sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

A Ronda Noturna


Peter Greenaway (1942) é um dos mais criativos e sofisticados cineastas do nosso tempo. A beleza pictórica das suas criações reflectem a sua formação de artista plástico, embora seus filmes vão muito para além da imagem e são invariavelmente diálogos intelectuais e sensoriais entre a imagem, o texto e a linguagem cinematográfica. Desde The Falls (1980), o seu primeiro longa metragem, onde uma complexa rede de acontecimentos envolvendo 94 vítimas de VUEs (Violent Unknown Events) é-nos contada com um humor muito britânico, e somos confrontados com o inesperado, o burlesco, e uma estética extremamente rica e original. Seguiram-se The Draughtman's Contract (1982), A Zed & Two Noughts (1985), The Belly of an Architect (1987), Drowning by Numbers (1988), que abordam temas como a veracidade da representação pictórica, as patologias, as relações humanas enquanto construções arquitectónicas, a estrutura e a simetria das sucessões numéricas e dos acontecimentos.    

Filmes como The Cook, the Thief, His Wife & Her Lover (1989), Prospero's Book (1991), o controverso The Baby of Mâcon (1993), e The Pillow Book (1996) consolidaram o estilo e o carácter experimental da borbulhante imaginação de Greenaway. 

Em 2006, Greenaway deu início ao ambicioso projecto Nine Classical Paintings Revisited, onde analisa, primeiramente, a Ronda Noturna de Rembrandt, possivelmente uma das mais grandiosas e desconcertantes pinturas de sempre. Seguiram-lhe a apresentação-performance da Última Ceia de Leonardo no refeitório da Igreja Santa Maria delle Grazie em Milão em 2008, e as Bodas em Caná de Paolo Veronese na Bienal de Veneza em 2009. 

Nightwatching (2007), é um fascinante festim visual e intelectual, no contexto do qual 34 indagações associadas à representação duma milícia popular de Amesterdão do século XVII são formuladas. Greenaway propõe-nos como solução para os 34 mistérios, uma conspiração para assassinar um dos membros do prestigiado regimento. A demonstração fica concluída com o o filme associado, Rembrandt's J'Accuse (2008), no qual a desgraça pessoal e a ruína financeira de Rembrandt são apresentadas como consequências do libelo lançado, por meio da sua monumental pintura, pelo grande pintor holandês. 

Mas, na minha opinião, a questão mais inquietante da brilhante demonstração de Greenaway refere-se à reflexão sobre uma lacuna fundamental do nosso processo de aprendizagem. Greenaway argumenta que somos desde muito cedo ensinados a compreender textos literários de crescente dificuldade, mas muito pouco é-nos transmitido no que diz respeito à leitura das composições artísticas. Naturalmente, esta lacuna nos empobrece consideravelmente, e Greenaway defende que o trabalho artístico deve ser também desenhado para colmatar esta deficiência. A minha concordância com Greenaway relativamente este ponto leva-me a agradecer-lhe pelo contínuo esforço de educar a minha iliteracia visual.      

Mas claro, relativamente a qualquer obra de Peter Greenaway nada é certo, e seria igualmente plausível dizer que Nightwatching não passa duma bem conseguida fabricação visual, construída, acima de tudo, para deleite do seu autor. Neste caso, eu teria que bradar peremptoriamente: J'Acuse Mr. Greenaway de deliberada manipulação e falsificação histórica para fins de entretenimento próprio e da audiência!  

Termino afirmando que não ouso manifestar a minha preferência relativamente a qual das hipóteses é a mais verosímil, pois acredito que estas ambiguidades são inerentes às verdadeiras obras de arte.   
  
Orfeu B.



                                        

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

A MAGIA DE UM GRANDE CONTADOR DE HISTÓRIAS


A escrita de vargas Llosa é poderosa. A sua capacidade narrativa é brilhante. Tenho-o como um dos autores imprescindíveis da minha artesania de leitor.

Llosa cria várias linhas narrativas que começam por se ignorar mas que vão insinuando pequenos anúncios do seu possível cruzamento. O leitor vai caminhando em busca desse mesmo cruzamento que poderá, quem sabe, ilumina uma e outra narrativa.

Mais ainda, vários dos personagens deste romance foram já personagens de romances anteriores de Llosa (Lituma, D Rigoberto, Lucrécia…) como se aqui encontrassem o espaço de um balanço de parte significativa da obra do autor. Ou melhor, como se aqui os leitores de Llosa pudessem saber o que aconteceu aos “seus” personagens, aqueles que acompanhou em romances anteriores.

O Peru deste romance podia ser um Portugal dos anos 60. Nestes personagens reconheço tiques e objectivos de vida e formas de viver ronceiras e pequenas parecidas com as que eu observava nesses anos.

Felício Inaqué, pequeno proprietário de uma empresa de camionagem que subiu a pulso na vida, homem sério, cumpridor, decente em todos os sentidos da palavra, vê a vida castigá-lo destruindo a sua pequena ilusão de felicidade com uma amante que o trai com o seu próprio filho.

Llosa trabalha bem a perversidade, gosta de castigar os bons. Veste-os de tristeza, por vezes de tragédia. Demora-se prazentoso nas personagens mais complexas e ambíguas como D. Roberto e Lucrécia.

Estes dois são conservadores na aparência, apreciadores de arte, museus, literatura, estetas do sexo, vendo-se confrontados com a inquietação do filho adolescente que se encontra amiúde com uma estranha personagem, Edilberto Torres, que aparece e desaparece inesperadamente e que D Rigoberto receia que seja o diabo.

Ismael, riquíssimo patrão e amigo de D. Rigoberto, ao ficar viúvo resolve casar com uma bela empregada para castigar os dois filho, verdadeiros gansters de bairro.

A pouco e pouco estas histórias cruzam-se para que as personagens regressem depois ao seu âmbito social e geográfico, como se este país fosse feito de compartimentos estanques apenas unidos pelos lampejos inesperados e breves do destino.

E tudo isto conduzido pala magia de um grande contador de histórias, senhor de uma escrita que nos agarra pelos colarinhos e não nos deixa afastar até ao fim,


domingo, 22 de dezembro de 2013

Leviatã



Nunca na sua vida deixara Progrody. Nesta pequena cidade não havia nenhum rio, nem sequer um lago, rodeavam-na apenas pântanos, e ouvia-se na verdade, debaixo da superfície verde, o gorgolejar da água, sem que, no entanto, esta fosse visível. Nissen Piczenik imaginava que havia uma secreta relação entre as águas escondidas dos pântanos e as poderosas águas dos grandes mares - e que também no fundo dos pântanos poderia haver corais.   

Joseph Roth

Na novela Leviatã, o escritor, jornalista e ensaísta judeu austríaco Joseph Roth (1894-1939), conta-nos a história de um renomado comerciante de corais, Nissen Piczenik, um judeu devoto e profundamente honesto. Escrita em 1934, no exílio francês, e publicada postumamente em 1940, Roth descreve com a linguagem enganosamente simples de uma parábola infantil, a vida e a actividade comercial de Piczenik na pequena cidade de Progrody, situada no limite do império Austro-Húngaro. A convivência quotidiana com os corais, a essência e motivo último de sua existência, conduzem Piczenik à suposição mágica e simplória de que os corais cresciam nas profundezas do mar sob a protecção do poderoso monstro Leviatã. Mas a pacata e sonhadora existência de Piczenik é corrompida pelo aparecimento de um diabólico concorrente, Jenö Lakatos, que introduz naquela região rural o comércio de corais falsos. A prática comercial da falsificação eiva a existência de Piczenik, dado que é induzido pelo concorrente a vender corais falsos, cedendo assim à ganância que mina irreversivelmente as relações de confiança que cultivara ao longo de toda uma vida com os seus clientes e funcionários. Acaba por fim, por vender os seus  bens e abandonar a mulher indo para a cidade porto de  Odessa, arrebatado pela obsessão de encontrar no fundo do mar Leviatã, o protector dos seus corais.        

Mas a narrativa de Roth, para além do seu estilo muito próprio, é evocativa de circunstâncias de desagregação, um vincado traço da sua biografia. Roth testemunhou o desmoronamento irreversível do império Austro-Húngaro e dos seus valores após a primeira grande guerra, viu o desaparecimento das peculiares condições culturais da sua região natal, a Roménia austro-húngara, hoje Polónia e Ucrânia, região onde segundo o poeta judeu Paul Celan (1920-1970) também dali oriundo, viviam pessoas e livros. Sofreu profundamente com a desarticulação mental de sua esposa em 1928, que passou a viver em sanatórios e foi finalmente assassinada pelos nazistas. Por fim, Joseph Roth acabou ele mesmo por sucumbir à melancolia e ao álcool em Paris, onde se refugiou depois da subida de Hitler ao poder em 1933. Na verdade, Roth viveu em seis países com os pertences de duas malas, sempre como um homem cosmopolita, mas cujas raízes foram sistematicamente destruídas pela História. A forte impressão emocional que estes acontecimentos marcantes da História europeia deixaram nos espíritos é retratada com verve e espírito na sua bem conhecida obra, Hotel Savoy, de 1924. Joseph Roth faleceu, tal como Anton Chekhov, que ele tanto admirava, aos 44 anos.

Orfeu B.
   


sábado, 21 de dezembro de 2013

RUI HERBON E A GRANDE LITERATURA OCULTA

A literatura de um povo não é feita apenas pelos grandes nomes que os meios de comunicação ou as academias consagram. Também os que sabem escrever e se distinguem pela originalidade dos temas abordados têm lugar de destaque na literatura desse povo, embora não tenham a projecção de outros autores. Neste caso, está Rui Herbon, autor, entre outras obras, de “O Prazer dos Estranhos”, edição da Colibri. Os contos deste livro, além de estarem muito bem escritos, têm como temas situações e enredos em que a realidade (quase sempre histórica) e a fantasia se conjugam de um modo perfeito. Mas, o que mais me impressionou foi a construção sintáctica do texto, em que avultam a riqueza e o emprego inesperado dos vocábulos, o que dá um ritmo específico à frase. Exemplo do que acabo de dizer, é o conto “A Mulher Mais Bela do Mundo”, que me deslumbrou pelo seu ritmo camiliano, embora sem arcaísmos ou neologismos, mas que, à semelhança das obras de Camilo, impregna a narrativa de um fio de ironia que dá um sentido imprevisto à história. De sobressair será também a cultura literária de Rui Herbon, que lhe permite navegar por diferentes mares e horizontes, como é, entre outros, o caso do conto “O Mercador de Livros”, com um final tão inesperado quão “quixotesco”. Todos nós, os que se dedicam à leitura de obras literárias durante dezenas e dezenas de anos, somos influenciados por autores que nos disseram algo em determinado momento da nossa vida. Ora, no meu caso, nunca poderei esquecer as obras de Papini, autor italiano da primeira metade do século XX, hoje apenas lembrado pelos que se dedicam à literatura italiana. Ora, a escrita de Rui Herbon tem muito de Papini, nomeadamente nos temas abordados. Neste aspecto, não posso deixar de destacar uma obra prima de Papini, intitulada “Gog”. Enfim, esta é a minha leitura de “O Prazer dos Estranhos” de Rui Herbon, autor de quem muito ainda há a esperar.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

ALEXANDRA LUCAS COELHO OU O JORNALISMO COMO GRANDE ESCOLA LITERÁRIA

Sim, o jornalismo pode ser uma das grandes escolas literárias, nomeadamente quando assume a forma de crónica. Ora, é exactamente sob esta forma que a jornalista Alexandra Lucas Coelho apresenta o seu livro “Vai Brasil”, publicado pela editora Tinta da China. O que não é inédito na autora, pois, em 2010, havia publicado, pela mesma editora, uma obra intitulada “Viva México” (que me fez lembrar o filme inacabado do grande cineasta russo Eisenstein “Que viva México!”). Mas voltemos ao “Vai Brasil”, um conjunto de crónicas que a autora foi publicando, o que, em linguagem literária, corresponde a um conjunto de flashes sobre um Brasil multiforme e multicolor, um país que inventa e reinventa uma língua – o português – tornando-a sempre diferente, mas nunca deixando de ser a língua portuguesa. “Vai Brasil” é, pois, um conjunto de fragmentos que se completam ou se entrelaçam, permitindo que o texto adquira uma notável unidade estilística e conceptual. Alexandra Lucas Coelho é uma mulher inteligente, sensível, culta, com um grande poder de observação e um apurado sentido crítico, o que leva um escritor, Miguel Esteves Cardoso, a dizer, no jornal “Público”: A Alexandra apanha o Brasil como nunca li um português apanhar. Consegue apaixonar-se pelo Brasil e amá-lo ao mesmo tempo, conhecendo tanto as magias como os podres. Escreve numa língua que namora as muitas maneiras de falar e de escrever dos brasileiros. Permito-me, ainda, realçar a sua capacidade de impregnação da cultura de um país ou de uma região desse país, sem abdicar do seu espírito crítico, o que, aliás, é extremamente visível neste seu “Vai Brasil”. Embora assumindo a centralidade do Rio de Janeiro, onde vive, não abdica de “mergulhar” em São Paulo, em Curitiba, entre outras cidades e regiões, com um relevo muito especial para a Amazónia, a “nossa” Amazónia e de “A Selva” do nosso Ferreira de Castro, que ela cita por mais do que uma vez. A Amazónia de hoje, a situação do índio e o seu papel na actual discussão sobre a identidade do homem brasileiro. De realçar, também, o entrelaçamento do presente com o passado, o legado de Portugal, em múltiplos aspectos, de que a arquitectura é um dos mais visíveis. Mas sem esquecer o que opõe os dois países, nomeadamente a alegria de viver do brasileiro e o nosso pessimismo ancestral. O que me fez lembrar um pequeno filme, realizado há anos, aquando, creio, das comemorações do achamento do Brasil pela esquadra comandada por Pedro Álvares Cabral. O filme tinha por tema Belmonte, terra do nascimento de Álvares Cabral, e pretendia comparar o viver no Belmonte português com o da cidade brasileira do mesmo nome. Entrevistadas duas senhoras de alguma idade, viventes no nosso Belmonte, elas queixaram-se amargamente das agruras da vida. Feitas as mesmas perguntas a um cidadão brasileiro da cidade homónima, ele, homem de certa idade, vestindo pobremente, fala da beleza da vida, da felicidade em estar vivo. E, mesmo para terminar, não posso deixar de realçar a beleza poética da frase, a linguagem encantada e encantatória da escrita da Alexandra Lucas Coelho, que faz dela um dos melhores escritores portugueses da actualidade.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

A MENTIRA COMO OBRA DE ARTE

Releio “O Mentiroso” de Henry James, agora em edição portuguesa da Sistema Solar, de 2012. Henry James, escritor norte-americano naturalizado cidadão britânico, é um grande autor de língua inglesa, de finais do século XIX, inícios de XX. Romancista célebre, recorde-se, por exemplo, “Retrato de uma Senhora”, autor teatral e novelista. Ora, “O Mentiroso” é uma das novelas mais bem conseguidas, não só pelo tema, como pelo modo como é abordado. O mentiroso compulsivo, que tão finamente caracteriza do ponto de vista psicológico, ter-lhe-ia sido sugerido por um cavalheiro durante um jantar em que ambos participaram: mentiroso que contava as histórias mais extravagantes com uma mestria que, num primeiro momento, conferia a essas histórias um aspecto de veracidade. Assim é a personagem criada pelo autor. Veracidade sempre confirmada pela mulher do mentiroso (coronel Capadose, de seu nome), visivelmente encantada com o que o marido contava. Personagem de que todos se afastavam, conhecedores que eram da sua fama de mentiroso compulsivo. Caso idêntico conheci eu: um colega de profissão, que inventava as mais variadas histórias, que tinham um pouco de verdade e muito de fantasia. Quase um género de literatura oral, a fazer jus à sua necessidade de transformar o real em algo de diferente, de melhor quase sempre. O que, à semelhança do que acontece na novela de James, fez com que uma mulher bonita, inteligente, crítica, vivesse apaixonada por ele. Mas, o texto de Henry James tem uma outra vertente, que o enriquece e lhe confere uma trama dramática: a personagem principal não é o coronel mentiroso, nem o autor-narrador, mas, sim, Lyon, um pintor britânico famoso, que se prontifica a fazer o retrato do mentiroso, onde espera poder captar, na postura do corpo, no gesto, no rosto, no olhar, a essência da mentira que dentro dele habita. Ainda a obra não estava concluída, quando o mentiroso e a mulher (que conhecia bem o pintor, desde os tempos de juventude), aproveitando uma ausência do pintor, penetram no seu estúdio para verem o estado de adiantamento do retrato. O pintor, chegado nesse momento, ouve gritos do casal, enquanto contemplam o quadro, gritaria que culmina em choro convulsivo da mulher, a que se segue o diálogo que se transcreve: - Mas o que é isso, querida, mas que diabo é isso? – perguntou [o mentiroso]. Lyon ouviu a resposta: - É cruel… Oh! É demasiado cruel! - Maldito… maldito… maldito! – repetia o coronel. - Está lá tudo… está lá tudo! – prosseguia Mrs Capadose [a esposa]. - Diabos o levem! Está lá tudo… como? - Tudo o que não devia estar… tudo o que ele viu… É horrível de mais! - Tudo o que ele viu? Ora! Não serei uma pessoa com bom aspecto? Um pouco mais bonito ele ainda me tornou. De repente Mrs Capadose voltou a pôr-se de pé e deitou àquela traição pintada outro olhar feroz. - Bonito? Hediondo, hediondo! Isto não… nunca, nunca! - Não, o quê? O céu me valha! – disse o coronel quase a gritar. Lyon pôde ver-lhe o rosto vermelho, desnorteado. - O que ele fez de ti… aquilo que tu sabes! Ele sabe… ele viu. Todos ficarão a saber… todos ficarão a vê-lo. Imagina uma coisa destas na Academia! Sempre escondido, Lyon, o pintor, vê o casal sair pela porta das traseiras, para ver voltar o marido, e, com um objecto cortante, fazer o quadro em pedaços. A parte final do texto é um prodígio hilariante de humor, que o aproxima de uma paródia teatral. Em suma, “O Mentiroso” de Henry James é um texto de grande beleza formal, com uma estrutura que tem muito de uma peça de teatro, e em que avultam uma finíssima análise psicológica e um sentido de humor que confere, a muitas das situações descritas, uma comicidade que só os grandes escritores conseguem atingir.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

DONALD BARTHELME OU O CONTO NORTE-AMERICANO EM FINAIS DO SÉCULO XX

Donald Barthelme (1931-1989) é um escritor desconhecido entre nós. Melhor, desconhecido até agora, até a Antígona ter publicado “40 Histórias”, o que representa um acontecimento na área do contismo moderno. Barthelme é um contista difícil de caracterizar, tal a multiplicidade de temas que aborda e a variedade de estilos que cultiva. Se em certos textos, como “No Museu Tolstoi” e “A Fuga dos Pombos do Palácio”, insere manchas gráficas e desenhos no corpo do texto, condicionando, assim, a interpretação dos leitores; por outro lado, em histórias como “Porcos-espinhos na Universidade”, o autor desenvolve uma fantasia hilariante, que nos incita a participar na “visualização” da descrição das situações que nos são apresentadas, como se pode comprovar pelo extracto que se transcreve. Ao longe, o reitor da universidade e a esposa (a bela Paula) avistam uma enorme vara de porcos-espinhos que se dirigem para a universidade: - Porcos-espinhos na universidade – comentou a mulher do reitor. – Bem, porque não? - Nós não temos instalações para quatro ou cinco mil porcos-espinhos – disse o reitor. – Não consigo fazer uma chamada. - Eles podiam inscrever-se em Estilos de Vida Alternativos – sugeriu Paula. - Já temos demasiada gente inscrita em Estilos de Vida Alternativos – retrucou o reitor, pousando o auscultador do telefone. – Raios partam isto. Eu próprio vou dar cabo deles. Vai ser uma matança. Pura e simples. Mente. - Ainda te magoas. - Disparate, são só porcos-espinhos. É melhor vestir umas roupas velhas. Convirá ainda referir as incursões de Barthelme no campo do experimentalismo literário, como se poderá verificar no conto intitulado “Frase”: Durante cerca de nove páginas não há um único ponto final, nem sequer quando o texto termina… Se, por um lado, o autor pretende captar a corrente da consciência no estado mais puro (onde não há pontos finais…); por outro lado, pretende-se abordar uma questão que se põe a muitos escritores: quando se deve colocar um ponto final numa frase, a fim de que ela ganhe o seu pleno sentido? Estamos, pois, perante um texto magnífico, que honra quem o traduziu para a nossa língua. Outras histórias revelam-nos aspectos diferentes do autor. Veja-se, por exemplo, “Acerca do Guarda-Costas”. O conto inicia-se com a seguinte interrogação: Será que o guarda-costas grita com a mulher que lhe passa a ferro as camisas? A mulher que lhe fez uma queimadura castanha na camisa amarela, uma camisa Yves St. Laurent caríssima? Uma grande queimadura castanha mesmo por cima do coração? Será que o cliente do guarda-costas faz conversa de circunstância com o guarda-costas enquanto esperam que o semáforo mude, dentro do Citroën cinzento-mortiço? Com o segundo guarda-costas, que vai a conduzir? Qual será o tom da conversa? O cliente do guarda-costas fará comentários acerca das jovens de pele morena que se aglomeram ao longo da avenida? Acerca dos jovens? Acerca do trânsito? O guarda-costas alguma vez terá tido uma discussão política séria com o seu cliente? E termina com outra interrogação: As ruas estarão cheias de pessoas a caminhar sobre andas? Pessoas de andas a serpentear três metros acima da multidão com grandes cabeças de ave de papier-mâché, fatos vermelhos e pretos, a agitar faixas de trinta metros de tecido colorido acima das cabeças da turba, simulando a violação de uma jovem personagem feminina que simboliza o país dele? Dentro do Mercedes, o guarda-costas e o seu colega fitam as centenas de pessoas, homens e mulheres, jovens e velhos, que contornam o automóvel, parado no semáforo, como se fosse um penedo no meio do rio. No banco traseiro, o cliente está a falar ao telefone. Ergue os olhos, pousa o auscultador. É impossível contar as pessoas que se comprimem em volta do carro, são demasiadas; não se pode saber quem são, são demasiadas; não se pode prever o que irão fazer, são voláteis. De repente, uma aberta. O carro acelera. Dar-se-á o caso de, numa certa manhã, os caixotes do lixo da cidade, os caixotes do lixo do país inteiro, estarem a transbordar de garrafas de champanhe vazias? Qual dos guarda-costas fracassou na sua missão? Um texto que revela o esqueleto (ou um esboço de carnação) de uma narrativa dramática, narrativa que não chegou a acontecer, acontecendo – como se de um sonho se tratasse. Como se pode concluir, através dos exemplos dados, estamos perante um autor complexo. Mas talvez se possam apontar algumas características comuns ao conjunto dos seus contos: forte sentido de humor (por vezes, a rasar a ironia); sagacidade da observação; projecção das suas emoções, dos seus medos, das suas dúvidas nas personagens dos seus textos (enquanto processo de pesquisa da sua própria vida interior?) Por estas (e outras razões, a descortinar por cada um dos seus leitores), importa ler e reler este grande contista da nossa contemporaneidade.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Não são assim os lobos,/na luz compacta do calor./Esta é a luz dos sonhos/ em que eles se passeiam/e nós com eles vamos,/sem nada nos doer,/ tranquilos, mudos, leves./E as árvores connosco.//Licínia Quitério


“Quando batem à porta pela noite”
Xabier P. DoCampo
Ambar

Xabier P. DoCampo é um escritor galego. Um dos seus livros “Quando batem à porta pela noite” é um pequeno livro de contos aterradores. Em 1995, em Espanha, ganhou o Prémio Nacional de Literatura para crianças.
Perguntarão, talvez, porque é um livro para crianças? No entanto, não farão tal pergunta a propósito de tantas coisas que passam na televisão tão indigentes que deviam aterrorizar os pais de modo a não deixarem as suas crianças por perto.
Sim pode ser um livro para crianças. A leitura não se faz passivamente e por isso os bons livros são para todas as idades, inofensivos mesmo que nos façam medo como os contos deste. Úteis até, pois o medo faz parte da nossa capacidade de defesa
Não vou desvedar o seu mistério. Um deles conheci-o a primeira vez na voz do António Fontinha, um exímio contador de histórias de figura magra e tímida que se transfigura quando começa a contar. Tem o gesto certeiro e a pausa precisa na voz para deixar que o medo nos percorra e se instale quando conta “O espelho do Viajante”. (E Fontinha tem também o dom de nos vencer pela ternura e pela emoção quando a história vai por esse caminho.)
Voltando ao livro. Gosto particularmente do conto “O aniversário da morte” que nos deixa a reflectir sobre quantas vezes desistimos por causa de um fim anunciado que melhor faríamos em ignorar e viver como se fora amanhã, vivendo hoje.
Em Portugal foi publicado pela Âmbar, editora que, tal como era, teve um fim. Não conheço reedição. Por isso o livro só se encontra em bibliotecas que o souberam escolher a tempo ou em algumas livrarias que vão guardando os livros que o passar do Tempo comprova merecerem continuar a ser lidos. Não são muitas mas ainda existem. E continuarão. Se soubermos vencer o medo. 
Deixo-vos o último capitulo, onde o autor falando de si fala por todos nós, creio.

Eu tenho medo...
Quando batem à porta pela noite.
De estar só quando não quero estar só.
De estar no meio da gente.
De ficar só no mundo.
De não morrer nunca.
De morrer cedo.
De morrer estupidamente numa estrada.
De ficar iutilizado.
De enlouquecer.
Que aconteça alguma coisa aos meus.
Que aqueles que eu amo não me amem.
De perder o gosto pelas coisas de que gosto.
De ter de viver sempre numa cidade.
Que não haja flores.
Que não haja animais em liberdade.
De não poder ver as estrelas à noite.
De não poder ver a paisagem no Outono.
Do mar. (visto do mar)
De olhar um dia para o céu e não ver um pássaro.
Que não haja trutas nos rios.
De ter de ir á guerra.
Da guerra mesmo que não tenha de ir.
Das almas miseráveis.
Dos que dizem sempre a verdade.
Dos que mentem sempre.
Das histórias de terror.
De filmes de terror.
De ir ao dentista.
De andar de avião.
De não ter medo de nada.
De ter muito medo.
Quando passa muito tempo sem que ninguém bata à minha porta.
De...”
Xabier P. DoCampo


sábado, 12 de outubro de 2013

UM BRILHANTE JOGO DE ESPELHOS


Malgré moi nunca tinha lido Ana Teresa Pereira, apesar da sua já longa obra. Penalizar-me-ei sempre na minha vida pelos autores e romances que nunca chegarei a ler. Felizmente conheci agora a escrita desta notável autora. E vou depressa ler mais livros dela.

"O Lago" recebeu o prémio de romance da Associação Portuguesa de Escritores.

A sua escrita é sem sobressaltos, lisa e sem adjectivos como um copo de água. Ana Teresa Pereira tece uma teia que nos envolve tranquilamente, conta uma história aparentemente serena. Não a sublinha. O fundamental passa-se quase no não dito e a autora deixa que seja o leitor a perceber que debaixo da superfície aparentemente calma existem tensões que crescem, preocupações que parecem prestes a rebentar, silêncios prenhos, coisas suspeitadas, adivinhadas.

Tudo ronda em torno da identidade e das suas alterações em torno de um texto teatral e de uma actriz que, conduzida pelo encenador e autor, busca entrar na pele da personagem através de um complexo jogo de espelhos. A actriz entrega-se à direcção e ao amor dele sem saber se ele a ama a ela ou à personagem em que quer transformá-la para poder amá-la verdadeiramente.

"Durante anos pensei que representar, representar a sério, era transformar-me noutra pessoa. (...) Mas quando estou a representar sou eu mesmo.", diz o encenador.

Como muitos criadores o encenador é um devorador que usa os outros e os deita fora quando aquele caminho está cumprido.

Tema comum a muitas obras terríveis. Lembro-me do "Baal" de Bertolt Brecht representado magnificamente no teatro da Trindade pelo Mário Viegas. Ana Teresa Pereira trata este tema de uma forma súbtil, silenciosa, nebulosamente britânica. E fá-lo de forma a envolver-nos, a inquietar-nos como uma aranha doce que apanha os seus leitores com delicadíssima artesania


terça-feira, 8 de outubro de 2013

PULP


Charles Bukovski é um autor famoso pela sua marginalidade, pelo alcoolismo, pela poesia, pela rudeza das suas narrativas, pela linguagem grossa e fácil, sem nenhuma compaixã, nem respeito por elegâncias e estilos de escrita.

"Dei um gole de saqué, frio. As minhas orelhas arrebitaram-se e senti-me ligeiramente melhor. Sentia o cérebro a começar a carburar. Anda não estava morto, apenas num estado de rápido declínio."

Este é o seu último livro escrito à beira da morte. Um livro que se chama PULP e que podia chamar-se fatela, foleiro, rasca.

Uma espécie de roman noir, usando todos os truques do género, a linguagem mais básica e grossa do género, e uma narrativa completamente delirante, sem qualquer espécie de desejo realista. PULP é um livro a traço grosso, completamente pulp. Mas só aparentemente.

PULP é um romance escrito á maneira pulp, mas a sua trama ultrapassa em muito o básico delírio deste tipo de romances. Logo o começo da acção é demasiado delirante para ser apenas pulp.

Um detective que bebe hectolitros de alcoóis diversos ao longo das páginas tem como primeiro cliente uma "gloriosa tontura carnal", a Senhora Morte. Pretende que o detective apanhe o escritor francês Céline que já devia ter morrido mas ainda circula pelas livrarias de Los Angeles.

Aparece outro cliente, empregado de uma agência funerária, que pretende livrar-se de uma fantástica mulher que é afinal uma extra-terrestre.

Fianalmente, um homem que quer que o detective encontre o Pardal Vermelho coisa que ninguém sabe o que seja e que tavez até possa ser a própria morte

Os vários casos misturam-se uns com os outros num banho de álcool, reflexões de filosofia barata e numa constante reflexão sobre a morte.

E é este característica que vai tornando conferindo à narrativa um carácter tão inquietante quanto pungente, tanto mais quando sabemos que o escritor escreveu esta história como um hino pulp às suas renitências, dúvidas e fraquezas, quando se encontrava ele próprio à beira da própria morte.

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

A PEDRA DAS PALAVRAS



Gosto da escrita de Rentes de Carvalho. Gosto muito. Tem alma. Tem força. Não facilita. É feita para mastigar. Exige um leitor atento. Mas também é verdade que ele o conquista pela intensidade da trama e pela consistência da forma como desenha as personagens. Na sua escrita há qualquer coisa de pedra, daquelas pedras imensas da sua terra de Trás-os-Montes, pedra bruta ali, no corpo das frases que nos coloca à frente dos olhos e nos obriga a sentir por dentro a dureza da própria palavra ou do olhar que a atira para o mundo.

Se a sua ironia, aqui ou ali, pode fazer crer que vamos por uma escrita mais doce e divertida, logo o autor nos ensosta à parede, nos deixa sem respiração e nos rouba ao sossego do nosso canto para nos avisar que o mundo não é doce e nada nos protege dessas tempestades que surgem silenciosamente e sem delas de início darmos conta.

Neste seu romance passa uma inglesa que gosta do Algarve e anda pelo mundo metida em negócios escuros com diamantes e muitas mentiras e se move num caldo quase marginal ao grosso da história, que, a propósito desse negócio dos diamantes, funciona como música de fundo nos falar de uma visão profundamente desencantada sobre o governo do mundo onde bandidos e governos se sentam à mesa dos mesmos repastos. E essa visão desencata do cosmolitismo permitido pelo dinheiro contrasta magnifica e agrestemente com a paisagem banhada pela luz dura e excissa da serra do Algarve.

Mas o que mais me tocou foi o Portugal de que o autor dá conta na sua trama e sublinha na sua situação de marginalidade face aos centros do mundo. Um Portugal poliédrico, com três facetas distintas

Com os velhos senhores da terra, convivemos com uma cultura antiga partilhada com criados, quase servos ainda, e uma melancolia de quem adivinha o fim de um tempo e de uma cultura.

Com Samuel, ex-combatente da Guiné, tocamos ao de leve um Portugal brutal, de vida e morte, de faca e sangue, o Portugal que tem pesadelos de noite e se gasta sem encontrar perdão.

Por fim temos um outro Portugal, videirinho, troca-tintas, aldrabófilo, iliterado, feito de negócios sujos e miseráveis, o Portual da política e dos partidos, dos empregos, do cinismo, da canalhice.

Neste vai-vém de personagens e histórias, o autor leva-nos sem nos dar descanso. E é bom, quase no final, subirmos ao alto deste monte, desta narrativa, e encostarmos a cabeça à pedra das palavras.

sábado, 21 de setembro de 2013

A PALAVRA E A LUZ


José Tolentino de Mendonça é o poeta que mais me emociona na sua geração e a sua obra tornou-se seguramente imprescindível, se quisermos conhecer o que de melhor se fez na poesia portuguesa das últimas décadas.

Madeirense, filho de pescador, JTM faz do diálogo com a natureza um caminho que parte do olhar para que desaguar na palavra. Não se trata da palavra liquída, óbvia, imediata, elegíaca, mas aquela que recolhe memórias de pessoas e sítios, de textos e reflexões, pedaços de filmes ou canções, veredas para um outro conhecimento que levam o poeta à boca do mundo.

Quando a sua poesia atravessa as cidades, ainda aí vai procurar a transcendência, nos recantos mais obscuros, nos anjos negros dos becos,nas margens mais perdidas, nas canções de quem traz pássaros feridos a voar na voz.

Sacerdote católico, estudioso e exegeta da Bíblia, JTM afirma que "A fé é uma ardente e incessante interrogação". Dessa interrogação e do encanto perante o mundo faz Tolentino de Mendonça o seu percurso de poeta, num ofício aparentemente sereno mas afinal inquieto, tecendo a sua poesia de momentos comoventes que nos aproximam da Luz. Ou de Deus.

sábado, 14 de setembro de 2013

ENTRE O QUE A HISTÓRIA NOS CONTA E O QUE NÃO CONTA


A História sempre foi para mim uma paixão. A paixão de contar e ouvir contar histórias.

Ficcionar a história tem sido o trabalho de muitos escritores com resultados variáveis mas muitas vezes com o encanto que leva o leitor a imaginar-se noutro tempo histórico, vivendo os amores e as tragédias de grandes personagnens de tempos idos.

O autor de romances históricos procura trabalhar sobre o trabalho do historiador, ocupando os interstícios que esse historiador deixa em aberto por já não ter matéria para melhor investigar.

É aí que o escritor se instala, mantendo umpé na história e colocando o outro na ficção.

Alberto Santos pegou em dois temas particularmente interessantes à volta do culto centrado na catedrasl de Santiago de Compostela. Em primeiro lugar, o facto de se ter concluído em finais do séc XIX que as ossadas que estão em Compostela não pertencem ao Apóstolo Santiago Maior como era crença até então.

Compostela, ou a região do Finis Terra, seria um local de peregrinação muito antes do cristianismo que, como foi prática corrente, se apropriou de uma tradição pagã para tornar cristã a devoção e a visita ao lugar.

À ideia de que não as ossadas de Santiago Maior que estão em Compostela, Alberto Santos juntou-lhe outra ideia. A possibilidade de os restos mortais existentes na Catedral de Santiago de Compostela pertencerem ao Bispo Prisciliano do séc. IV depois de Crist, primeiro herege justiçado pela Igraja Católica.

As suas idéias obtiveram grande sucesso, em especial entre as mulheres e as classes populares, pela sua recusa à união da Igreja com o Estado imperial e pela denúncia da corrupção e enriquecimento das hierarquias.

A história de Prisciliano, bispo heterodoxo eleito pelo povo de Braga no séc. IV, tem atraído diversos artistas e escritores. São os casos do romance sobre a vida de Priciliano escrito por Ramón Chao (pai de Manu Chao), do romance de João Aguiar "O trono do Altíssimo" e do filme de Luís Buñuel "A via Láctea".

Alberto Santos documentou-se com grande rigor. Fas-nos conhecer os espaços e os hábitos da época com vivacidade e pormenor.

A essa descrição cuidadosa da época juntou aventuras, conflitos religiosos e amores, tudo servido por um romantismo que terá a grande vantagem de chamar um público vasto à leitura de um tema que permite o mergulho noutros voos e inquirições para além dos estritos pormenores da ficção.

sábado, 7 de setembro de 2013

A NARRATIVA E OS PERSONAGENS



Como se diz por aí, este livro torna-se num vício. Não conseguimos parar de ler. Agarra-nos pelos colarinhos, envolve-nos, não nos deixa sair dali

Trata-se de um livro policial. Um livro de mistério.

Harry Quebert, escritor de 34 anos sem inspiração, vai viver para uma pequena cidade de Nem Hampshire e apaixona-se por uma rapariga de 15 anos. Esse amor faz com que finalmente escreva um livro que se virá a tornar num enorme best seller ao mesmo tempo que a rapariga desaparece para sempre no dia em que ambos tinham combinado fugir dali para sempre e viver o seu improvável amor.

Markus Goldman, um antigo aluno de Quebert que agora tem 77 anos, também ele numa crise de inspiração, vem ter com o mestre e pedir-lhe conselhos Justamente nessa altura descobre-se o corpo da rapariga, Nola, enterrado no jardim de Québert.. É óbvio que foi assassinada e Québert é preso e acusado do crime.

Markus acredita na inocência de Québert e resolve investigar as causas da morte de Nola que se vão revelando cada vez mais complexas e envolvendo muitos dos habitantes da cidade..

Dessa investigação vai nascer um livro, um best-seller elogiado por toda a imprensa e toda crítica.

A investigação leva Markus de surpresa em surpresa, através de um labirinto de revelações que vai fazendo estalar a superfície de uma cidade aparentemente calma, tranquila e banal.

E depois de, pressionado pelo editor e pela força da máquina de fazer êxitos, terminar e publicar o livro e inocentar o seu professor, Markus descobre que ainda não tinha descoberto a “verdadeira verdade”.

O autor estabelece uma teia notável, uma estrutura narrativa quase perfeita, pontuada pelas lições do seu professor sobre o que é ser escritor. E é essa teia que arrasta o leitor de revelação em revelação com uma

Há qualquer coisa neste romance que nos faz lembrar o “Millenium” de Stieg Larsen com a diferença de que aqui tudo se passa dentro de um a pequena comunidade da Costa Leste americana, com os seus pequenos problemas e traumas, os seus segredos escondidos, as suas invejas e solidões

Larsen deu à sua narrativa uma dimensão política e portanto mais vasta do que a deste universo criado por Joel Dicker.

No entanto, quanto a mim, Dicker aposta na narrativa mas descuida a escrita, Quer dizer, falha, ou deixa de lado o desenho das personagens Parecem-me pouco interessantes, pouco complexas, feitas de papel. E torna a história de amor de Québert pela jovem Nola de 15 anos, que está nos bastidores de tudo, numa historieta que não tem a grandeza nem o delírio que se espera de um amor desesperado de um homem de 34 anos por uma rapariguinha de 15.

Mas há que dizer que se trata de um bom entretenimento para quem espera isso mesmo da leitura de um livro.


segunda-feira, 2 de setembro de 2013

EM NOME DO PAI




Esta "pequena antologia do Pai na poesia portuguesa" tem uma escolha de poesia respeitabilíssima e mostra-nos aquilo que eu já sabia: com raríssimas excepções não há referências ao pai na poesia portuguesa, senão na das últimas décadas.

Vasco Graça Moura faz uma belíssima introdução sobre o tema, usando a sua erudita e elegante forma de pensar e ajudar-nos a pensar sobre a literatura e a poesia.

Curiosamente, e VGM chama a atenção para isso, a quase totalidade dos pais presentes nestes poemas é rural e a sua recordação na palavra dos filhos-poetas é também a recordação de uma certa ruralidade, de uma ligação aos ofícios e à terra, de uma memória dos ciclos da natureza.

Não existem aqui pais da cidade. Ou haverá um ou dois. Quererá isto dizer que os pais da cidade perdem a sua “poeticidade” e que é a ruralidade que lhes confere a grandeza do poema? Não sei.

Sei é que este conjunto de poemas nos permite uma visão breve mas muito interessante sobre alguns nomes cruciais da poesia portuguesa das últimas 2 ou 3 décadas.

Fazer uma antologia é um acto de amor que temos sempre de agradecer ao antologiador porque ele nos dá a conhecer a poesia e nos faz partilhar a paixão por ela a partir de um tema e nos permite o acesso a poetas e a poemas por vezes de grande qualidade mas de circulação muito restrita.

A antologia traz-nos também com frequência uma forma de olhar específica. Porque quem escolhe também exclui.

É pena ter ficado de fora o poeta que talvez mais poemas tenha feito á memória do pai na poesia portuguesa: José Jorge Letria. Vários desses poemas mereciam estar aqui e engrandeceriam esta antologia.

Seja como for, fazem falta antologias. Muitas antologias, controversas, discutíveis, parciais, sobre muitos temas, porque a antologia é um excelente instrumento de abordagem e compreensão transgeracional e diacrónica da identidade que a poesia vai de nós construindo.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

"Esta comprobado que ele tipo de pronunciacón de una palabra cambia biológicamente lo designado" Juan Carlos Mestre

La Bicicleta del Panadero”
Juan Carlos Mestre
Calambur, 2012



Há dois tipos de leitores de Juan Carlos Mestre. Os que tiveram a ventura de o conhecer e ouvir e os outros que o leêm apenas no timbre silencioso do papel.

Acho poesia coisa de brisa, de voz. Também acontece por vezes preferir não conhecer a voz sabendo que nem todos os poetas são bons arautos dos seus poemas.
Mas não é o caso de de Juan Carlos Mestre. É um gosto ouvi-lo. Uma emoção. Tem uma voz cadente como se os poemas lhe nascessem naquele momento num improviso detalhado, num acrescento para lá das palavras.
No dia em que chegou este seu livro “A Bicicleta del Panadero” foi com a lembrança da sua voz que li um e outro e outro poema...

Uma voz que glorifica mas também troça e ri . Uma voz terna mas que pode ferir. Uma voz de futuro mas que nos pode afogar em desesperança. Um livro de poesia cheio de filosofia, povoado de livros, leituras, de tralha guardada do passado e do que fica dentro do seu atento olhar ao mundo. 
Mestre vai escrevendo e lançando para o futuro esses objectos de boas e más memórias, úteis ou inúteis, macios ou contundentes mesmo pontuados por imensa ternura.
Quem lê tem de se defender. Quem o ouve pode baixar a guarda porque a sua voz e a música com que acompanha muitas das suas intervenções envolvem em macieza a lucidez dolorosa com que constrói os seus poemas .

Argonautas” é um dos meus preferido e deixo aqui uma parte, a abrir o apetite a quem se queira aventurar pelo mundo deste poeta, deste livro em particular que conheço e recomendo: “La Bicicleta del Panadero”

Argonautas”

Te amaré toda la vida dice ele pez pájaro a quien no es su igual
lo igual es essa niña que contesta no, lo igual es la mano que 
      cierra la porta
He abierto uma cartilla de ahorros para comprarte algún dia
      la tentadora manzana que sale en las primeras paginas
      de la Biblia
(...)
A mi edad un astrolábio, un sextante , uma aguja giroscópica
      no tienem secretos,
Estamos adstritos as departamento de la juventude e de aquí
      no hay quien nos eche
Yo te amaré toda la vida aunque tengas los pies en la cabeza,
      la cabeza como un crucigrama e los calcetines helados
      como pescadillas
(…)
Todas las noches las lechugas cometen algún crimen pero hasta
      el chocolate es amargo, vida mia, y tú ya sabes que yo te
      amaré contra todo prognóstico.
No te preocupes por nada, detrás de la ruleta de mi corazón
      hace buen tiempo e el 2 de Mayo há licenciado al pelotón
      de fusilamiento.
He acertado todos los números de la rifa y me ha tocado un
      collar de perla de río
Duerme tranquila
(...)
Te amo, no puedo demonostrártelo, y eso era lo que queria 
      decirte.”

                                         Juan Carlos Mestre


Podem conhecer um pouco mais deste polifacetado artista indo por aqui: http://www.youtube.com/watch?v=8QKlB8DU32w

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Cada Homem é uma Raça



A chuva é carcereira, fechando a gente. Prisioneiros da chuva estavam Constante Bene e seus todos filhos, encerrados na cabana. Nunca tamanha água fora vista: a paisagem pingava há dezassete dias. Mal ensinada a nadar, a água magoava a terra. Sobre as telhas de zinco, se acotovelavam grossas gotas de céu. Na encosta do monte, só as árvores teimavam, sem nunca se interromperem. 
Mas a bandeira se confirmava, em prodígio de estrela, mostrando que o destino de um sol é nunca ser olhado. 

Mia Couto.


Um das características mais fascinantes da escrita de Mia Couto é a de ser inclassificável. É Mia Couto um escritor africano de língua portuguesa? Certamente, mas não exactamente. Escreve no "dialecto moçambicano" da língua portuguesa inevitavelmente mesclado com regionalismos e adaptações locais, evidentemente, mas não exactamente. Penso que a afirmação mais justa seria a de que Mia Couto escreve em mia coutes, pois a diversidade do seu léxico só é compreensível à luz do universo criado pela extraordinária riqueza das suas narrativas. As suas "estórias" são muito mais que narrativas, pois são simultâneamente fundadoras de um vocabulário e dum mundo que são indissociáveis um do outro. E neste universo narrativo, Mia Couto é imperador, pois só ele tem o dom de dizer exactamente como se pode e se deve dizer. 
     
Nesta colectânea de 11 contos, datados de 1990, Mia Couto nunca nos deixa de encantar e de produzir realidades supra-reais, que são invariavelmente de grande densidade humana e duma vincada universalidade 

Na verdade, eu diria que a universalidade destes contos, está claramente declarada no título da obra. O paradoxo da unicidade no contexto duma definição, a de raça, que é instintivamente associada a uma colectividade é ao mesmo tempo singela quando dita pelo indivíduo que afirma, "A minha raça sou eu mesmo. A pessoa é uma humanidade individual", mas também extremamente actual e representativa da fragmentação das identidades no mundo pós-moderno. De facto, podíamos dizer que é uma conquista civilizacional permitir que cada indivíduo seja respeitado na sua individualidade, mas por outro lado, esta conquista deu origem à ruptura dos laços que davam a cada indivíduo o contexto social da sua existência. 

Mas para perceber a subtiliza destas questões e poder saborear o prazer duma leitura fresca e cheia de surpresas, nada como os contos de Mia Couto, que são, na verdade, o ponto de partida para um novo mundo. Desejo aos leitores uma boa viagem.  

Orfeu B.


domingo, 25 de agosto de 2013

MIZÉ OU MUITO MAIS QUE UMA MAGNÍFICA NOVELA SUBURBANA



O título não será particularmente apelativo para quem, nos livros que escolhe, procura seriedade, seja lá o que isso for. E o início, embora num diálogo muito bem "esgalhado", pode fazer suspeitar estarmos na presença de uma novela ligeira das que põe o acento sobretudo na galhofa. Mas depressa percebemos que essa galhofa é muito mais séria do que parece.

De facto, no início há um certo tom que lembra os malandros de Mário Zambujal, o Coca-cola Killer de António Vitorino d'Almida ou, eventualmente, o Molero de Dinis Machado. mas também acabamos por perceber que Ricardo Adolfo constrói um mundo próprio, distinto de todos os outros que citei.

Trata-se de um belo romance que abre caminhos muito pouco trilhados na nossa literatura, que nos conta uma história suburbana, passada no interior do Concelho de Sintra, para cima da IC 19 e da linha do comboio.

Mizé é uma típica cabeleireira do Cacém, de Mira Sintra, Mem Martins, ou de ou de um desses bairros onde se misturam pobreza, droga, marginalidade, sonhos sem consistência nem futuro, rituais sem alma. Palha, o marido, é um vendedor de batatas fritas para restaurantes, cafés, supermercados.

Os diálogos são notáveis, logo a começar pelo diálogo da primeira página sobre o casamento e tendo momentos fantásticos como, por exemplo, a discussão do silicone para as mamas da Mizé.

O autor conhece bem as pessoas de que fala. E torna a pobreza das ideias e do vocabulário, numa estética bem conseguida que, se de início, é de uma evidente comicidade, vai a pouco e pouco tomando uma tonalidade constrangedora, amarga, dolorosa, á medida também que as personagens vão ganhando consistência e a sua pobreza de objectivos, de vida, de linguagem, saltam à vista e deixam o leitor a torcer para que não lhes aconteça mais nenhuma tragédia.

Este é o mundo em que os sonhos são desmesurados, ou melhor, desmesuradamente tolos e restritos, e as maneiras para lá chegar são as mais miseráveis e pequeninas, concursos de televisão, totoloto, filmes pornográficos, um mundo onde a probabilidade de falhanço está ali mesmo ao sair a porta de casa. A busca do suceeso neste universo Trash, como Sofia Coppola lhe chama, é a do nada, a de conseguir qualquer coisa à custa de qualquer coisa. E o amargo é ficarmos a pensar que esta Mizé e o marido até se calhar nem são más pessoas. Apenas não sabem encontrar um sentido para as suas vidas. Apenas são trash. Apenas trash. Mas é por eles que passamos nas ruas todos os dias.


quinta-feira, 22 de agosto de 2013

TEMPESTADES SUBTERRÂNEAS


Kjell Askieldsen, celebrado contista norueguês, escandalizou a sociedade lutrana do seu país pela tonalidade sexual das suas históriaa, acabando por se tornar hoje em dia num escritor referenciado, celebrado e premiado.

Ao longo da leitura destes contos breves mas intensos, lembrei-me amiúde de uma entrevista recente em que Gonçalo Ribeiro Teles afirmava que "A paisagem do Norte é simples, não há conflitos". Não existe no Norte a balbúrdia da natureza do Sul, do Mediterrâneo. No entanto, por dentro das tão desmunidas personagens de Askieldsen, há vulcões prontos a explodir.

O autor mostra-nos essa falta de diversidade biológica. As casas de vários dos seus contos são iguais com os seus jardins, os seus alpendres, as suas espreguiçadeiras, os quartos sempre no 1º andar. Iguais. Algumas das personagens poderiam sair de um conto e entrar noutro sem que nada se alterasse. Às vezes os próprios nomes são repetidos. São os mesmos os seus rituais em torno do álcool ou do tabaco. as frase que ficam a meio.

Estes contos falam-nos dessas palavras que ficam a ferver por dentro do silêncio, da incapacidade afectiva e comunicativa dentro da família, do álcool, do sexo e do desejo transbordante mas não expresso nem realizado.

Debaixo de uma escrita sem rugas, quase minimalista, sentimos a existência de tremendas tempestades subterrâneas que aparentemente não têm solução.

Askieldsen prende-nos na sua repetição. Inquieta-nos. Deixa-nos sem resposta perante as pistas inacabadas em que nos enreda, na largueza de uma paisagem de fiordes, florestas e casas onde quem chega é sempre mal recebido e em que as dores de cada um são asinaladas mas nunca explicitadas em palavras.


Margem da Ausência



O dia amanheceu triste, com aves naufragando na brancura do espaço e sinais de ausência à minha volta (lá fora também), os caixilhos da janela corroídos pelo salitre; em baixo na praia, a solidão soprando, ainda leve, sobre a água encrespada.

E a tua vinda sempre diferida. O grito de luz do teu olhar já não me aquece, falta-me a cumplicidade da tua mão tão pequena e tão lisa na minha mão ossuda e com veias salientes. O desejo enche-me as noites, quando não escuto as palavras do vento, e tu não voltas. 

Urbano Tavares Rodrigues

Poucos na ficção contemporânea portuguesa escreveram com a clareza e a lucidez de Urbano Tavares Rodrigues. A sua escrita comprometida com os problemas do nosso mundo, mas dotada de grande lirismo, conferem-lhe um lugar único no panorama das nossas letras. 

Margem da Ausência é, para além dum notável exemplo de prosa poética, um livro de grande beleza estética por conta da composição gráfica de João Machado e das magníficas fotografias de Carlos Melo Santos e Fernando Curado Matos. É óbvio que a prosa de Urbano Tavares Rodrigues poderia prescindir destes acrescentos, pois desenvolve-se com a fluidez que lhe é característica, espelhando com uma fidelidade assombrosa a universalidade dos sentimentos e a natureza última das nossas angústias. Na Margem da Ausência, a dolorosa espera, a deriva da dúvida, o fluir das horas são vivenciados através dos elementos e da evolução dos sentimentos; os estados mutantes de alma, são descritos pelo barómetro duma escrita célere e elegante.  

Naturalmente, não é necessário de todo cingirmo-nos a este texto em particular de Urbano Tavares Rodrigues, para capturar a profundidade e, ao mesmo tempo, a simplicidade da sua abordagem, a humanidade da sua visão do mundo. Saberão os críticos enumerar e discutir as suas obras mais relevantes; posso apenas afirmar que tive a oportunidade de ler vários dos seus livros, sobretudo os mais recentes, e nestes reconheço um estilo, um comprometimento com a realidade da existência que julgo serem marcantes e inesquecíveis. 

Finalmente, eu não posso deixar de referir que o breve conhecimento pessoal que tive do escritor permitiu-me vislumbrar um homem de rara sensibilidade, que vivia em perfeita sintonia com as suas convicções, e que era dotado de uma extraordinária generosidade.  

Até sempre, Urbano Tavares Rodrigues.

Orfeu B.



segunda-feira, 19 de agosto de 2013

COMO QUEM DESCASCA UMA CEBOLA


Há uma série de belos escritores espanhóis que frequento sempre que posso. Javier Marías, Juan José Milás, Rosa Montero, António Muñoz Molina, entre outros, como é o caso de Ignácio Martinez de Pisón.

Com vários livros publicados em português, Ignácio Martinez de Pisón trabalha normalmente um período histórico que vai dos anos 50 aos anos 80, ou seja, um período de que muitos dos seus leitores guardam pelo menos recordações de comportamentos, formas de vestir, objectos. O autor situa-nos, assim, num tempo que nem é longe na História nem próximo dos nossos dias. Um pouco à maneira do programa de telesão "Conta-me como foi". E ao lê-lo damos connosco a pensar: "Olha que giro", "Os meus pais eram assim mesmo", "Eu lembro-me dos cafés como estes!", "A malta nesta altura funcionava mesmo à maluca!"

Esta escrita tem uma espécie de doçura sem contemplações. E essa doçura vem do facto de que Pisón, mesmo aos personagens mais negros e feios, conseguE inseri-los num percurso humano que os explica sem os justificar.


Pisón não vai a direito. Conduz a sua narrativa em círculos. Revela as suas personagens de uma forma poliédrica. E quando julgamos que já conhecemos uma personagem, eis que o autor acrescenta mais qualquer coisa que nos faz olhá-la de forma ligeiramente diferente. E todo o romance segue esse percurso de aproximação como quem descasca uma cebola.

"o DIA DE AMANHÃ" conta-nos a história de um bufo ao serviço da Brigada Social (a polícia política do tempo do franquismo) desde os seus sonhos e quimeras de juventude até à morte por assassinato, 3 ou 4 anos a seguir à morte de Franco, frente por um comando italiano de extrema-direita.

A narrativa segue em círculos através dos testemunhos dos muitos que o conheceram como homem de negócios, aldrabão, sonhador, amigo, sedutor, amante, bufo, agitador de extrema direita

Justo Gil Telles, o Ratazana, como é conhecido na polícia, é um homem capaz do melhor e do pior, primeiro para curar a mãe entrevada, e no fim para preservar o intocado grande amor da sua vida, por um lado e por outro capaz de denunciar e matar como forma, lá no fundo, das desgraças que a vida o fez passar.

Neste múltiplos testemunhos, além da história de Justo, Pisón vai-nos dando numa espécie de painel de azulejos a história dos 15/20 anos anteriores ao fim do franquismo, com pormenores inesperados, uma capacidade invulgar de reconstruir a memória de um tempo que está à porta da História mas talvez ainda não o seja totalmente


sexta-feira, 16 de agosto de 2013

QUE VIVA MÉXICO




A América Latina tem 7 grandes literaturas, muito fortes e muito diferenciadas. A Chilena, a Argntina e Uruguaia, a Brasileira, a Peruana, a Colombiana, a Cubana e a Mexicana. E estarei a deixar de fora outras que quase desconheço como a guatemala, as Honduras, etc.

Nada mais errado, portanto, do que falar de uma única literatura sul-americana.

A violência da História e da actualidade do México tem levado a que os seus escritores nos tragam um olhar duro, uma escrita intensa e violenta, que nos faz tremer perante a ficção que se reporta a um mundo pintado em tintas fortes como a pintura de Diego Rivera ou Frida Kahlo.

Há grandes nomes de romancistas e poetas mexicanos não tão conhecidos em Portugal como mereceriam. Podemos brevemente referir Juan Rulfo e o seu extraordinário "Pedro Páramo" (publicado pela Cavalo de Ferro) ou o exclente poeta José Emílio Pacheco que creio não ter traduções em Portugal.

O meu amigo Marcelo Teixeira (agora na Parsifal) quando trabalhava na Oficina do Livro deu-nos a conhecer clássicos e jovens escritores mexicanos (e não só mexicanos) na magnífica colecção "Ovelha Negra" que, infelizmente, já deixou de se publicar.

Entre os grandes da literatura mexicana está Carlos Fuentes, falecido em 2012, premiadíssimo, várias vezes apontado ao Prémio Nobel, e com bastantes títulos publicados em Portugal mas não muito referido pela nossa imprensa cultural.

Carlos Fuentes sempre falou de dentro da terra mexicana, do sentir dos homens e mulheres do México e, por isso mesmo, sempre se mostrou capaz de estabelecer as pontes entre o seu país e o mundo, tornando-se assim na figura paradigmática do escritor universal.

Estes "Contos Naturais" constituem uma pequena antologia da sua vasta obra como contista (para além da obra como romancista). São contos escritos em épocas diferentes e que nos dão uma visão rápida mas intensa sobre a arte de Fuentes no que diz respeito ao conto.

O primeiro conto, "Velha moralidade", é uma pérola que nos dá a arte de Carlos Fuentes em toda a sua plenitude.

A figura central,o avô do narrador, velho libertário e, sobretudo, anti-clericalista furioso, entretén-se a insultar os padres que têm todos os dias de passar junto às suas terras.

Amante da terra, das mulheres, do vinho, sem nenhum pejo nem véus vai passando esses valores de forma absoluta e algo selvagem ao neto.

Torna-se assim no alvo da malediciência e das críticas do povoado e, em primeiro lugar, das tias que lhe vão arrancar o neto para lhe dar uma "educação como deve ser".

O neto vai descobrir insuspeitas facetas no mundo que lhe é proporcionado pelas tias. E no choque entre os dois mundos
acaba por hesitar saem saber como fazer uma escolha.

É de forma brilhante que Fuentes dá a volta às aparências e nos revela obscuras perversidades que nos levam a olhar as coisas de maneira muito diferente das aparências.

Os 6 contos pertencem não só a épocas diferentes mas também a diferentes ambientes desde o mundo rural e dos pequenos pueblos até às cidades da fronteira com os EUA, a fronteira de vidro, onde se instalam fábricas de acessórios diversos, autênticos locais de escravatura, onde os patrões podem dispensar as leis do trabalho do país vizinho e pagar ninharias aos pobres trabalhadores que vivem na quase miséria, e onde a violência é o pão nosso de cada dia

O sexo, a igreja, as memórias da revolução são outros temas que sobressaem destas belas narrativas e que nos trazem uma visão multifacetada sobre este país tão diverso, lugar de um imaginário explosivo, escaldante, louco e tão cheio de humanidade.

Ler Carlos Fuentes é perceber como o nosso mundo é feito de muitas faces e compreender mais claramente que se alguém sofre do outro lado do mundo eu não lhe posso estar indiferente porque, afinal de contas, todos somos vizinhos deste pobre planeta.


quarta-feira, 14 de agosto de 2013

A REALIDADE E O IMAGINÁRIO



Talvez seja no policial e no thriller que se torna necessário melhor dominar a arte de contar uma história, o ritmo, o encadeamento, o arco narrativo (senão veja-se o que Jorge Luís Borges disse àcerca deste tema).

Neste tipo de literatura, o escrito procura transmitir a realidade como ela é ou como ela poderia ser e procura fazê-lo de forma a agarrar no leitor e não o deixar levantar os olhos até à última página.

Neste tipo de romance é por vezes deixada para trás a arte das palavras que nos leva ao fundo do conhecimento das coisas, dos sentimentos, da busca de uma sentido para a nossa tão precária condição humana

A verdade, entretanto, é que há quem busque justamente aquela literatura que lhe ofereça sobretudo o real, a informação, o momento único, a reportagem em livro, os actos do actor que passou à História como grande Imperador ou General.

Há também os que buscam os livros que se propõem revelar segredos, mistérios e conjuras que se escondem por trás das aparências da realidade, quer eles sejam mais palpáveis ou mais fantasiosos.

Há ainda muitos que buscam distracção e a informação e que se recusam aos livros que os façam mergulhar na grande aventura da imaginação que a palavra pode oferecer.

Sabemos que há muitas formas de ler e muitos tipos de leitor. Porventura os livros são criados tanto pelos leitores como pelos escritores. Porque cabe ao litor levar o entendimento do trabalho do escritor até ao mais fundo possível. O problema é apenas quando o escritor tem pouco fundo no seu trabalho.

Há vários tipos de escritores, também. Uns que procuram servir melhor, outros que servem pior os leitores que os buscam. Os qse dirigem a leitores mais exigentes e os que se dirigem a leitores menos exigentes. Há escritores que mergulham nos complexos corredores da alma humana. Há os que falam de viagens, os que tecem a sua escrita em torno do debate de ideias, os que querem apenas contar histórias e que o fazem com arte e talento,os que trabalham a realidade e os que navegam nos delírios da fantasia

Um thriller como "A FILHA DO PAPA" tem um motivo forte que atrai os seus leitores. Trata-se de uma espécie de promessa implícita de que ali serão revelados segredos muito especiais e escondidos. Assim, quem parte para a leitura leva o desejo de afastar a cortina e espreitar aquilo que ainda não tinha sido revelado e a que só alguns poucos especialistas ou iniciados têm acesso.

Este não revelado pode ter noutros casos um carácter fantasioso e servido por uma escrita pouco inventiva que roda em torno de lugares comuns através de personagens sem carne nem alma.

Aqui, temos a certeza de que que Luís Miguel Rocha, ex-jornalista, se tornou efectivamente num especialista sobre assuntos do Vaticano. Daí que as revelações contidas em "A filha do Papa" não sejam fantasiosas. Rodam em torno da figura controversa do Papa Pio XII, da sua relação com o nazismo e a questão judia e com o funcionamento do banco do Vaticano. Abrem um pouco a cortina sobre a figura de Madre Pasqualina, companheira de PIO XII durante quase toda a sua vida, a cradora da ideia do banco do Vaticano e única mulher na História que esteve presente num Conclave para a escolha de um novo Papa.

Entre vários momentos da vida de Pio XII e a actualidade, Luís Miguel Rocha mergulha no mundo tremendo das intrigas, lutas e crimes que, ao que parece, têm sido o pão nosso de cada dia no Vaticano, levando os seus heróis de outros romances, o padre Rafael e a jornalista Sarah, a envolverem-se numa teia de crimes e mistérios no centro do mundo negro e prevertido do Vaticano. E a propósito disso mesmo, Frei Bento Domingues, na sua coluna dominical no Público, referia-se ao Papa Bento XVI como "O grande teólogo que parecia saber muito dos mistérios de Deus e confessou que os mistérios do Vaticano o ultrapassavam".

Assim, misturando investigação, realidade e ficção, Luís Miguel Rocha constrói as suas histórias. E constrói-as bem, de acordo com os bons modelos do género. Pegamos no livro e não o queremos largar. Avidamente vamos de capítulo em capítulo, através de uma teia de crimes, mistérios, segredos e personagens que procuram descobrir aquilo a que se possa chamar a verdade e sobreviver a uma terrível máquina económica e administrativa que domina o Vaticano

"A Filha do Papa" desenvolve um imaginário de crimes e aventuras solidamente ancorado numa realidade muito bem documentada.

domingo, 11 de agosto de 2013

"Todos estamos sozinhos, debaixo dos céus, com aquilo que amamos." Truman Capote



A Casa Assombrada.
Virgínia Wolf


Volto aos contos. Por um acaso. Peguei no livro segui a indicação da contracapa e acabei embrenhada na leitura em passo certo.
Há autores, livros e escrita, que nos levam para as salas onde nos sentamos respirando como se habitássemos por momentos aquele tempo, aquele mundo. Livros que são chave de entrada a um lugar onde podemos ser outros e por isso felizes nessa evasão.
Virgínia Wolf executa nestes contos uma orquestra de sons que termina no tempo certo. É eficaz. Não nos deixa lamentar o fim do conto. Coloca dentro de nós a emoção abrupta e duradoura, revivendo aquele momento avassalador, como se nosso fora.
Destaco dois contos.
“O legado”, um conto extraordinário sobre as relações amorosas, as que se constroem as que se dasatentam, as que se encontram, se aceitam ou recusam. A traição na descoberta de uma fatal fidelidade. A suprema entrega ao amor na sua mais fatal recusa.

“Lapin e Lapinova” onde vemos o percurso de um jovem casal que descobre uma curiosa fantasia que lhe abre um mundo próprio e protegido de tudo os que os rodeia. E vivendo essa fantasia, uma forma algo pueril mas partilhada encontram uma forma de serem cumplices e felizes. 
Quanto dura a felicidade? Um conto breve, um romance longo, uma vida?

Virginia wolf, sempre.