quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Contos de Odessa e outros


Toda a gente da nossa categoria, correctores, lojistas, bancários e empregados de companhias de navegação, ensinava música aos filhos. Os nossos pais, não vendo saída para os rebentos, imaginaram uma lotaria para enriquecer e montaram-na à custa do nosso esforço. Odessa foi afectada por esse delírio mais do que outras cidades, Devido a isso durante decénios forneceu meninos prodígio às salas de concerto de todo o mundo. De Odessa saíram Micha Elman, Zimbalist, Gabrilovitch, e aqui começou Yacha Heifetz.

Quando a criança fazia quatro ou cinco anos, a mamã levava esse ser minúsculo e enfezado ao senhor Zagurski. Zagurski tinha uma fábrica de meninos prodígios, uma fábrica de anões judeus com gola de renda e sapatinhos envernizados. Descobria-os nos tugúrios de Moldavanka e nos pátios macilentos do Bazar velho. Dava a primeira orientação, e depois as crianças eram enviadas para o professor Auer, de Petersburgo. A alma daqueles alfenins de grande cabeça azul ansiava por uma potente harmonia. Alguns chegaram a ser virtuosos afamados. Meu pai quis entrar na competição. Tinha eu quatorze anos, já passara da idade dos meninos prodígios , mas, devido à minha estatura e moleza, bem podia passar por oito anos. Aí residiam todas as esperanças. 


Por respeito pela sabedoria e pela demência do meu avô, Zagusrski cobrava-nos um rublo por aula. Mais: só por receio ao meu avô gastava tempo comigo, porque eu era um caso perdido. Os sons que se desprendiam do meu violino pareciam limalha de ferro. A mim mesmo aqueles sons destroçavam-me o coração, mas o meu pai não me deixava em paz. Em casa só se falava de Micha Elman, isento do serviço militar pelo czar em pessoa. Zimbalist, ao que o meu pai apurara, tinha sido apresentado ao rei de Inglaterra e tocara no palácio de Buckingham; os pais de Gabrilovitch tinham comprado duas casas em Petersburgo. Os meninos prodígio tinham enriquecido os pais. Meu pai podia aceitar ser pobre, mas precisava da fama. 

— Não é possível — sussurravam-lhe os que comiam por sua conta —, não é possível que o neto de um avô destes …

Eu não era da mesma opinião. Quando ensaiava os exercícios de violino, colocava na estante da pauta um livro de Turguénev ou de Dumas e, enquanto arranhava o instrumento, ia devorando uma página após outra. Durante o dia contava aos miúdos da vizinhança patranhas que à noite passava ao papel. Na nossa família a escrita vinha por herança. O meu avô, Leivi-Itsjok, que ao chegar a velho perdeu o juízo, passou a vida a escrever uma novela intitulada “O homem sem cabeça”. Eu saí a ele.  


Isaak Babel


Na tradição de Turguénev, Gógol e Tchekov,  uma breve coletânea, ainda que rica e marcante, de contos de Isaak Babel (1894-1940), escritor considerado por Harold Bloom uma força primordial e dotado de uma intensidade tolstoniana. O crítico naturalizado brasileiro Otto Maria Carpeaux  (1900-1978) considerava Babel “o maior contista que já surgiu no século XX” e acrescentou: “A amplidão e o objetivo de sua visão social permitiu-lhe ver o mundo pelos olhos dos camponeses, soldados, padres, rabinos, crianças, artistas, atores, mulheres de todas as classes. Tornou-se amigo de prostitutas, cocheiros, jóqueis; sabia o que era ficar sem um centavo, viver no limite da pobreza e marginalizado. Foi ao mesmo tempo o poeta da cidade e um lírico da vida rural. ... Vive de uma maneira robusta, inquisitiva e faminta: seu apetite pelo que é imprevisivelmente humano é gargantuesco, inclusivo, excêntrico. Ele é cheio de truques, malandro, irônico, um amante instável, um impostor imprudente – saindo dessas centenas de fogosos ‘eus’, verdades insidiosas arrastam-se para fora, uma por uma, em um rosto, na cor do céu, em uma poça de lama, em uma palavra. É como se ele fosse uma membrana irritável, sujeita a cada vibração das criaturas.”

É de facto espantosa a multiplicidade de pontos de vista adoptados pela prosa de Babel e a amplitude e profundidade da sua visão do mundo. O seu estilo é extraordinariamente histórico, e numas poucas frases é capaz de traçar como uma vida se desenha no contexto dos mais complexos e turbulentos desenvolvimentos históricos. Suas descrições da vida quotidiana da comunidade judaica no início do século XX em Odessa e dos odiosos pogroms são pungentes, como o são os seus contos sobre o sangrento período que sucedeu à Revolução Bolchevique.  

Babel nasceu no seio uma família judaica ortodoxa em Odessa. Membros da sua família foram assassinados em pogroms da era czarista. Na adolescência, cursou um liceu comercial, e estudou também o Talmude e música. Não foi bem sucedido na tentativa ingressar na Universidade de Odessa, pelo que se matriculou no Instituto de Finanças de Kiev. Em 1915, depois de graduado, mudou para Petersburgo onde conheceu o escritor russo Maxim Gorky (1868-1936), facto que marcou a sua vida literária e a sua militância política. Bolchevique de primeira hora, acreditava que a Revolução permitiria uma evolução cultural que ultrapassaria os pogroms e o anti-semistimo. A partir de 1920, participa activamente na guerra contra os “brancos” que se teve lugar de 1918 a 1922. Documentou os horrores que testemunhou num diário que posteriormente tomou a forma de uma colectânea de contos, A Cavalaria Vermelha, publicados em 1924, com o apoio de Gorky, na revista "ЛЕФ" (LEF) de Maiakovski (1893-1930). Estes textos foram recebidos com hostilidade pelas autoridades soviéticas.

Em 1930, Babel trabalhou na Ucrânia, e testemunhou a brutalidade imposta pelas autoridades soviéticas durante o processo de colectivização coerciva, e do qual resultou a morte pela fome de centenas de milhares de camponeses ucranianos. A imposição de Stalin relativamente à adopção do realismo socialista como forma única de expressão artística, levou-lhe a se afastar da vida pública. Quando subsequentemente foi acusado publicamente de improdutividade, declarou ironicamente, no primeiro congresso da União dos Escritores Soviéticos em 1934, que estava a aperfeiçoar um novo estilo literário, o “género do silêncio”. Em 1935, foi repreendido pelo próprio Gorky por cultivar uma “baudelaireana predilecção pela miséria humana" e por retratar a sociedade soviética de forma desfavorável. Nesses anos, também colaborou com Sergei Eisenstein (1898-1948), e foi autor de diversos guiões de filmes de propaganda soviética.

Em Maio de 1939, Babel foi preso na sua dacha em Peredelkino, ao sul de Moscovo, e interrogado sob tortura na prisão Lubyanka. Acabou por confessar pertencer a uma organização controlada do estrangeiro por Trotsky (1879-1949), e de ter sido recrutado para espionar em favor da França pelo escritor francês André Malraux (1901-1976). O seu nome foi removido das enciclopédias e dos dicionários literários, assim como dos créditos dos filmes com os quais colaborou. Segundo a versão oficial, Isaac Babel morreu em 17 de Março de 1941 num dos campos de concentração do regime, porém os registos da NKVD indicam que foi fuzilado em 26 de Janeiro de 1940, depois de um julgamento sumário que durou 20 minutos. Os seus manuscritos e pertences foram confiscados e destruídos pela NKVD. 

Em Dezembro de 1954, durante a abertura do regime depois da morte de Stalin em 1953 e a sucessão de Khrushchev, Babel foi oficialmente absolvido do seu “crime”. Antologias selectas dos seus trabalhos só foram publicadas depois de 1966. 

Orfeu B.


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