueses. Digo sonoridades, pois, como acentua João Flor, a “Música de Câmara” é uma obra eminentemente musical, em busca de uma expressão escrita que tenha a música como suporte. Ou, dito de uma maneira mais simples, de um texto escrito que seja uma partitura musical. O que equivale a dizer que estamos perante um grande poema lírico dos tempos modernos que, na sua versão portuguesa, vem enriquecer o nosso património poético.
“Para entender melhor - escreve João Flor, no Prefácio da obra - o lugar cimeiro ocupado na hierarquia das artes, convirá recordar como Joyce detectou e procurou superar as limitações da linguagem articulada, enquanto veículo de representação e expressão dos mais profundos conteúdos da corrente de consciência. Na sua funcionalidade referencial, demasiado concreta e denotativa, a palavra revelava-se-lhe a cada passo insuficiente para transmitir as relações harmónicas dimanadas de uma unidade recôndita, subjacente à diversidade multiforme e quase caótica das coisas. Sobretudo ao assumir a inadequação da linguagem verbal para comunicar o paroxismo das emoções exacerbadas, Joyce situa-se no limiar da inefabilidade e chega a valorizar, por exemplo, a expressividade elíptica de certas formas interjectivas que, na sua espontaneidade instintiva e natural, já se aproximam tendencialmente do silêncio”


A título ilustrativo de diferentes ressonâncias análogas às que poderemos encontrar em autores portugueses, vejam-se alguns dos poemas traduzidos por João Flor:

Poema XX:
Estrofe inicial
“À sombra do verde pinho
Quem nos dera reclinados
Em fresca sombra e profunda
À hora do meio dia”

Estrofe final
“Oh! Ao pinhal sombrio,
Pela hora do meio dia,
Vamos agora nós dois,
Vem daí, amor meu, vem.



Poema XXI
“Quem a glória perdeu sem descobrir
Nem uma alma sequer afim da sua,
Em cólera e desdém, entre inimigos,
Cativo por vetusta fidalguia,
E quem sempre se esquiva, em altivez,
Só tem seu próprio amor por companhia”

Poema XXX
“Aconteceu-nos o amor outrora,
Era ao pôr do sol e um de nós tocava
O outro, ali por perto receoso –
Que principia amor sempre em temor.

Era solene nosso amor. Findou –
Em delícias passámos tantas horas;
Que propício nos seja no final,
O caminho que falta percorrer”

A tradução portuguesa de “Música de Câmara” constitui um contributo importante para o conhecimento, em língua portuguesa, da obra de James Joyce. Esperemos que outras se lhe sigam. Falta-nos, inclusivamente, uma tradução da sua grande obra da maturidade,” Finnegans Wake,” o que talvez seja difícil de se concretizar, tais as dificuldades que o texto original apresenta. Mas se puderam ser ultrapassadas na tradução francesa de Lavergne (Gallimard), tenhamos a esperança que um tradutor português se apaixone suficientemente pelo texto para lhe consagrar uma parte do seu labor.

segunda-feira, 26 de março de 2012

A caixa negra


Diz nas tuas orações que a solidão, o desejo e a nostalgia são mais do que conseguimos suportar. E sem eles, perecemos. Diz que tentamos receber e dar amor, mas que nos perdemos no caminho. Diz que eles não se devem esquecer de nós e que ainda continuamos a cintilar nas trevas. Tenta descobrir como podemos libertar-nos. Onde fica a terra prometida.

Amos Oz


A caixa negra duma relação amorosa desfeita, com todos os detalhes e a densidade da tragédia contada retrospectivamente e por meio da troca epistolar entre os personagens. Mais um romance brilhante, e permeado de grande humanidade do escritor israelita Amos Oz. Um autor que surpreende pela franqueza da sua abordagem e pela extraordinária capacidade de criar formas originais de contar-nos como a natureza humana é igualmente capaz de engendrar a crueldade e a bondade, o egoísmo calculado e o altruísmo espontâneo e absoluto.

Nesse romance invulgar do autor de livros fundamentais como "Nas terras de Israel", "Uma pantera na cave", "Conhecer uma mulher", "O meu Michel", e do único "O mesmo mar", novela que consiste numa sucessão de poemas de comovente beleza e intimismo, a relação conturbada dum casamento que redundou num escandaloso divórcio é dissecada impiedosamente. Mas, dos escombros dessa relação falhada, surge uma pungente trama humana, quando a mulher, agora casada com um religioso, ainda sequiosa de visitar a caverna escura da antiga relação, escreve, sete anos depois para o ex-marido sob o pretexto de encontrar apoio na orientação do filho rebelde, um Sansão, um nazarita acéfalo, um anjo dotado de extraordinária força física, mas sem qualquer propósito e objectivo. Por sua vez, o pai, um militar brilhante, um escritor mundialmente conhecido, vive numa solidão absoluta, consequência lógica da sua história pessoal, indelevelmente marcada pelo divórcio e pelo rigor da sua capacidade de analisar as guerras, as pulsões humanas e o estranho fenómeno da religiosidade.

Um livro de grande beleza e densidade humana, onde o drama dos personagens resolve-se no terreno da acção mais pura e básica do judaísmo e, em certa medida, da condição mais fundamental de toda a concórdia humana: o perdão.

Orfeu B.

sexta-feira, 23 de março de 2012

CO9M A FORÇA DE UM MURRO NO ESTÔMAGO

´

Um homem, engenheiro electrotécnico fica desempregado, escreve um romance e ganha um importante prémio literário.

Foi o caso de João Ricardo Pedro. E o romance é uma surpresa notável quer pela escrita invulgarmente segura para um primeiro romance, quer pela estrutura narrativa, quer pela linguagem seca, dura e sem rodriguinhos.

"Este é dos grandes!" diria o rato Fírmin, devorador de livros, do romance com o seu nome de Sam Savage.

É claro que se trata de um primeiro romance. É claro que é arriscado fazer estas afirmações. É claro que... No entanto, como não sou opinante profissional mas apenas apaixonado pela literatura posso atirar com elogios sentidos sem ter de estar a medir a oportunidade ou a precaver o futuro da produção do autor.

Trata-se de uma narrativa dada em breves pinceladas como se fossem peças musicais ou pequenos contos que vão a pouco e pouco compondo um painel complexo e revelando a história de uma família, avô, pai e neto que se estende por parte do séc. XX, passa pela Guerra Colonial e pelo 25 de Abril e desagua em tempos mais próximos de nós.

É Portugal que passa por aqui. Portugal diverso. Portugal triste, angustioado, brutal debaixo da cantada capa de doçura e melancolia. Mas um Portugal narrado com uma sacana de uma dignidade que não é frequente ver-se.

É claro que se sente na leitura que alguns dos episódios narrados terão alguma coisa de registo do real. Histórias conhecidas, acontecidas, vividas. É normal num primeiro romance. Outras histórias não. Outras têm o peso fascinante da ficção no seu melhor.

A escrita é dura. Curta. Seca. Podíamos dizer, eu pensei nalgunas momentos da leitura, "Bolas, isto é de homem!" Não há poesia por aqui, ou melhor, não há um certo tipo de poesia adocicada que impregna alguma da nossa prosa. As palavras saem carne viva da banca de trabalho do escritor e atigem-nos amiúde com a força de um murro no estômago.

terça-feira, 20 de março de 2012

O PURO PRAZER DA ESCRITA E DA LEITURA



O verdadeiro leitor é um vagabundo. Salta de um livro para outro, de um género para outro. E Olivier Rolin responde-nos com um estranho e notável livro a todo este desejo de vagabundagem

"Baku" é uma viagem por ruas, casas e paisagens. E pela História, pela literatura, pelas línguas.

Das hipotéticas aventuras eróticas do General De Gaulle com uma cantora de ópera, às histórias da juventude do jovem Kobai que mais tarde viria a ser conhecido por Estaline, à visita breve ao fantástico espião Sorge, à rapariga que se apresenta como sendo lesbiana por erro de pronúncia.

"Baku" nasce de um delicioso equívoco. Em 2003, Rolin escreve um livro de contos passados em quartos de hotel. Num desses contos o escritor prevê o seu próprio suicídio no quarto 1123 do Hotel Apcheron em Baku.

Desafiando o receio de alguns amigos, Rolin vai a Baku passar os dias em que é suposto suicidar-se no conto de 2003. Vem pôr à prova "o poder profético da escrita".

O hotel, no entanto, já não existe e o resultado deste desafio é um livro que está para além da definição de género. Não é um romance, nem um livro de viagens, nem um diário. É talvez um pouco de tudo isso e muito mais.

Citando Montaigne, Rolin diz que uma forte imaginação cria a coisa. E é isso que ele faz criando com palavras uma teia de personagens, histórias e imagens que me deixaram encantado.

A viagem de Rolin pelo Azerbeijão e Turquemenistão faz-nos entrever a complexidade deste mundo da Ásia Central, ruínas da URSS onde se misturam e frequentemente se combatem antiquíssimas nações, línguas, culturas, religiões tão distante de nós.

A nossa história portuguesa e o nosso imaginário estão para Sul, não para Leste. Por isso me será tão estranho quanto fascinante este mundo que se constrói e desfigura em torno do Mar Cáspio, o mar que não é mar porque não comunica com outros mares e talvez por isso os nossos navegantes nunca tenham lá chegado.

Eu já tinha mergulhado um pouco neste cadinho de convivências culturais complexas através de um livro deslumbrante de Elias Canetti, " A língua posta a salvo".

Mas Rolin vai mais longe fazendo aparecer e desaparecer à nossa frente personagens reais e literários, espiões, generais, ditadores, princesas, além de revelar uma aparente honestidade intelectual que faz interrogar-se aqui e ali, fugindo às absolutas verdades da auto-construção de alguma mitologia pessoal.

Como se se tivesse esquecido que ia a Baku para confrontar a morte, já no final do livro Rolin, obrigado pelo seu propósito, enumera várias e delirantes mortes possíveis. Só essas mortes seriam um belo início para o que poderia tornar-se numas outras "Mil e uma noites".

"Baku" é o resultado do puro prazer de pensar, derivar, acumular, saltar, escrever e escrever e escrever. E esse prazer da escrita passa para o prazer da leitura e é por isso que nós os leitores agradecemos ao autor

sábado, 17 de março de 2012

“O que me prende é o que te prende/largo horizonte de outros passados/raízes fundas presas ao chão/e um mar tão largo//” Glória de Sant’Anna



“Nunca Mais é Sábado”
Antologia de Poesia Moçambicana
Organização de Nelson Saúte
D. Quixote



Os livros atravessam-se no caminho, nada a fazer. A paragem era para um café a caminho da Biblioteca mas a livraria era mesmo ao lado. Muitas tentações e 3.90 euros por um livro com dezenas de poetas dentro irrecusável. Desconhecia muitos deles mas os que reencontro ancoraram muito bem a escolha. 
Uma Antologia é assim mesmo, um percurso escolhido entre muitas possibilidades. Portas que se abrem para muitas casas. Peço o café, leio… E continuo a ler ainda. 
Atravessam os poemas as lutas e as desditas de uma nação. Somos parte de um todo que não entendemos porque não nos lemos, não nos ouvimos, nesta distância feita de chão e de ressentimentos. De mal-entendidos porque julgamos que vemos bem o visto de longe, Moçambique como outros lugares.
A poesia deixa-nos a pensar e a sentir, suspende ou atira razões à quezília. A História está a ser escrita com lágrimas e risos. E não sabemos nada da vida de um povo se não entendermos o sofrimento, a natureza dos espinhos e o amor. Sempre o amor e o corpo que o celebra.  

Partilho o Eduardo White, um dos meus preferidos. 

“Felizes os homens
que cantam o amor

A eles a vontade do inexplicável
E a forma dúbia dos oceanos.”

( in Amar sobre o Índico)


Teu corpo é o país dos sabores
da súplica e do gozo,
é essa taça onde bebo
toda a loucura em que me converto,

teu corpo, meu deus, teu corpo
é a vida,
os estames altos,
os gestos lentos,
as carnes e as águas,

teu corpo é essa casa feliz
onde se celebra
a loucura e frio dentro das falésias,
teu corpo é um amor de suplícios,
amor que não sobra,
não resta
e que nem mesmo de fadiga cessa.”

( in País de Mim)

Partilha feita vou continuar a ler, para isso servem os comboios.


segunda-feira, 12 de março de 2012

PORQUÊ LER OS CLÁSSICOS?


Lê-se tanta coisa menos boa. Mas actual. Podemos dizer mesmo que há muita literatura menor (queira isso dizer o que quiser) a que os propagandistas dos livros conferem a urgência da moda e da actualidade.

Do muito que aparece nas bancas das livrarias, o que será considerado um clássico daqui a 100 anos?

De vez em quando regresso aos clássicos, àqueles a que podemos chamar clássicos, com a sorte de dispor hoje de algumas traduções magníficas como é o caso, para o russo, de Nina Guerra e Filipe Guerra, ou António Pescada. Gogol, Turgueniev, Tolstoi, Dostoiewsky, Tchekhov… Constituem uma força única na história da literatura mundial

Mas o que é um clássico?

“Por mais vasta que possam ser as leituras de “formação” de um indivíduo fica sempre um número enorme de obras fundamentais que não se leu”, diz Italo Calvino. Calvino no seu “Porquê ler os clássicos?”.. E acrescenta algumas definições muitíssimo saborosas sobre o que é um clássico:

“De um clássico, toda a releitura é na realidade uma primeira leitura”

“Um clássico é um livro que nunca acabou de dizer o que tem a dizer”

Tchekhov é sem dúvida um clássico. Um extraordinário escritor que me deixa sempre mais reconfortado, porque reconforta ler aquilo que se reconhece como clássico, e porque me leva a reflectir sobre a alma humana, os seus ditames e as suas contradições, que é, no fundo, a espinha dorsal de toda a literatura.

É dessa visita à alma humana que se trata neste “Duelo”. Modernidade e pasmaceira, ciência e fé, amor e desamor, verdade e mentira.. Três ou quatro personagens encontram-se numa pequena cidade do Cáucaso e chocam em torno destes temas que serão sempre os que atormentam os homens estejam eles onde estiverem.

A contradição entre personalidades e conceções diferentes desemboca num duelo que ninguém deseja e que acaba por não ter consequências a não ser a do reencontro de um homem com a sua dignidade e com o desejo de mudar uma vida sem sentido num tempo novo de dignidade própria.

Tchekhov desenha com raríssima mestria personagens aparentemente simples que se tornam complexas pelas circunstâncias. Não precisa de sublinhar. Basta-lhe narrar os factos, as circunstâncias, os acontecimentos, para que as suas personagens saltem do papel com suas paixões, grandezas e misérias para ganharem carne e osso aos olhos do leitor.

quinta-feira, 8 de março de 2012

UMA PEÇA EM MUITOS ATOS



A reforma, ou aposentação é, como se sabe, uma situação particular, embora cada vez mais geral, que acarreta consigo inúmeras situações, umas dramáticas outras caricatas, umas hilariantes, outras comoventes. Outras, muitas, dir-se-ia que inexistentes, porque muito do que a caracteriza e em muitas das situações mais correntes o significativo delas é o simples passar do tempo, o estar ou ir estando, o deixar correr, porque outra coisa não se pode fazer. A princípio ainda queremos, (os que querem), depois já não podemos, mesmo querendo, (e mesmo que ainda podendo), depois já nem queremos nem podemos. Ou seja, o melhor dela, ou quase tudo dela, em muitos casos, é o ir indo, porque outra coisa não se pode fazer, ou não se quer fazer, ou não se sabe como que fazer. E isto tem muitos sentidos, não só o de que o tempo passa e não se pode parar, mas também o de que, com ele, apesar de se estar esgotando, se caminha para uma síntese, um cúmulo de situações e de experiências que só o tempo dá, à medida que tira, como se o próprio tempo se retirasse em cada um de nós. E isto é dramático, porque há uma situação de limite que se acrescenta e se esvai, que se torna mais densa e ao mesmo tempo se dilui, e que, por isso, é triste, mas também pode ser reconfortante e, em muitos casos, transfiguradora e até catártica. O que, felizmente, já muitos reformados perceberam, mas o número dos que ainda não o compreenderam, ou não têm condições de o compreender, é demasiado. Infelizmente.
Desejada por muitos, temida por muitos outros, invejada por quase todos os que ainda lá não estão, e que talvez já não a queiram quando chegar a sua vez, a aposentação multiplica situações, casos, histórias, perspectivas, vivências, sabedorias, manias, demências, injustiças, frustrações, azedumes, solidões e recompensas, que a literatura não tem explorado tanto quanto o potencial dela podia levar a efeito. Talvez porque os produtivos ainda lá não estão, e os que lá estão já não são produtivos, ou assim o entendem os outros, ou até, muitas vezes, eles próprios. Situação e estado da mais profunda contradição: temos mais tempo quando já não temos muito tempo, temos mais sabedoria quando já ninguém nos ouve, podemos ser mais úteis quando passa subliminarmente, em todos os discursos, a inutilidade, ou quase, dos que nela estão.
Um livro recente de Albano Estrela (Histórias de reformados com solidão à vista. Lisboa, Indícios de oiro, 2011) parte da perspectiva do reformado que se observa e que observa os outros reformados, que pensa a sua situação e a projeta e recupera, nos outros. Mas fá-lo de uma maneira não erudita, nem pesada, mas através de histórias e casos que de algum modo traduzem as inúmeras situações que a reforma produz. A reforma é aquilo que cada reformado for capaz de ser, ou de fazer com ela, ou de viver e ser a partir dela e através dela. A reforma ganha assim o estatuto de ambiguidade e multiplicidade que a linguagem e a mentalidade geral ainda não percebeu bem. Todos falam hoje do envelhecimento ativo, muitos são os que precisam cada vez mais dos pais e dos avós (ou seja dos reformados) por razões económicas, logísticas, educativas, e muitas outras. Mas isso não significa que percebem, ou sejam capazes de compreender tudo o que a situação de reformado implica, em termos psico-afetivos, e sociais, tudo o que possibilita, ou devia possibilitar, tudo o que contém ou devia conter.
Estas Histórias de reformados com solidão à vista fazem literatura sem o querer fazer, ou dando a ideia de que o não querem fazer, o que, como se sabe, é às vezes a melhor maneira de fazer boa literatura. Numa linguagem simples, fluente, elegante, histórias curtas, situações umas vezes aparentemente banais, outras inéditas, quase sempre inesperadas, vão produzindo um quadro complexo, multifacetado, rico, de uma situação e de um estado social e afetivo que pode ser tudo menos linear ou simples, muito menos, fácil. A complexidade está lá, mas subentendida, escondida por debaixo do correr dos dias, das atitudes e dos casos. Livro “leve” que nos deixa a pensar, livro revelador de um universo que passa por nós, que anda à nossa volta e que muitos casos ultimamente ocorridos nos demonstram poder ser muito mais dramático do que habitualmente se pensa.

João Boavida

(Leitor convidado - Professor Catedrático da Universidade de Coimbra)

domingo, 4 de março de 2012

O clube do urânio de Hitler



O século XX foi um dos mais brutais da história. Duas grandes guerras, extermínios em massa, massacres e humilhações perpetradas por sistemas totalitários e ditaduras de toda espécie. Mas nada se compara à força destrutiva do nazi-fascismo que, só na Segunda Grande Guerra, ceifou cerca de 50 milhões de vidas. O mundo resultante dos escombros dessa destruição sem precedentes pode não ter sido o mais auspicioso, mas não há qualquer dúvida de que a vitória amargamente pírrica dos aliados foi o melhor resultado possível. Porém, a história poderia ter sido diferente se Hitler tivesse armamentos nucleares. A análise do desenvolvimento do programa nuclear de Hitler é o objecto deste livro, que disseca, com rigor científico e histórico, os dossiers da Operação Epsilon, que foram tornados públicos em 1992.

Esta operação secreta dá seguimento a uma operação anterior, a Operação ALSOS, que visava obter, na esteira do avanço anglo-americano através Europa liberta do nazismo, informação sobre o desenvolvimento nuclear na Alemanha durante a guerra. A Operação aliada Epsilon, que se iniciou com a derrota da Alemanha na primavera de 1945 e se estendeu até o início de 1946, consistiu na captura, transporte, alojamento e observação de dez dos mais eminentes cientistas nucleares alemães. Dentre esses encontravam-se dois Prémios Nobel, Max von Laue (que não esteve envolvido nas actividades de desenvolvimento nuclear e que foi um resistente ao regime) e Werner Heisenberg, para além de Otto Hahn, que descobriu experimentalmente a fissão nuclear em 1938, e que acabou por ser galardoado com o Prémio Nobel de 1945, precisamente enquanto estava sob detenção.

Estes dez cientistas (excepção feita a von Laue), faziam parte do "Uranverein" (Clube do Urânio) que, durante a guerra, foi incumbido pelo Exército Alemão de desenvolver, sob a liderança de Heisenberg, uma bomba atómica e para tal um reactor nuclear. Depois de capturados, os cientistas foram instalados numa casa de campo, Farm Hall, em Godmanchester, perto de Cambridge, e, sem o seu conhecimento, foram mantidos sob escuta.

A transcrição das conversas desse grupo é extraordinariamente reveladora e desmente categoricamente a ideia propagada depois da guerra, muito particularmente por Heisenberg e Carl von Weizsaecker, um hábil e politicamente bem colocado membro do grupo (era filho dum proeminente diplomata do Reich, Ernest von Weizsaecker), segundo a qual os cientistas alemães tinham desde o início adoptado a postura ética de não desenvolver armas nucleares para Hitler, ao passo que os cientistas anglo-americanos, apesar de livres, não tinham tido qualquer problema de consciência por desenvolver e utilizar as armas nucleares que haviam concebido.

Mas esta versão é cabalmente desmentida pela verdade dos factos, como nos revela a conversa livre entre os membros do grupo. E a verdade pode ser muito simplesmente resumida: as armas nucleares não foram desenvolvidas na Alemanha porquê os cientistas alemães não haviam compreendido aspectos fundamentais no desenvolvimento num reactor nuclear (a palavra alemã utilizada é "Machine") e da complexa problemática física e técnica envolvendo a construção e a detonação duma bomba nuclear. Contudo, a intenção era claríssima no que diz respeito a Heisenberg e von Weizsaecker, como o revelam inúmeros documentos, memorandos, pelo menos uma patente (de von Weizsaecker) e a documentação de discussões e apresentações com e para importantes membros da elite Nazi. Naturalmente, mesmo que o problema de construção da bomba atómica tivesse sido completamente compreendida pelos cientistas alemães, é pouco provável que estes pudessem mobilizar os recursos materiais, e sobretudo humanos, para a monumental tarefa de libertar a energia nuclear para fins militares. Mas a questão é que a intenção primordial do programa nuclear alemão era o desenvolvimento de armas nucleares.

É particularmente interessante a transformação psicológica que teve lugar na mente desses cientistas enquanto estiveram em cativeiro. Inicialmente, supuseram que haviam sido capturados pelo estágio superior dos seus conhecimentos em física nuclear. De facto, ao serem interrogados pelo físico holandês-americano Samuel Goudsmit (que foi incumbido para a tarefa no contexto da Operação ALSOS pelo general norte-americano Leslie Groves, líder administrativo e militar do projecto de construção da bomba atómica aliada, o Projecto Manhattan), nada lhes foi dito sobre o desenvolvimento alcançado pelos aliados. Quando souberam em 6 de Agosto de 1945, através da imprensa, da destruição de Hiroshima por uma bomba cujo material físsil era urânio enriquecido, a primeira reacção foi a de negação. Heisenberg chegou mesmo a afirmar que não se tratava duma arma atómica, mas dum explosivo convencional mais desenvolvido. Subsequentemente, acalentaram a ideia de que uma arma mais desenvolvida que usasse um elemento artificial, o plutónio, a ser produzido num reactor era inacessível aos aliados, e que eles teriam esse trunfo para negociar com os aliados a sua libertação. Contudo, esta ilusão foi rapidamente desfeita pelos factos, dado que em 9 de Agosto, a imprensa de todo o mundo notificava que Nagasaki havia sido destruída por uma bomba de fissão que usava o elemento artificial produzido num reactor nuclear, o plutónio. Perplexos e desmoralizados desenvolvem, pouco a pouco, a tese absurda e mentirosa de que nunca tinham tido a intenção de desenvolver armas nucleares e que estavam, na verdade, empenhados na construção dum reactor nuclear para fins pacíficos. Finalmente, em 14 de Agosto de 1945, Heisenberg dá um seminário técnico para o grupo, onde expõe a sua compreensão de como funcionava uma bomba atómica. A exposição revela impiedosamente todas as deficiências inerentes ao programa alemão, para além do desconhecimento de vários aspectos técnicos, e a incompreensão de muitos dos problemas mais fundamentais associados aos processos físicos relativos à fissão e à detonação do material físsil. Tudo isso sem falar nos milhares de problemas de física, de tecnologia e de produção que os cientistas alemães teriam que solucionar, mas sobre os quais ainda não tinham a mais pálida ideia devido ao primitivo estágio do seu programa nuclear.

O livro de Jeremy Bernstein permite-nos perceber o grau de desenvolvimento atingido pelos cientistas alemães, avaliar com clareza a verdadeira dimensão da degradação moral dos homens que trabalharam para Hitler, e elucidar com exactidão inúmeros aspectos técnicos (Bernstein tem formação em física nuclear) e históricos. Numa síntese final, Bernstein, faz uma rigorosa análise dos vários equívocos que circularam sobre o objectivo dos cientistas do Uranverein e o desenvolvimento da física nuclear na Alemanha durante a Segunda Grande Guerra por conta do desconhecimento das transcrições das conversas de Farm Hall. O livro de Bernstein é uma leitura obrigatória para todos que estiverem interessados na verdade histórica sobre os cientistas nucleares de Hitler.


Orfeu B.


sábado, 25 de fevereiro de 2012

COM PALAVRAS FAZER ACONTECER


Mário de Carvalho diverte-se e nós também. Os seus contos são frequentemente brilhantes e servidos por uma escrita de altíssima qualidade.

As suas narrativas partem daquela ideia enunciada por Jorge Luís Borges segundo o qual com palavras podemos fazer acontecer um tigre. Ou qualquer outra coisa, digo eu. A palavra acrescenta e expande a realidade. E é nessa capacidade de expandir a realidade que o Mário é um mestre.

Haverá 3 ou 4 linhas nesses contos. O livro é aliás organizado em 4 capítulos sem título.

No primeiro temos os contos totalmente inventados que exploram o universo de certas histórias ou reportagens de cenários de guerra num país árabe e, o outro, em África. Este último “Na terra dos Makaueles” é uma verdadeira obra prima de invenção pstiche e ironia com um final delicioso.

No segundo grupo temos contos mais próximos do realismo. Histórias dos tempos da resistência ao fascismo. Desenhadas com uma excelente capacidade de captar o tom da época quer na acção quer nos diálogos.

O terceiro grupo situa-se no campo do absurdo, outra zona onde o Mário se sente como peixe na água, aliás como aquele estranho peixe de “O Celacanto” que se transformou em primo de instalações artísticas patarecas e foge da galeria passeando ou voando (?) à solta pelas ruas de Lisboa.

O quarto grupo, onde está mais ausente a ironia que é a roupa que melhor veste a escrita de Mário de Carvalho, para nos dar três narrativas obsessivas, inquietantes, um tanto psicologistas.

Li-o num dia e meio. Quase sem parar. O conjunto resulta num tempo de leitura divertida e consistente como é raro encontrar na literatura actual.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

UM ROMANCE PARA MASTIGAR


Escrita portentosa do Nobel J. M. Coetzes. Escrita funda. Organizada. Aparentemente do lado racional do olhar sobre o mundo. Mais virada às racionalidades que às emoções.

Elizabeth Costello é uma escritora australiana que percorre o mundo a fazer palestras. Nos primeiros 7 capítulos assistimos às suas palestras, às suas ideias por vezes contraditórias sobre o bem e o mal, os direitos dos animais, o holocausto, etc.

A princípio o livro parece ser apenas uma exposição brilhante de ideias. Mas, a figura da escritora vai crescendo quase sem o leitor se dar conta disso e explode numa forma muito particular de associar o racional e o emocional, para terminar de forma absolutamente inesperada ou pelo menos surpreendente com a espessura que só um grande escritor é capaz de conferir à sua escrita.
Neste romance construído cuidadosamente e cheio de pequenas e grandes surpresas, Coetzee obriga-nos a pensar, a argumentar, a usar o contraditório, a emocionarmo-nos com o brilhante exercício de uma racionalidade levada quase até ao extremo.

Diria que “Elizabeth Costello” é um romance para mastigar, para ler devagar, parar a meio, voltar atrás. Para reler. Não serve para distrair. Não é um entretenimento. É literatura. Grande. Daquela que nos faz pensar e repensar no tempo que nos é dado viver através do uso notável da arte das palavras e da reflexão sobre o uso dessa arte.