segunda-feira, 9 de novembro de 2009

DESCRIÇÃO CINTÍFICA E DESCRIÇÃOLITERÁRIA


Por vezes, o menos evidente é o que está mesmo debaixo dos nossos olhos. E foi o que me aconteceu durante anos. Por razões profissionais, investiguei, ensinei e escrevi sobre métodos e técnicas de observação. Principalmente sobre métodos e técnicas de observação naturalista. Por amor pela literatura, li e reli obras de ficcionistas, nomeadamente daqueles que se situam na nossa contemporaneidade. E, espantosamente, só recentemente é que se me tornou evidente a semelhança que existe entre determinados textos científicos que decorrem da observação naturalista e descrições literárias de autores do pós-modernismo.
As bases da observação naturalista foram estabelecidas por Charles Darwin e da sua aplicação resultou umas das obras maiores da Ciência, “A Origem das Espécies” (1859). Já a caminho do fim da vida, Darwin escreve uma “Autobiografia” (1876), na qual nos diz: “… penso que sou superior à capacidade comum dos homens por observar as coisas que escapam facilmente à atenção, e em observá-las com cuidado. A minha aplicação na observação e na recolha de factos foi quase tão grande quanto devia.”
A observação naturalista consiste, em última instância, numa forma de “observação objectiva”, realizada em meio natural. A sua aplicação nos domínios da Psicologia e das Ciências da Educação tem-se revelado extremamente fecunda, a partir de meados do século XX, contribuindo para o progresso científico dessas ciências.
Numa tentativa de simplificação, como convirá a uma crónica bloguista, poderemos dizer que a observação naturalista obedece a cinco grandes princípios: 1) não é uma observação selectiva – o observador procede a uma acumulação de dados, pouco ou nada selectiva, passível de uma análise rigorosa; 2) preocupa-se, fundamentalmente, com a precisão da situação, isto é, com a apreensão de comportamentos ou atitudes inseridos na situação em que se produziram, a fim de se reduzirem ao mínimo as dúvidas referentes à sua interpretação – assim, por exemplo, as falas dos observados deverão ser transcritas em discurso directo, sempre que possível; 3) a continuidade é um dos princípios de base que possibilita uma observação correcta – a selecção dos acontecimentos é algo de arbitrário que se verifica apenas no laboratório, pois o processo vital é caracterizado pela ininterrupção; 4) a finalidade é estabelecer “biografias” compostas por um grande número de unidades de comportamento, que se fundem umas nas outras; 5) há que evitar, na fase de observação propriamente dita, toda e qualquer interpretação de ordem subjectiva – quando esta se impõe deve ser apresentada como uma inferência, sujeita a confirmação posterior.
A título de exemplo, vejamos um extracto de um protocolo de observação naturalista referente a uma sala de aula:

“A (aluno) 6 entra na sala e bate com a porta. O professor tinha-o mandado ‘tomar ar’. Alguns colegas pedem-lhe material emprestado (A19 e outros). Não vendo a sua folha de cartolina, A6 circula perguntando aos seus colegas se a tinham visto. Exclama em voz alta: ‘Pff!’ O aluno parece zangado por não encontrar na mesa a sua folha de cartolina.
O professor interpela-o: ‘Então, começas a trabalhar, ou não?’ Vai ao pé da mesa do aluno, põe um pouco de ordem no material que aí se encontra e regressa à sua secretária. Agressividade do professor em relação a este aluno. A preocupação parece ser a de o controlar.”
Nota: as inferências do observador estão em itálico.

Atente-se, agora, em dois autores, Peter Handke e Raymond Carver, habitualmente considerados como autores de referência do pós-modernismo. De Peter Handke, transcrevo uma descrição de “A Angústia do Guarda-redes Antes do Penalty” (Relógio D’Água):

“A empregada tinha-se juntado a eles com uma revista na mão; juntos, olharam lá para fora. Bloch perguntou se o homem que fazia os poços tinha voltado a aparecer. A locatária, que apenas tinha ouvido a expressão ‘voltado a aparecer’, começou a falar dos soldados. Bloch, em vez disso, disse ‘voltado’e a locatária falou do rapazinho mudo. “Ele nem sequer podia gritar por socorro!” disse a empregada, ou antes, leu num artigo da revista que tinha na mão. A locatária falou de um filme em que tinham misturado pregos numa massa para bolo. Bloch perguntou se os guardas na torre de vigia tinham binóculos: de resto havia qualquer coisa que brilhava lá em cima. ‘Daqui nem se vêem as torres de vigília lá em cima,’ respondeu uma das duas mulheres. Bloch reparou que, por terem estado a fazer bolos, tinham farinha na cara, em especial nas sobrancelhas e na linha do cabelo.
Saiu para o quintal, mas como ninguém o seguiu, voltou para trás. Colocou-se de tal maneira na music-box que ainda havia espaço para outra pessoa. A empregada, que estava agora sentada atrás do balcão, tinha partido um copo. Ao ouvir o barulho, a locatária veio da cozinha, mas não olhou para a empregada mas para ele. Bloch rodou o botão atrás da music-box para pôr o disco mais baixo. Em seguida, ainda enquanto a locatária estava à porta, voltou a pôr a música mais alto. A locatária atravessou a sala à frente dele, como se a estivesse a medir. Bloch perguntou-lhe quanto é que ela pagava de renda ao proprietário da casa. Hertha parou ao ouvir esta pergunta. A empregada pôs os cacos dos vidros numa pá. Bloch dirigiu-se a Hertha. A locatária passou por ele e foi para a cozinha. Bloch seguiu-a.
Como um gato ocupava a segunda cadeira, Bloch ficou de pé ao pé dela. Ela falou do filho do proprietário, que era namorado dela. Bloch pôs-se à janela e fez-lhe perguntas sobre ele. Ela contou-lhe o que fazia o filho do dono do prédio. Sem que ele lhe fizesse mais perguntas, continuou a falar. Bloch avistou na borda do fogão um segundo frasco de conserva. De vez em quando ele perguntava: Então? No fato-macaco que estava pendurado na moldura da porta, avistou uma outra régua. Ele interrompeu-a e perguntou-lhe em que número é que ela começava a contar. Ela hesitou, parou até de descascar a maçã. Bloch disse que tinha reparado que recentemente começava a contar no número dois; esta manhã, por exemplo, tinha sido quase atropelado porque pensou que tinha tempo suficiente até ao segundo carro; ele simplesmente tinha passado por cima do primeiro. A patroa respondeu com um lugar comum.”

Destacamos a expressão “como se estivesse a medir”, pois, na verdade, trata-se de uma inferência. Interessante será ainda a utilização do discurso directo: “Daqui nem se vêem as torres de vigília lá em cima.” Estamos, pois, perante uma descrição naturalista de grande precisão, digna dos observadores científicos mais exigentes…


O contista norte-americano Raymond Carver privilegia o diálogo e os comportamentos das personagens, em detrimento da situação em que se dão, o que é compreensível, pois o conto obedece a uma dinâmica própria, que não se compagina com descrições pormenorizadas que têm a situação como pano de fundo. Do seu livro de contos “Telefona-me se Precisares de Mim” (Teorema), transcrevo o seguinte:

“- Vamos – disse ela.
Pus o carro a trabalhar e seguimos para a auto-estrada. No semáforo antes da auto-estrada vimos um carro à nossa frente sair da via a arrastar o silenciador de escape roto, de onde voavam chispas.
- Olha para aquilo – disse Nancy – Pode incendiar-se.
Esperámos até vermos que o carro conseguia sair da estrada para a berma.
Parámos num cafezinho ao lado da estrada, perto de Sebastopol. ‘Combustíveis, Pessoas e Carros’, dizia o letreiro. Rimos daquilo. Parei em frente ao café, entrámos e fomos para uma mesa de janela, ao fundo. Depois pedimos café e sanduíches. Nancy aplicou o indicador à mesa e começou a desenhar figuras na madeira. Eu acendi um cigarro e olhei para fora. Vi um movimento rápido e depois percebi que estava a olhar para um colibri nos arbustos junto à janela. As suas asas mexiam-se numa mancha de movimento enquanto ele mergulhava o bico numa flor do arbusto.
- Nancy, olha – disse eu – Está ali um colibri.
Mas o colibri voou nesse momento, Nancy olhou e disse: - Onde? Não o vejo.
- Estava aí ainda há um minuto – disse eu. - Olha. Lá está ele. É outro, parece-me. É outro colibri.
Ficámos a ver o colibri até a empregada nos trazer o que tínhamos pedido e o pássaro voar ao sentir o movimento e desaparecer atrás do edifício.
- Ora aí está um bom sinal, acho eu – disse. – Colibris. Os colibris, dizem que trazem sorte.
- Já ouvi dizer isso – disse ela. – Não sei onde, mas ouvi. Bem – disse ela – sorte é do que precisamos. Não achas?
- É bom sinal – disse eu – Ainda bem que parámos aqui.
Ela concordou. Aguardou um momento e depois deu uma dentada na sua sanduíche.”

Para melhor esclarecimento da escrita pós-modernista, recorde-se o que Carver escreveu, em 1983:

“Para que os pormenores se tornem concretos e ganhem sentido, a linguagem usada deve ser o mais exacta e rigorosa possível. As palavras podem, mesmo, ser tão precisas que pareçam insípidas; porém, se forem bem utilizadas, farão soar todas as notas, em todos os registos.”

Cem anos após Darwin, Carver parte de alguns dos princípios por ele seguidos para descrever situações que constituem a essência dos seus contos. Digo, de alguns dos princípios, pois o pós-modernismo valoriza o fragmentário e não o “continuum”, embora possa haver continuidade dentro do fragmento (atente-se, por exemplo, no texto de Handke, citado).
Autores como Douwe W. Fokkema (“Modernismo e Pós-modernismo”, Vega) estabelecem uma destrinça clara entre modernistas e pós-modernistas:

“Enquanto o código modernista assentava na selecção de construções hipotéticas, o sócio-código do pós-modernismo baseia-se numa preferência pela não selecção ou por uma quase-não-selecção, numa rejeição de hierarquias discriminadoras e numa recusa da distinção entre verdade e ficção, entre o passado e o presente, entre o relevante e o irrelevante.”

No entanto, para Douwe Fokkema, a diferença essencial entre modernistas e pós-modernistas consiste na centração dos primeiros no sujeito pensante e sensível, ao passo que os pós-modernistas privilegiam a observação do que lhes é exterior, valorizando os comportamentos dos observados em detrimento da descrição do seu mundo interior.


Na realidade, estas diferenças nem sempre se verificam, pelo menos de um modo claro. Como exemplo e para encerrar esta crónica, que já vai longa, citarei Clarice Lispector e a sua crónica “Porquê?” (in “A Descoberta do Mundo”, Indícios de Oiro):

“Um dia o rapaz viu sua namorada na esquina conversando com duas amigas. Porque sentiu ele um mal-estar como se ela sempre tivesse mentido e só agora ele tivesse a prova? No entanto ela nunca dissera que saía ou que não ria nem conversava. Mas a ideia que ele fizera dela fora traída pela visão nova: junto das amigas, ela parecia uma outra pessoa.
O pior é que também ela não se sentiu bem quando ele contou que a tinha visto. Fez-lhe muitas perguntas: como é que eu estava? com que roupa? eu estava rindo? E ele sentiu que, se houvesse possibilidade de se explicar, e não havia – proibiria que ela se encontrasse com as amigas. Ela pensaria erradamente em ciúmes. A ideia de que ela pudesse imaginar com simplicidade coisas favoráveis a si própria, como se objecto precioso de ciúme, deu-lhe pena e ele achou-a ridícula.
De qualquer maneira, desde que vira nova faceta dela ao estar conversando na esquina, de algum modo a desprezava. Como não entendia porquê, procurava acusá-la: parece uma criada que depois de lavar os pratos vai de mãos vermelhas conversar na esquina. Mas não era a verdade, nem ele conseguiu se convencer com o próprio argumento. Só que agora permanecia frio quando ela lhe contava, por exemplo, o que sonhara de noite. Olhava-a de olhos bem abertos e sem carinho, bem abertos para não recebê-la, como se lhe dissesse: você pensa que me engana? Você é outra pessoa, eu vi você conversando na esquina.
Nunca mais se entenderam bem, e o namoro não durou muito. Terminou friamente, sem saudades.”


Do mesmo modo, muitas das descrições científicas de situações e comportamentos apresentam este carácter “híbrido”, o que não lhes retira legitimidade. Pergunta inevitável: quem influenciou quem? A questão talvez não se possa reduzir a uma relação linear de causa e efeito. Talvez estejamos, sim, perante duas formas (a científica e a literária), igualmente válidas, de conhecimento do homem e da sua condição nos tempos de hoje, duas formas que se apoiam mutuamente – e se complementam.

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