segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Meu nome é vermelho

 …
Procurar imitar o mundo através da pintura parece-me desonroso. Eu ressinto-me disto. Mas há um inegável fascínio nas pinturas que eles produzem com os novos métodos. Eles representam o que os olhos vêem como os olhos as vêem. De facto, eles pintam os que os olhos vêem, enquanto que nós pintamos o que nós olhamos. Ao contemplar os seus trabalhos, percebemos que a única forma de imortalizar uma face é através do estilo dos ocidentais. E não são só os habitantes de Veneza que já foram convencidos por esta noção, mas todos os alfaiates, talhantes, soldados, párocos e merceeiros de todo o Ocidente. Eles têm os seus retratos representados desta forma. Um breve olhar nestes retratos e também nós quereríamos nos ver retratados desta forma, pois queremos acreditar que somos diferentes de todos os outros, um único e particular ser humano. Retratar pessoas, não como a mente as percebe, mas elas são realmente vistas pela vista desarmada, é a possibilidade que o novo método nos permite. Chegará um tempo onde todos pintarão como eles o fazem. Quando a pintura for mencionada, o mundo pensará necessariamente na pintura dos ocidentais.         
Qualquer um que pense que um artista assemelha-se à pintura que ele pinta, não me compreende e aos meus mestres artistas. O que nos expõe não é tema que nos foi encomendado, mas as sensibilidades implícitas que nós imprimimos ao tema. A luz que parece radiar do interior da pintura, uma palpável dúvida ou rancor que se nota na composição das figuras, cavalos e árvores, o desejo e a tristeza que emana de um cipreste quando este atinge os céus, a resignação sincera e a paciência que imprimimos quando ilustramos os ladrilhos de parede com um fervor que convida à cegueira … Sim, estes são os nossos traços escondidos, não aqueles cavalos idênticos todos em linha. Quando um artista representa a fúria e a velocidade de um cavalo, ele não pinta a sua fúria e a sua velocidade; ao procurar pintar um cavalo perfeito, ele revela o seu amor pela riqueza do mundo e do seu criador, exibindo todas as cores da paixão pela vida - apenas isto, nada mais.        
Fosse este livro completo e enviado, os artistas de Veneza o ridicularizariam e o seu escárnio chegaria ao Doge de Veneza. Eles dar-se-iam conta que os Otomanos haviam deixado de ser Otomanos e não mais nos temeriam. Quão maravilhoso seria se nós pudéssemos persistir no caminho dos antigos mestres! Porém ninguém quer seguir este caminho, nem Sua Excelência O Nosso Sultão, nem o Senhor Negro - que está melancólico por não ter um retrato da sua Shekure. Neste caso, nós nos resignaremos a copiar, como macacos, século após século, os Europeus. Orgulhosamente nós assinaremos os nossos nomes na nossa arte de imitação. Os antigos mestres de Herat procuraram pintar o mundo segundo os olhos de Deus, e para ocultar a sua individualidade eles nunca assinaram os seus nomes. Vós, não obstante, estão condenados a assinar os vossos nomes para ocultar a vossa ausência de individualidade. Porém, não há alternativa. Cada um vós foi convocado, e o estão a me esconder: Akhar, Sultão do Hindustão, está distribuindo dinheiro e benesses, tentando juntar na sua corte os artistas mais talentosos do mundo. É evidente que o livro para celebrar o milénio do Islão não será compilado aqui em Istambul, mas num atelier de Agra.       

Ohran Pamuk

Um livro magnífico do autor turco, Orhan Pamuk, Prémio Nobel da Literatura de 2006. Um conjunto de dezanove vozes, que se exprimem na primeira pessoa, e que incluem um cadáver, o diabo, um cão, e o pigmento vermelho que dá título ao livro. Um livro que nos expõe enfaticamente à riqueza cultural do Império Otomano, tão singularmente situado entre o Ocidente e o Oriente. A Istambul do Inverno de 1591 é o palco desta trama barroca que envolve dois assassinatos e a colisão estética e filosófica da arte dos iluminaristas muçulmanos com a arte ocidental, que então já absorvera completamente as técnicas de perspectiva da Itália renascentista.

O fio condutor desta narrativa profundamente humana e reflexiva é a encomenda secreta do sultão, Murat III, de um livro ilustrado pelos seus mais hábeis artistas para presentear o Doge de Veneza. Pretendia o sultão celebrar o primeiro milénio da Hégira (a fuga de Maomé de Meca para Medina em 622 D.C.) e demonstrar, através do livro, a riqueza do Império Otomano e a superioridade do mundo islâmico. A encomenda encerrava no entanto, uma exigência invulgar: o sultão deveria ser retratado segundo as técnicas ocidentais da perspectiva.  

A exigência do sultão desencadeia um conflito entre os artistas que defendem a manutenção das técnicas tradicionais de ilustração chinesa-mongol-persa-otomana de retratar a realidade segundo os olhos de Alá, e os artistas que trabalhavam sem reservas no livro. Quando um dos artistas é assassinado, a intriga se transforma num thriller de caça ao assassino, mas também numa análise histórica acerca o sentido da manutenção de uma filosofia de retratar o mundo cujo sentido último era vislumbrar a eternidade e cuja virtude maior dos seus executantes jazia na capacidade de copiar os antigos mestres sem que no processo se evidenciasse um estilo pessoal. 

Decorre simultaneamente à trama envolvendo os artistas, o pungente caso de amor entre Negro, um artista que regressa a Istambul após doze anos de ausência, e a bela Shekure, relação esta intermediada pela judia analfabeta, Esther, profissional na “arte” de unir pares e compreender as complexas nuances dos sentimentos amorosos. Estas personagens femininas propiciam um contraponto precioso, pois têm “um olho no livro e outro fora dele”. 

Um livro estatisticamente exuberante que espelha com cores vivas as radicais diferenças entre duas culturas, e que encerra grandes momentos de lirismo, meta-literatura, história, da dura sociologia de submissão e abuso nos ateliers de artistas, e uma ampla dimensão reflexiva sobre os grandes vectores da vida.   

Orfeu B.



sábado, 19 de dezembro de 2015

O MERGULHO NA ESTRANHEZA




Peter Carey, premiado escritor australiano, escreveu um delicioso livrinho publicado há tempo pela Tinta da China e intitulado "O Japão é um lugar estranho".

O livro de Peter Carey era um repositório de situações estranhas. O livro de Ricardo Adolfoque pode perfeitamente ser alinhado ao lado de Carey, na mesma prateleira, embora o primeiro seja uma espécie de reportagem e o segundo uma obra de ficção.

Mas ambos abordam a vida dos japoneses nessa imensa metrópole que é Tóquio, num Japão que foi arrasadpo pela Guerra e onde, dizem,-me, houve um corte radical com o passado, para se construir um presente onde a importação de tradições e hábitos ocidentais se faz de forma completamente arbitrária e estranha para um leitor desavisado como é o meu caso.

Ricardo Adolfo é um escritor nascido em Angola, e que viveu vários anos num dos subúrbios do Concelho de Sintra. Conhece e usa brilhantemente a forma de falar e de pensar dos jovens desses bairros. Escreveu 3 ou 4 romances muito ineteressantes dos quais saliento "Mizé, antes galdéria que normal e remediada".

Ricardo Adolfo foi viver para o Japão e dá-nos agora uma imporessionante descrição do quotidiano, da forma de viver e pensar dos japoneses de um subúrbio de Tóquio.

A ironia começa porque o narrador do livro descreve um subúrbio de Tóquio a partir de uma linguagem típica do habitante de um subúrbio de Sintra.

No início explica-nos muito vagamente que seria um pequeno marginal com problemas repetidos com a polícia portuguesa e que ao mudar de país procura também mudar de vida e integrar-se na vida normal dos japoneses, o que inclui comprrender de que é que consta essa vida, até casar-se com uma japonesa que parece ter preocupações muito longínquas de uma portuguesa do mesmo escalão.

De surpresa em surpresa vamos caminhando apaixonadamente pela prosa do autor, tentando arrumar um puzzle de peças difíceis de entender aos olhos de um ocidental impreparado e explicadas pelo olhar amalandrado do Cacém ou do Algueirão que é o do narrador.

Não se pode falar exactamente de romance mas de uma sequência algo frenética de histórias e acontecimentos hilariantes que foram publicados como crónicas na revista Sábado.

Talvez nem tudo seja verdade. A leitura deixa-nos frequentemente na possível fronteira entre ficção e realidade. O resultado é sempre ou quase sempre muito divertido.

Desde a naturalidade com que as pessoas dormem no emprego, passando pelo Natal do qual, segundo o narrador, os japoneses apenas retiveram a ideia de amor e, assim, torna-se quase obrigatório passar o dia 25 de Dezembro com uma parceira num Motel de encontros ocasionais, até ao protesto da jovem esposa por o marido não ter uma amante, facto que a desvaloriza aos olhos da comunidade.

Li o livro num ápice como me tem acontecido com as obras do autor. É uma escrita talvez única n nossa literatura actual. Uma escrita que vale muito a pena ler.


quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Caminhada




A vida harmoniza-se com a terra selvagem. O mais vivo é o mais selvagem. Como o selvagem ainda não se rendeu ao homem, a terra retempera-o. Quem avança incessantemente e nunca descansa dos seus afazeres, quem se desenvolve depressa e exige coisas infinitas à vida encontra-se eternamente numa nova terra ou numa zona selvagem, rodeado pela matéria-prima da vida. É como se trepasse aos troncos derrubados das árvores da floresta primitiva. 

Para mim, a esperança e o futuro não nos campos relvados nem nas terras de cultivo, nas cidades nem nas vilas, mas nos impenetráveis pântanos de solo instável …

A minha boa disposição é proporcional à desolação exterior. Dêem-me o oceano, o deserto ou a natureza selvagem! No deserto o ar puro e a solidão compensam a ausência de humidade e a aridez … 

Henry David Thoreau


Caminhada é a derradeira exposição de Thoreau (1817 - 1862) sobre a sua relação íntima e privilegiada com a natureza. Resultado das inúmeras palestras proferidas sobre a temática, Caminhada, faz parte do legado de cerca de 20 obras que o autor do seminal Walden ou a Vida nos Bosques e do influente Desobediência Civil nos deixou. O pensamento de Thoreau está inevitavelmente associado ao naturalismo, à ecologia, ao abolicionismo militante e ao ativismo anti-impostos. Em essência, o que Thoreau nos propõe, retórica e pragmaticamente, é um retorno à simplicidade de uma existência vivida no seio da natureza intacta. A visão de Thoreau para além de precursora dos movimentos ecologistas modernos, contém também uma advertência sobre os perigos da industrialização, que embora ainda incipiente nos Estados Unidos do seu tempo, já prenunciava o aparecimento de uma mentalidade socialmente marcada pelo materialismo e pelo egotismo.

Politicamente, Thoreau defende que contra um estado injusto e opressor, o indivíduo tem o dever de demonstrar a sua oposição, pacífica e racionalmente, pensamento que influenciou indelevelmente personalidades como Tolstói, Gandhi, e Martin Luther King Jr. Thoreau é, no entanto, um realista que almeja antes uma melhoria da governação do que a sua radical substituição; e por ser um anarquista individualista defende que: "O melhor governo é o que não governa. Quando os homens estiverem devidamente preparados,terão esse governo”. Mas para lá chegar, Thoreau advoga uma vida afastada da sociedade e uma viagem interior através de uma existência reduzida ao essencial e em liberdade de modo a responder às verdadeiras questões da vida.

Assim, por entre bosques, colinas, ribeiras e pântanos, a leitura deste livro possibilitará o leitor ter um magnífico vislumbre da personalidade de um indivíduo que colocou a liberdade de seu espírito acima das ideias consensuais do seu tempo e que abdicou conscientemente das conveniências materiais que estas lhe poderiam ter propiciado.

Orfeu B. 

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

"Todas as vidas de homens são contos de fadas escritos pelas mãos de Deus" Hans Christian Andersen

Coisas de Bruxa... 

"Se Andersen vivesse hoje as suas histórias nasceriam diferentes. O Patinho Feio deixaria a família que o desprezava e tornava-se mascote da escola da aldeia até o seu fecho levar para longe a meia dúzia de crianças que o acarinhavam. A aldeia deserta de crianças das seis da manhã às sete da noite não era lugar para ele. Tentaria a sorte no Canadá pensando que, por ser mal amado na sua terra, podia pedir estatuto de refugiado. Seria repatriado. Finalmente, transformado em lindo cisne, batia as asas seguro de si e tombava na margem do lago, acabando por ter a sua história contada na televisão, o moderno ópio do povo.A realidade não está para contos. Paris deixou de ser a cidade dos sonhos e a nossa rua não é lugar ao abrigo de nada. Mas, para as crianças, a realidade é a ponta visível de um gigantesco iceberg. Imerso está um mundo de fantasia que as sustenta. As histórias que lhe contamos preparam-nas para a vida. O destino de cada criança tem de ser ancorado a uma excelente educação. Os livros não podem ser esquecidos. E por isso tudo vale a pena."S.A.

Escrito em Maio de 2011... 
Igual a hoje quando o tempo voa na vida complicada que não permite não atender a muito mais que o quotidiano. Mas ainda não morremos. Nem podemos deixar morrer o que nos guia.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

UMA ALMA ENORME


Conheci a Cristina há meia dúzia de anos. Descobri que era filha de António Gedeão e fiquei naturalmente encantado por ser filha de quem é e por ser quem é: uma pessoa encantadora, capaz de viver a vida em todas direcções e sempre com uma alma enorme.

Nessa altura tinha lido um livro dela: "O gato de Upsala", uma delícia que ela assinou escrevendo que h´4o anis que éramos amigos e só então é que nos conhecíamos.

Continuamos a ser amigos. Muito amigos. E eu tive o imenso prazer de colaborar na apresentação deste seu livro recente, ao seu lado, do Mário de Carvalho e da Ana Pereirinha, a excelente editora da Planeta.


Posso dizer que a minha querida amiga Cristina Carvalho é uma mulher de paixões que transbordam na escrita onde tem dado a público nos últimos anos uma série de livros muito interessantes, quer para adultos quer para jovens.

Lendo este livro percebemos logo nas primeiras páginas que a Cristina fugiu aos modelos clássicos do género, e que se apaixonou pela figura fantástica d e Modigliani e desatou a escrever uma biografia que também pode ser uma auto-biografia escrita por outra mão que não a do que se auto-bigrafa.

Isto pode parecer esquisito mas não é.

A Cristina escreve esta biografia como se se tratasse de um painel de vários olhares e várias mãos escritoras. A dela, autora, a de Modigliani sob a forma de de uma certa biografia, a da descrição de várias outras personagens, nomedamente algumas das mulheres que amaram e foam foram amadas pelo grande pintor.

Em destaque estão as doenças que sempre massacraram o pintor desde a sua infância e juventude, o seu mergulho em álcool e drogas, a vida que arrasta numa roda de boémia e miséria, a forma como arrebata o coração das mulheres, a forte crença no valor da sua própria obra, a forma com alterna os estados de espírito entre a depressão e a euforia, tão próprio das personalidades criativas.

Em destaque ainda está o encanto sensual e o deslumbre que o belo judeu italiano exercia sobre as mulheres, as mais mundanas e experientes ou as mais ingénuas como aquela que foi a mãe da sua filha e que por ele se suicidou a seguir à sua morte.

O romance não será bem um romance no sentido clássico mas um turbilhão crescente que arrasta o leitor, uma roda de viva de momentos, pequenas histórias, personagens diversas desde mãe até aos amigos e às amantes, passando pela estranhíssima relação com Picasso (ou de Picasso com ele) e tudo num carrosel de olhares sobre Modigliani que vai rodando cada vez mais depressa até à morte inevitável ainda numa idade jovem..


sábado, 31 de outubro de 2015

UMA CIDADE CONTADA PELO LONGE E PELO PERTO



É excelente esta colecção da Tinta da China que nos leva a viajar por lugares diversos do mundo real ou do imaginário através das palavras sempre ou quase sempre envolventes que se tornam elas próprias em caminhos admiráveis dirigidos pela mão de excelentes escritores.

Neste caso trata-se de Enric González, jornalista catalão de que já aqui falei de "Histórias de Londres" e "Histórias de Roma".

Correspondente estrangeiro do jornal El País, González tem vivido períodos de 4/5 anos em diversas cidades e que vai contando como se cruza com pequenas histórias e grandes vividas nessas cidades, lendas e mitos da sua história, do futebol, dos restaurantes, das suas figuras míticas...

O autor dá-nos o jeito da cidade, o tom, o cheiro das ruas, o gosto das suas bebidas, o característico dos seus recantos. Torna-nos cúmplices de alguns típicos personagens. Íntimos de artesãos, comeerciantes, cozinheiros, jornalistas... Liga os conhecimentos mais ou menos básicos que temos dessas cidades através de caminhos novos por onde nos faz entrar através da palavra que nos incia em dimensões novas que nos revelam dimensões desconhecidas.

Neste último livrinho, o autor leva-nos pela mão à histórias das terríveis raízes da violência com que se foi construindo Nova York. Começa pelos «bandos italianos e irlandeses do século XIX (de que nos fala com extremamente dureza o filme de Scorcese "Gangs de Nova York"). Segue pelas guerras da Mafia no ec. XX até aos extraordinários desmandos do Mayor Giuliani que acabou por limpar Manhattan da criminalidade de rua.

Conta-nos a história do aparecimento dos arranha-céus. Avisa-nos de onde se comem os melhores bifes e hamburgueres. Tenta explicar os encantos do basebol o que se revela no meu caso com pouco êxito já que sempre revelei uma grande incapacidade para entender as regras e os encantos do jogo. Ajuda-nos a entender a história dos bairros. Fala-nos dos milionários do início do século XX, Rockfeller, Morgan, Carnegie, Vanderbilt, capazes de criar fortunas impensáveis, museus fabulosos, lendas e tragédias.

O livro lê-se como quem passeia pela cidade. Mas parece não acender o mesmo encanto que nos deixa quando fala de Londres ou de Roma. Será porque a espessura das cidades europeias tem outra dimensão? Será porque o próprio autor não se deixa envolver nas malhas do encanto desta cidade? Mas o livro é imperdível. Tanto para quem nunca foi a Nova York como para quem a conhece muito bem. Saramago afirmou que "poucas leituras me deram tanto prazer nos últimos anos". Isso basta. Parece-me a mim.

domingo, 11 de outubro de 2015

SOMBRA E LUZ


Henning Mankell é um excepcional narrador com o ofício caldeado na literatura policial.

O seu inspector Kurt Wallander é uma personagem excepcionalmente bem talhada. A sua humanidade vai-se desenvolvendo através de aventuras, crimes, quer doS pequenos, quer dos crimes dos grandes grupos económicos e políticos.

O ritmo é seguro, eficaz e envolvente e a narrativa desenvolve-se através de surpresas que nos interrogam e questionam.

Assim também este “Anjo Impuro”.

Sendo um dos autores europeus que mais livros vende, Mankell vive em Maputo onde colabora e apoIa a vários níveis o excelente grupo de teatro “Mutumbela Gogo”

O seu romance, inspirado numa história real, centra-se numa jovem sueca de origem muito pobre que em 1904 embarca como cozinheira e única mulher a bordo de vapor que leva madeira para a Austrália.

Na viagem, Hanna casa-se com o imediato do navio tornando-se inesperadamente viúva, poucas semanas depois.

Incapaz de continuar a bordo desembarca em Lourenço Marques, descobre-se grávida, adoece e é recolhida e tratada no mais famoso bordel da cidade, cujas protitutas são todas negras e muito procuradas por homens brancos, profundamente racistas, mandadores de uma sociedade radicalmente racista quer em Moçambique quer na África do Sul.

Recuperada de um aborto natural, graças a uma prostituta de quem se torna amiga, Hanna começa a confrontar-se com uma sociedade que não entende. Não entende a violência e o racismo, e também não entende a reacção dos negros, os seus silêncios e as suas estranhas emoções. .

Entalada entre dois mundos, aprendendo a pouco e pouco a língua portuguesa, Hanna que aprendeu a ler e a escrever sozinha ainda na Suécia, começa a escrever um diário.

Com surpresa, Hanna recebe o pedido de casamento do riquíssimo dono do bordel. Aceita e casa-se com ele. E de novo fica viúva. Viúva e muito rica.

E a historia continua centrada na digna oposição de Hanna ao terror racista e colonial e ainda na sua tentativa de se entender, comunicar e expressar afectos aos negros, o que nem sempre se torna fácil.

Mankell consegue traçar um quadro impressionante sobre a África Austral do início do séc. XX e a dificuldade de comunicação fora do contexto de um colonialismo básico e extremamente violento.

E consegue criar uma malha narrativa que nos envolve e nos vai levando de surpresa em surpresa, de angústia em angústia, de sombra em luz.


terça-feira, 22 de setembro de 2015

A terra devastada


Abril é o mais cruel dos meses, germina
Lilases da terra morta, mistura
Memória e desejo, aviva
Agônicas raízes com a chuva da primavera.
O inverno nos agasalhava, envolvendo
A terra em neve deslembrada, nutrindo
Com secos tubérculos o que ainda restava de vida.
O verão; nos surpreendeu, caindo do Starnbergersee
Com um aguaceiro. Paramos junto aos pórticos
E ao sol caminhamos pelas aleias de Hofgarten,
Tomamos café, e por uma hora conversamos.
Big gar keine Russin, stamm’ aus Litauen, echt deutsch.
Quando éramos crianças, na casa do arquiduque,
Meu primo, ele convidou-me a passear de trenó.
E eu tive medo. Disse-me ele, Maria,
Maria, agarra-te firme. E encosta abaixo deslizamos.
Nas montanhas, lá, onde livre te sentes.
Leio muito à noite, e viajo para o sul durante o inverno.
Que raízes são essas que se arraigam, que ramos se esgalham
Nessa imundície pedregosa? Filho do homem,
Não podes dizer, ou sequer estimas, porque apenas conheces
Um feixe de imagens fraturadas, batidas pelo sol,
E as árvores mortas já não mais te abrigam,
nem te consola o canto dos grilos,
E nenhum rumor de água a latejar na pedra seca. Apenas
Uma sombra medra sob esta rocha escarlate.
(Chega-te à sombra desta rocha escarlate),
E vou mostrar-te algo distinto

De tua sombra a caminhar atrás de ti quando amanhece
Ou de tua sombra vespertina ao teu encontro se elevando;
Vou revelar-te o que é o medo num punhado de pó.



T. S. Eliot

Um dos mais poderosos poemas de língua Inglesa do século XX. Um conjunto de imagens sobrepostas que retratam a fragmentação dos conceitos e o desvanecer das ideias luminosas que marcaram o final do século XIX. Um conjunto complexo de vozes e fontes de inspiração cantam melancolicamente o mal estar das fugazes certezas dilaceradas pela Primeira Grande Guerra e pelas crises do século XX. Um poema intemporal e sempre necessário.  

Publicado em Outubro de 1922 na Grã Bretanha e no mês seguinte nos Estados Unidos, “A terra devastada” é um dos mais representativos exemplos da poesia moderna. Riquíssimo em referências e vagamente inspirado nas lendas do Santo Graal e do Rei Pescador, o poema evoca a tradição grega através da insinuação e referência de figuras como UlissesSibila e Tirésias, os Upanishads hindi, a tradição cristã na sua versão anglicana.

A multiplicidade de imagens e ambientes sugeridos pelo poema composto por cinco partes, reflecte a fragmentação da espiritualidade do autor no início dos anos 1920. Na sua primeira parte, “The Burial of the Dead”, o poema é fortemente marcado pelo desespero e pela dúvida espiritual; na sua segunda parte “The Game of Chess”, caracteriza-se pelo contacto com a existência material; o inevitável tema da morte marca a terceira parte “The Fire Sermon”, e sua relação com as religiões do ocidente; a brevíssima quarta secção “Death by Water” é marcada pelo lirismo e pela alusão, “… Gentio ou Judeu/Ó tu que voltas o leme e olhas na direcção do vento/Pensa em Phlebas, que foi em tempos alto e belo como tu; na quinta parte, “What the Thunder said”, coloca-nos diante do julgamento final e da derradeira hipótese de remissão espiritual, “… A pescar, tendo atrás de mim a planície árida/Porei ao menos as minhas terras em ordem? …” para encerrar o poema com um mantra em Sânscrito "Shantih shantih shantih” dos Upanishads, após passar pela rima infantil, “London bridge is falling down, falling down, falling down”, uma linha do Purgatório de Dante, outra de um soneto de Nerval e uma da Tragédia Espanhola de Kyd.   

Um poema magistral de T. S. Eliot (1888-1965), autor norte-americano naturalizado britânico em 1927, autor de coletâneas marcantes da poesia de língua Inglesa do século XX, tais como The Hollow Men (1925), Ash Wednesday (1930), and Four Quartets (1945). Foi também autor de várias peças de teatro, as mais conhecidas “Murder in the Cathedral” (1935) e “Family Reunion” (1939), foram largamente encenadas. T. S. Eliot foi galardoado com o Prémio Nobel de Literatura em 1948.  

Orfeu B.
   

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

ORATURA E LITERATURA


Hans Magnus Enzensberger fala de analfabetos primários e analfabetos secundários. Os primários não sabem ler, por isso têm de ter uma grande memória para guardar todo o seu saber, o seu por vezes enorme conhecimento oral que inclui histórias, lendas, mitos, poemas, lenga-lengas, orações, etc.

Há quem chame a este património a ORATURA. Ou seja, a literatura oral.

Foi e continua a ser importantíssimo o trabalho de muitos escritores e antropólogos que procuraram e continuam a procurar guardar lendas e mitos orais fixando-os através da escrita, fazendo assim a passagem da oratura à literatura.

Oral ou escrita, toda a nossa civilização se baseia na palavra, seja ela dita ou escrita.

Enzensberger fala-nos ainda dos analfabetos secundários. Os que sabem ler mas... Não têm tempo para ler. Sabem usar cartões de crédito, ouvem imperetrivelmente todas as notícias que logo de seguida deixam de ter qualuqer importância, são consumidores atentos e venerados dos que propagam a opinião única, que espalham verdades absolutas, descartadas depois com a maior facilidade.

Estes analfabetos secundários, podem ser pessoas de grande importância, ministros, presidentes, directores de bancos; ou de menor importância, empregados bancários, caixas de supermercado, vendedores de fruta, cantores de três o pataco. Todos eles viraram costas à palavra em toda a sua grandeza e maravilha. Não crescem através da literatura e da narração, não pertencem ao número dos privilegiados pela arte da leitura.

A ausência de ligação à palavra do mito e da lenda, da reflexão e da busca de sentido, faz com que estes analfabetos vão perdendo a sua identidade antiga ao contrário dos inúmeros povos que dentro do espaço da lusofonia cuja língua materna não tem escrita mas que possuem uma fortíssima identidade passada de pais a filhos através da sua tradição oral.

É na língua oficial, o português, que a sua oratura destes povos se torna literatura, como é o caso das lendas dos índios Kayapós aqui reunidas por Susana Ventura com deliciosas ilustrações de Vanina Starkoff.

Susana Ventura alerta-nos na introdução para o facto de que há inúmeras tribos Kayapóes pelo Brasil, com diversas línguas vivas, o que que faz com que estas lendas e histórias apropriadas aqui ou ali, desta ou daquela forma, dão origem a um número vasto de versões de cada uma.

Fico cheio de "inveja" da Susana. Porque sou como um menino que fica apaixonado por estas nbarrativas e logo me atece reescrevê-las com os meus olhos de lisboeta espantado da vida e do mundo.

Mas dou os parab´nes à Susana porque esta recriação literária constitui uma excelente maneira de entrar em contacto com um universo fantástico e fascinante e que nos enriquece e acrescenta em poesia e humanidade.



sábado, 12 de setembro de 2015

ANTÓNIO FERRO MODERNISMO, PROPAGANDA, SALAZARISMO


Este é o livro de um jornalista sobre um outro jornalista que terá vendido a verdade da sua profissão para se tornar num propagandista sem escrúpulos da figura tão oblíqua e tão duradoura como foi a do ditador Oliveira Salazar.

O núcleo central do livro entrega-nos, com revolta e com pormenor resultante de muita investigação, a figura multifacetada de um homem que desempenhou um papel fundamental nos anos 30 em Portugal e que acabou afastado do país, numa espécie de exílio dourado, a seguir ao final da 2ª Guerra Mundial.

O livro de Orlando Raimundo, centrando-se na figura controversa e espaventosa de António Ferro, dá-nos também um retrato atento do Portugal cultural, político e social dos primeiros anos da ditadura.

Amigo de Fernando Pessoa e de Almada Negreiros, escritor de fraca qualidade, admirador incondicional de Mussulini, apoiante do nacionalismo franquista de Espanha, apoiante incondicional de Salazar, António Ferro terá estado disposto a torcer toda a verdade, a fabricar obras de claríssima propaganda como as entrevistas a Salazar, disfarçadas de peças de jornalismo ou literatura.

Ferro mexer-se-ia com facilidade em certos meios da cultura internacional, trazendo a Portugal figuras de prestígio inquestionável que cercava de honrarias e festas, procurando vender uma imagem nacional de progresso e desenvolvimento fazendo do povo português um povo pacífico e seguidor entusiasta da política salazarista.

Algumas cenas ridículas e menores vão sendo desenterrados por Orlando Raimundo que procura ao longo do livro contestar claramente o mito de que Ferro seria um homem do modernismo com obra literária apreciável.

A denúncia das manigâncias de Ferro deixam surpreendidos os menos informados. E mesmo quem, como eu, cresceu debaixo de alguns dos mitos do propagandista, fica ainda surpreendido perante as mentiras e invenções falsamente populares como são o galo de Barcelos, a aldeia mais portuguesa de Portugal, as sete saias das mulheres da Nazaré, as arrecadas de ouro das noivas do Minho, as marchas dos Santos Populares e etc, etc.

Outro aspecto importante.

Percebemos aqui como, além de Almada Negreiros, Ferro puxou para si a colaboração de inúmeros artistas plásticos, mesmo os mais vanguardistas. Pelo contrário foram muito menos os escritores a marcar presença ao lado do regime. E talvez a razão seja simples. Os artistas plásticos, sem outros mecenas ou compradores, passaram a depender em grande parte das encomendas do homem da propaganda do regime. Os escritores, por seu lado, tinham outras profissões e não viviam da escrita.

Muito mais haveria para dizer de um livro que assume claramente o risco de tratar a memória com emoção. Por isso mesmo e não só trata-se de um livro fundamental sobre um período e uma figura que muito tem sido maquilhada e que nos mostra a importância de trazer a terreiro as memóias, por vezes tontas, por vezes dolorosas, da nossa história recente.


sexta-feira, 28 de agosto de 2015

O EXÉRCITO ILUMINADO


Há editores que marcam a vida dos leitores. Através da tradução e da edição trazem-nos ao conhecimento autores que nos escapariam porque não podemos saber tudo nem conhecer todos os autores e todos os livros do mundo e muitos nos escapam e sempre nos hão-de escapar.

No entanto, a sensibilidade e teimosia destes homens ou mulheres vão traçando caminhos de leitura e, talvez até, caminhos de vida.

Recordo o João Rodrigues que me deu a conhecer na colecção de Bolso da Âmbar o notável escritor italiano Erri de Luca, que muito aprecio e que sigo em português e por vezes em traduções francesas. Mais tarde, na Sextante, o João continuou a dar a conhecer autores fundamentais como Don de Lillo, Romain Gary e mais e mais.

O Carlos da Veiga Ferreira criou um catálogo fabuloso na editora Teorema e continua na Teodolito. Agradeço-lhe ter conhecido escritores como Ignácio Martínez de Pisón, ou o tão diverso W. G. Sebald.

Recordo ainda Rolin, Modiano, aparecidos em português na colecção da ASA pelas mãos do Manuel Alberto Valente.

Ou o trabalho fantástico da Maria do Rosário Pedreira na Temas & Debates ao dar a conhecer estritores como João Tordo, Paulo Moreiras e José Luís Peixoto.

E ainda antes deles todos, o Carlos Araújo, na D. Quixote dos anos 60, com os seus fantásticos Cadernos D. Qixote, Cadernos de Poesia, Cadernos de cinema e outros.

Um destes editores a quem me sinto particularmente agradecido é o Marcelo Teixeira da Editora Parsifal. Há uns anos, estava ele na Campo das Letras (Grupo Leya) e publicou uma excelente colecção, Ovelha Negra de seu nome, que me deu a conhecer autores latino-americanos como José Emílio Pacheco, Jesus Zarate, Augusto Monterroso e vários outros, entre os quais o mexicano David Toscana.

O primeiro livro de Toscana que li chama-se "O primeiro leitor", já aqui o abordei e guardo dele uma recordação entusiasta.

"O Exército iluminado" é uma pérola, uma delícia, um delírio, um caminho de grandes e pequenas surpresas que nos arrastam

Talvez possam querer arrumá-lo nas prateleiras do "realismo fantástico" onde, com rancor, alguns críticos gostam de guardar os seus ódios.

Eu cá, gosto de excessos. Gosto do uso desbragado da imaginação que leva as situação até às últimas e impensáveis consequênciasao do riso à mais profunda e comovente emoção. É neste território que Toscana trabalha.

Ignacio Matus é um professor que transmite repetidamente aos alunos a vergonha nacional que constituiu a perda do estado mexicano do Texas para os Estados Unidos da América, o que leva à sua expulsão do estabelecimento de ensino.

Ferido no seu patriotismo, decide formar um exército no qual se alistam crianças deficientes, que sai da cidade de Monterrey numa carrossa puxada por um burro com a missão de atravessar o rio Bravo, reconquistar o forte El Álamo e, assim, recuperar o Texas e a dignidade da pátria mexicana.

O seu antiamericanismo deve-se também à firme convicção de que um atleta norte-americano lhe arrebatou a glória da medalha de bronze nas Olimpíadas de Paris em que, de resto, ele não participou mas, correndo ao mesmo tempo, em Monterrey, teve melhor melhor resultado.

Romance inquietante, irónico e comovente, onde os fracassos das personagens os transformam em verdadeiros heróis e onde aas narrativas do onírico, da mitomania patriótica, do consumismo mediático, se atravessam e sobrepõem numa malha que está sempre a arrastar-nos para permanentes surpresas que tornam a leitura numa experiência que nos agarra pelos olhos e não nos larga até ao fim.

domingo, 16 de agosto de 2015

Travessia de Verão

Grady nunca passara o Verão em Nova Iorque, e por isso nunca conhecera uma noite como aquela. O tempo quente abre o crânio a uma cidade, mostrando o cérebro branco, e o coração cheio de nervos, que crepitam como fios no interior de uma lâmpada. E emana um cheiro acre sobre-humano que faz com que as próprias pedras pareçam de carne viva, ligadas e a pulsar. Não era que Grady não estivesse familiarizada com o desespero acelerado que uma cidade pode produzir, pois já vira todos os seus componentes na Broadway. Só que aí fora algo a que assistira como espectadora, e na qual não tomara parte. Mas agora, não havia saída possível: ela mesma era um dos participantes. 

Truman Capote 

Travessia de Verão (Summer Crossing) é uma das primeiras experiências novelísticas de Truman Capote (1924-1984), celebrado escritor norte-americano, autor de “Breakfast at Tiffany’s” (1958) e “In Cold Blood” (1966). Publicado postumamente em 2004 (em 2006 entre nós), o manuscrito foi encontrado nos pertences do autor após a sua morte numa das suas antigas moradas em Nova Iorque, não se sabe se por esquecimento ou deliberadamente. Depois de uma análise cuidadosa, os representantes legais do Fundo Literário Truman Capote, estabelecido ainda em vida por desejo do autor, decidiram pela publicação do manuscrito por  considerá-lo completo e após umas poucas ligeiras correcções.

O traço estilístico do autor é indelével e trata-se de uma obra muito carregada com as preocupações dos autores norte-americanos dos anos 1950. As descrições claras e penetrantes são intercaladas pelas reflexões dos protagonistas que se sucedem com grande energia. Capote é exímio em contrastar as classes sociais dos personagens e descreve com cores vívidas o absurdo das etiquetas, a veleidade e a prodigalidade da classe dominante de Nova Iorque dos anos 1950.

Em a Travessia de Verão, Capote cria o relacionamento de Grady, de 17 anos e filha de um magnata da indústria, com Clyde de 23 anos, um modesto judeu do Brooklin, cujos horizontes estão fechados pela falta de qualificações e pela falta de talento no basebol. Contra a vontade da família, Grady decide não acompanhar os pais num cruzeiro para a Europa, para desfrutar em liberdade o recém estabelecido relacionamento com Clyde que trabalha em um parque de estacionamento na Broadway junto ao Teatro Roxy. A voragem consome os jovens protagonistas que acabam por casar clandestinamente. Quando a irmã de Grady descobre que Grady está grávida toda a tensão descritiva é resolvida com um final indefinido, no qual ficam abertas todas as possibilidades e cujas decisões fundamentais são deixadas para leitor.    

Orfeu B.

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Contos de Odessa e outros


Toda a gente da nossa categoria, correctores, lojistas, bancários e empregados de companhias de navegação, ensinava música aos filhos. Os nossos pais, não vendo saída para os rebentos, imaginaram uma lotaria para enriquecer e montaram-na à custa do nosso esforço. Odessa foi afectada por esse delírio mais do que outras cidades, Devido a isso durante decénios forneceu meninos prodígio às salas de concerto de todo o mundo. De Odessa saíram Micha Elman, Zimbalist, Gabrilovitch, e aqui começou Yacha Heifetz.

Quando a criança fazia quatro ou cinco anos, a mamã levava esse ser minúsculo e enfezado ao senhor Zagurski. Zagurski tinha uma fábrica de meninos prodígios, uma fábrica de anões judeus com gola de renda e sapatinhos envernizados. Descobria-os nos tugúrios de Moldavanka e nos pátios macilentos do Bazar velho. Dava a primeira orientação, e depois as crianças eram enviadas para o professor Auer, de Petersburgo. A alma daqueles alfenins de grande cabeça azul ansiava por uma potente harmonia. Alguns chegaram a ser virtuosos afamados. Meu pai quis entrar na competição. Tinha eu quatorze anos, já passara da idade dos meninos prodígios , mas, devido à minha estatura e moleza, bem podia passar por oito anos. Aí residiam todas as esperanças. 


Por respeito pela sabedoria e pela demência do meu avô, Zagusrski cobrava-nos um rublo por aula. Mais: só por receio ao meu avô gastava tempo comigo, porque eu era um caso perdido. Os sons que se desprendiam do meu violino pareciam limalha de ferro. A mim mesmo aqueles sons destroçavam-me o coração, mas o meu pai não me deixava em paz. Em casa só se falava de Micha Elman, isento do serviço militar pelo czar em pessoa. Zimbalist, ao que o meu pai apurara, tinha sido apresentado ao rei de Inglaterra e tocara no palácio de Buckingham; os pais de Gabrilovitch tinham comprado duas casas em Petersburgo. Os meninos prodígio tinham enriquecido os pais. Meu pai podia aceitar ser pobre, mas precisava da fama. 

— Não é possível — sussurravam-lhe os que comiam por sua conta —, não é possível que o neto de um avô destes …

Eu não era da mesma opinião. Quando ensaiava os exercícios de violino, colocava na estante da pauta um livro de Turguénev ou de Dumas e, enquanto arranhava o instrumento, ia devorando uma página após outra. Durante o dia contava aos miúdos da vizinhança patranhas que à noite passava ao papel. Na nossa família a escrita vinha por herança. O meu avô, Leivi-Itsjok, que ao chegar a velho perdeu o juízo, passou a vida a escrever uma novela intitulada “O homem sem cabeça”. Eu saí a ele.  


Isaak Babel


Na tradição de Turguénev, Gógol e Tchekov,  uma breve coletânea, ainda que rica e marcante, de contos de Isaak Babel (1894-1940), escritor considerado por Harold Bloom uma força primordial e dotado de uma intensidade tolstoniana. O crítico naturalizado brasileiro Otto Maria Carpeaux  (1900-1978) considerava Babel “o maior contista que já surgiu no século XX” e acrescentou: “A amplidão e o objetivo de sua visão social permitiu-lhe ver o mundo pelos olhos dos camponeses, soldados, padres, rabinos, crianças, artistas, atores, mulheres de todas as classes. Tornou-se amigo de prostitutas, cocheiros, jóqueis; sabia o que era ficar sem um centavo, viver no limite da pobreza e marginalizado. Foi ao mesmo tempo o poeta da cidade e um lírico da vida rural. ... Vive de uma maneira robusta, inquisitiva e faminta: seu apetite pelo que é imprevisivelmente humano é gargantuesco, inclusivo, excêntrico. Ele é cheio de truques, malandro, irônico, um amante instável, um impostor imprudente – saindo dessas centenas de fogosos ‘eus’, verdades insidiosas arrastam-se para fora, uma por uma, em um rosto, na cor do céu, em uma poça de lama, em uma palavra. É como se ele fosse uma membrana irritável, sujeita a cada vibração das criaturas.”

É de facto espantosa a multiplicidade de pontos de vista adoptados pela prosa de Babel e a amplitude e profundidade da sua visão do mundo. O seu estilo é extraordinariamente histórico, e numas poucas frases é capaz de traçar como uma vida se desenha no contexto dos mais complexos e turbulentos desenvolvimentos históricos. Suas descrições da vida quotidiana da comunidade judaica no início do século XX em Odessa e dos odiosos pogroms são pungentes, como o são os seus contos sobre o sangrento período que sucedeu à Revolução Bolchevique.  

Babel nasceu no seio uma família judaica ortodoxa em Odessa. Membros da sua família foram assassinados em pogroms da era czarista. Na adolescência, cursou um liceu comercial, e estudou também o Talmude e música. Não foi bem sucedido na tentativa ingressar na Universidade de Odessa, pelo que se matriculou no Instituto de Finanças de Kiev. Em 1915, depois de graduado, mudou para Petersburgo onde conheceu o escritor russo Maxim Gorky (1868-1936), facto que marcou a sua vida literária e a sua militância política. Bolchevique de primeira hora, acreditava que a Revolução permitiria uma evolução cultural que ultrapassaria os pogroms e o anti-semistimo. A partir de 1920, participa activamente na guerra contra os “brancos” que se teve lugar de 1918 a 1922. Documentou os horrores que testemunhou num diário que posteriormente tomou a forma de uma colectânea de contos, A Cavalaria Vermelha, publicados em 1924, com o apoio de Gorky, na revista "ЛЕФ" (LEF) de Maiakovski (1893-1930). Estes textos foram recebidos com hostilidade pelas autoridades soviéticas.

Em 1930, Babel trabalhou na Ucrânia, e testemunhou a brutalidade imposta pelas autoridades soviéticas durante o processo de colectivização coerciva, e do qual resultou a morte pela fome de centenas de milhares de camponeses ucranianos. A imposição de Stalin relativamente à adopção do realismo socialista como forma única de expressão artística, levou-lhe a se afastar da vida pública. Quando subsequentemente foi acusado publicamente de improdutividade, declarou ironicamente, no primeiro congresso da União dos Escritores Soviéticos em 1934, que estava a aperfeiçoar um novo estilo literário, o “género do silêncio”. Em 1935, foi repreendido pelo próprio Gorky por cultivar uma “baudelaireana predilecção pela miséria humana" e por retratar a sociedade soviética de forma desfavorável. Nesses anos, também colaborou com Sergei Eisenstein (1898-1948), e foi autor de diversos guiões de filmes de propaganda soviética.

Em Maio de 1939, Babel foi preso na sua dacha em Peredelkino, ao sul de Moscovo, e interrogado sob tortura na prisão Lubyanka. Acabou por confessar pertencer a uma organização controlada do estrangeiro por Trotsky (1879-1949), e de ter sido recrutado para espionar em favor da França pelo escritor francês André Malraux (1901-1976). O seu nome foi removido das enciclopédias e dos dicionários literários, assim como dos créditos dos filmes com os quais colaborou. Segundo a versão oficial, Isaac Babel morreu em 17 de Março de 1941 num dos campos de concentração do regime, porém os registos da NKVD indicam que foi fuzilado em 26 de Janeiro de 1940, depois de um julgamento sumário que durou 20 minutos. Os seus manuscritos e pertences foram confiscados e destruídos pela NKVD. 

Em Dezembro de 1954, durante a abertura do regime depois da morte de Stalin em 1953 e a sucessão de Khrushchev, Babel foi oficialmente absolvido do seu “crime”. Antologias selectas dos seus trabalhos só foram publicadas depois de 1966. 

Orfeu B.


terça-feira, 11 de agosto de 2015

QUANDO A LEITURA SE TORNA UM VíCIO


Ao fim de 60 páginas eu não sabia dizer exactamente qaul o tema deste romance mas, simultaneamente, não era capaz de parar a leitura.

A escrita do João Tordo tinha-se-me colado à pele, envolvia-me, questionava-se, puxava-me para dentro de mim como se fosse um vício insistente que não me largava por um minuto.

Neste romance, talvez o mais fundo e sério de todos os do João, a literatura vai longe. Não se trata aqui de contar uma história. Embora exista uma história. E quando nos apercebemos de que essa históttia existe levamos um tremendo murro no estômago.

Todo o trabalho do narrador em volta da palavra parece de início uma deambulação sem aparente destino em torno de tudo e de nada. Já estamos mergulhados no rame-rame duro, lento, encantatório dessa construção literária quando tudo explode dentro do nosso coração. E percebemos então que a história, a terrível história, já se tinha iniciado há muito tempo, antes até da leitura. Apanhámos a história a meio caminho. E ela continua e leva-nos num ritmo implacável talvez muito para lá do próprio romance.

Uma ilha canadiana. Gente com diversas origens. Um lugar de solidão e questonamento perante o céu, o mar, a vida.

Trata-se de um lugar que pode ir ao fundo como foi a casa do poeta Drosler com todos os seus dários e memórias. Um lugar de expiação de culpas e de exílio. Um lugar onde o narrador procura esquecer a culpa exilando-se de si próprio.

A escrita de João Tordo parece simples e perturba. Parece falar de coisas vulgares e toca nos grandes temas e angústias da nossa existência.

Acima de tudo, não nos dá o consolo de nenhuma certeza. Apenas o júbilo de sentir como a literatura nos pode levar longe. Muito, muio longe.

a vida.

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

POR TRÁS DOS VÉUS


O romance histórico tem sido um dos campos mais vivos da literatura portuguesa dos últimos anos. Poemos lembrar nomes de autores como Miguel Real, Paulo Moreiras, Pedro Almeida Vieira, Isabel Stilwell, entre vários outros.

O trabalho dos romancistas que cultuivam este género exige a documentação sobre a época e a convergência com a busca de outras formas de pensar, outros modos sociais, outros desenhos da coloquialidade.

No entanto, o romance histórico não pretende mergulhar-nos totalmente no passado. Até porque o escritor deste género, se utiliza um esqueleto de investigação, trabalha depois nas fissuras que podem ser preenchidas pela criação das suas personagens e dos sus dramas.

Penso, de qualquer maneira, que o futuro conhecerá a história passada também através da ficção. É esse o encanto que tem este tipo de romance que melhor cumprirá a sua função literária na medida em que escapar à tentação de deixar que o presente com as suas particularidades, as suas questionações próprias e o seu vocabulário se imponham e tornem a narrativa numa história banalizada e sem alma.

Raquel Ochoa tomou conhecimento de uma história verdadeira e esquecida de que ouviu falar em Marrocos e depois a investigou nos arquivos de Lisbo

1793, o herdeiro do trono marroquino ordenou, por razões de segurança, já que o país se encontrava em guerra, que a mulher, e outros membros da família real, assim como as concubinas do sultão, saíssem de Casablanca e fossem para Rabat.

Tempestades sucessivas e falta de conhecimentos nauticas levam as embarcações a aportar à Madeira, aos Açores e, finalmente a Lisboa.

Aqui, por ordem da rainha D. Maria I, um notável frei João de Sousa, arabista e membro da Academia de Ciências, mediou os encontros diplomáticos.

Há algo de um "O Nome da Rosa" em que Raquel Ochoa se influenciou ao desenvolver a figura deliciosa de Frei João, tradutor e investigador de mistérios que envolvem a comitiva marroquina e que põem em risco algumas das concubinas.

O choque entre hábitos muito diferentes dá origem a alguns episódios picaresco com os nobres e os mesmo nobres ansiosos por saber que beldades se esconderão por trás dos véus das concubinas.

No meio de tudo, Frei João dá voltas e viravoltas para evitar os conflitos de protocolo e tentar resolver o mistério que envovlve a comitiva
.
Narrartiva divertida que põe em destaque o contacto entre duas civilizações que eram tão diferentes há cerca de dois séculos e que continua a ter muitas diferenças passado este tempo.


segunda-feira, 3 de agosto de 2015

NA PELE DO OUTRO


Em 1970, em Amesterdão, subi ao sótão onde Anne Franck esteve escondida dos nazis, antes de acabar por ser apanhada e morrer em Auschwitz. Lembro-me de como ali me senti, apertado0naquele espaço estreito ne sombrio, sentindo na pele, tanto quanto é possível, o drama de um povo que tentava fugir ao holocausto.

Esta história contada por Hans Keilson é a de um homem, judeu, que um casal de jovens holandeses escondem na sua casa durante a ocuipação nazi da Holanda.

O estilo é simples e eficaz. Se não há nada de efectiva comédia na narrativa em que vamos conhecendo os pequenos sobresaltos, os receios, as angústias de quem está escondido e, também, as de quem esconde. Mas são necessariamente diferentes as suas condições e a sua liberdade de movimentos.

A pouco e pouco vamos também ercebendo que terá sido normal muitos holandeses esconderem em suas casas os judeus perseguidos pela Gestapo, pelas SS e sei lá que mais.

O marido sai de manhã e vai trabalhar. Volta a meio da tarde. A mulher recebe o leiteiro, vai às compras, fala com as vizinhas, procura dar uma aparência de absoluta normallidade.

O homem escondido passa horas deitado na cama a ler. Espreita a rua pela frincha das cortinas. Defacilmente a polícia sce de manhã para o pequeno almoço e à noite para o jantar com os seus hospedeiros. Às vezes fala sobre a esperança no fim da guerra e do nazismo. Manifesta por vezes a angústia do tempo que passa e não traz uma promessa de porta de saída.

Tudo corre com a possível tranquilidade, quando o homem escondido adoece. Chamam o médico que ao saber da situção do doente se mostra solidário e vai acompanhar a doença procurando também manter o segredo daquela reclusão.

Ao fim de alguns dias o homem morre. E aqui começam os problemas. Que fazer ao corpo do falecido sem denunciar às autoridades aqueles que tão generosamente o esconderam?

A solução encontrada é relativamente simples. Esperaram pela lua nova, embrulharam o corpo num cobertor e foram colocá-lo debaixo de um banco num jardim próximo.

Tudo corre bem. Quer dizer, tudo corre o melhor possível naquela situação. Até que a mulher se lembra de que o cobertor tem a marca da lavandaria. E, com essa marca, facilmente a polícia dará com eles e os virá necessariamente a prender.

Que fazer? Simples. O jovem casal deixa a sua casa e vai esconder-se na casa de uma familiar. E assim, passam a viver a situação contrária. Aprendem a sentir na pele o drama e a angústia do homem que receberam em sua casa.

Desta forma, a narrativa inverte-se e torna-se naquilo que é uma das funções da literatura: colocar-nos no papel do outro. Fazer-nos sentir a angústia do outro. Habitar o coração do outro, mesmo quando sabemos reconhecer as inevitáveis diferenças.

Quando a literatura cumpre esta sua função está a abrir o grande e belo caminho para a democracia e para a paz.

sábado, 1 de agosto de 2015

Novos Contos do Imprevisto


                           
A Vingança Será Minha e C.ª

Exmo. Sr. _____

Já deve ter lido o ataque calunioso e despropositado ao carácter do jornalista _____, publicado no jornal de hoje. Trata-se de uma insinuação injuriosa, de uma deturpação deliberada da verdade. 

Está disposto a permitir que esse miserável caluniador o insulte dessa madeira sem fazer nada? 

Toda a gente sabe que não faz parte da natureza dos americanos permitir-se serem insultados quer em público quer em particular sem manifestarem uma indignação justificada e sem exigir — ou melhor, reclamar — que seja feita justiça. 

Por lado, é perfeitamente natural que um cidadão do seu prestígio e reputação não queira envolver-se pessoalmente nesta questão sórdida e mesquinha, ou ter sequer qualquer contacto directo com esse indivíduo abjecto.

Então como exigir reparação?

A resposta é simples A Vingança Será Minha e C.ª exigi-la-á por si. Comprometemo-nos, em nome de V. Exa. e no mais estrito sigilo, administrar um castigo ao jornalista _____, pelo que apresentamos uma lista de métodos (incluindo os respectivos preços): 

1º Um único murro no nariz, com força     - 500 dólares

2º Um olho negro                                             - 600 dólares

3º Um murro no nariz e um olho negro      - 1000 dólares 

4º Pôr uma cascavel (sem veneno) no chão do carro dele, junto dos pedais, quando ele estacionar                                        - 1500 dólares

5º Raptá-lo, tirar-lhe a roupa toda, excepto as cuecas, os sapatos e as meias, e largá-lo na Quinta Avenida, à hora de ponta                            - 2500 dólares

(Este trabalho será executado por um profissional.)   

Caso pretenda aproveitar uma dessas ofertas, queira responder para A Vingança Será Minha e C.ª, para a morada indicada na folha em anexo. Se for viável, ser-lhe-á comunicado com antecendência o local e a hora a que a operação terá lugar, de modo que V. Exa. possa, caso assim o dele, assistir pessoalmente à punição, a uma distância segura e no mais absoluto anonimato.

Não será necessário efectuar qualquer pagamento antes de o serviço encomendado ter sido desempenhado de forma satisfatória, sendo-lhe posteriormente enviada a conta da forma habitual.  

Roald Dahl

O insólito, o bizarro, o cómico e o inesperado. Penso que seriam estes os adjectivos mas apropriados para caracterizar este conjunto de contos do excêntrico e controverso escritor britânico Roald Dahl (1916 — 1990). Sendo um dos escritores mais vendidos no mundo, Roald Dahl é conhecido, sobretudo, pelas suas obras para o público infantil, sendo célebres “The The Gremlins” (1943) e “Charlie and the Chocolate Factory” (1964), cujas versões cinematográficas são bem conhecidas.

Contos do imprevisto, do original “Tales of the Unexpected” (1979) e a a sua continuação “More Tales of the Unexpected” (1980), reúne uma dúzia de contos com qualidade algo desigual, mas todos originais e muito variados na sua temática e abordagem. Novos Contos do Imprevisto propicia momentos de grande prazer e humor, e cuja leitura é particularmente adequada aos tempos estivais.  

Orfeu B.



domingo, 19 de julho de 2015

O Passageiro Walter Benjamin

 E, se olhasse bem, um lenço que se agitava na distância, não era quase o começo de um fio que, ao desenvolver-se, avança necessariamente para o outro extremo, o da melancolia do regresso? Sim, existia um fio invisível que se desenvolve em cada partida, cada passagem de um lugar para outro, daí o costume de lançar fitas de papel nos molhes, fitas de diferentes cores que acrescentam um aspecto quase festivo à tristeza das despedidas, muitas vezes saboreada por ele com uma complacência que a qualquer outro deveria parecer sempre suspeita. Quase sempre uma mulher se despedira dele num porto, numa estação, daí o seu costume de urdir sempre novas travessias destinadas a aumentar indefinidamente a cadeia … “Será isto a morte?”            
                                    
Ricardo Cano Gaviria

Uma narrativa intensa e íntima das últimas horas de Walter Benjamin, uma figura incontornável da cultura alemã da primeira metade do século XX. Em Setembro de 1940, com 48 anos, uma pasta preta com um manuscrito inacabado e um bilhete de navio para os Estados Unidos, Walter Benjamin, filósofo, crítico cultural, tradutor, especialista no romantismo, no idealismo alemão, na teoria estética e no misticismo judaico, autor de Kafka e do texto essencial “A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica”, tentava chegar a Lisboa através de Espanha, após cruzar os Pirenéus de França, país onde se refugiara desde 1932. Recordemos que a fúria nazista que varreu da Alemanha toda a actividade intelectual civilizada, obrigou os mais ilustres intelectuais e cientistas a abandonar o país, de Einstein a Thomas Mann, de Max Born a Otto Klemperer, de Bertold Brecht a Kurt Weil, de Alma Mahler a Heinrich Mann. Walter Benjamin, associado ao pensamento crítico da influente, prolífica e muito “judaica” Escola de Frankfurt, estava entre os milhares de intelectuais que abandonaram a Alemanha nazi pouco antes ou logo após Hitler instalar-se no poder em Janeiro de 1933.      

Em “O passageiro Walter Benjamin”, o escritor colombiano radicado em Espanha desde 1970, Ricardo Cano Gaviria, descreve com grande maturidade literária e um grande sentido intuitivo a vida afectiva e intelectual do grande pensador durante as suas horas derradeiras. Adicionando aos factos conhecidos consideráveis doses de imaginação literária, o autor relaciona o trivial de uma fuga desesperada ao transcedental, enquanto explora os meandros de uma mente complexa, exausta e perplexa com a desfavorável cadeia de circunstâncias que lhe impedem de concretizar um precário plano de fuga. Há que mencionar o facto historicamente relevante de estar então o Ministro das Relações Exteriores de Espanha em Berlim, e para demonstrar a Hitler a colaboração do seu país, Franco ordena que a permeável fronteira entre Espanha e França, em Portbou na Catalúnia, seja encerrada para os desprovidos de nacionalidade (a Alemanha nazi retirara a nacionalidade de todos os judeus e dos seus inimigos políticos). Assim, impedido de entrar em Espanha, Walter Benjamin, vê-se na contingência de ser capturado pela polícia francesa da república de Vichy e ser enviado para um campo de extermínio. Na madrugada do dia 26 de Setembro de 1940, o homem que traduziu “Les Fleur du Mal” e parcialmente “À la recherche du temps perdu” de Proust para o alemão, se suicidou com uma forte dose de morfina. 

Orfeu B.




sábado, 6 de junho de 2015

Poemas Canhotos


em boa verdade houve tempo em que tive uma
                                 ou duas artes poéticas,
agora não tenho nada:
sento-me, abro um caderno, pego numa esferográfica
                                   e traço meia dúzia de linhas:
às vezes apenas duas ou três linhas;
outras, vinte ou trinta:
houve momentos em que fui apanhado neste jogo e cheguei
                      a encher umas quantas páginas do caderno
aconteceu também por vezes que o papel pareceu
                                                        estremecer,
mas o mundo, não: nunca senti que o mundo estremecesse
                                        sob as minhas palavras escritas,
o que já senti, e é de facto um pouco estranho, foi isto:
enquanto escrevia, o mundo parecia deslocar-se,
e quando eu chegava ao fim das linhas escritas,
sabia que estava tudo feito,
sentia que deveria morrer
mas, como se vê, nunca o mais simples atingiu em mim a
                                                 sua própria profundidade


Herberto Helder 


O mais simples é possivelmente o mais inacessível. Tornar com que umas poucas linhas façam mais sentido que todas as linhas que as antecederam. Entender que a profundidade é capturar a rasura dos dias e emprestar-lhes um significado até o derradeiro momento. Encerrar a obra no ponto verdadeiramente final.

Agora o poeta não voltará a escrever, a obra está concluída e reverbera na mente dos sonâmbulos sobreviventes. Ler um poema de Herberto Helder era como mergulhar num sonho, mas agora nós acordamos e não haverá novos poemas, destros ou canhotos. Deixou-nos o poeta, ficou-nos a sua ciência e a sua poesia.

Foi assim e será o Herberto Helder dos 13 poemas canhotos finais, o último destes com rimas em ão. Impossível! Não há impossíveis na poesia, o que há são imaginações demasiado curtas, ou imaginações fora do alcance da imaginação. A fabulação de Herberto Helder era ser a cada poema, um outro Herberto Helder, sempre sendo Herberto Helder.    

Um poema não salva o mundo, mas o protege da cacofonia dos maus poemas e dos sofismas de outros discursos. Todo poeta deveria pensar, poisar a pena e fazer um minuto de silêncio. Talvez, escrever  o  poema longuíssimo de um minuto de silêncio de muitas vidas.  

Orfeu B.


escrever poemas não é boa maneira de atordoar os 
tempos do verbo, 
não é o mesmo que meter a cabeça num buraco abissínio,
nem perder algures uma perna/ e lembrar-me depois de perder ainda a outra:
 ninguém ganha assim uma barra de ouro,
ninguém glorifica o corpo queimando-o com barras de ouro,
ninguém transforma assim uma chaga a beleza humana,
tórax e membros e a cabeça por entre a espuma:
e como só de pensá-lo o corpo avança! escrever, 
deixar de escrever,
escrever ou não escrever não é acabar assim tão depressa
 quanto se pensava
um poema ou dois ou cem não é nunca até ao fim,
escrever poemas não é apenas vou ali e já volto à morte do costume:
 colinas tão próximas como se guardassem os nossos próprios olhos,
e logo depois leva-as o vento para adjectivos longínquos,
tudo tão prodigioso que se não entende nada:
uma rosa é uma rosa é uma rosa - disse ela em inglês
 (há quantos anos li isso!)
(há quantos anos fiquei bêbedo desse talhão de roseiras!)
a rose is a rose is a rose et coetera
- mudou-me a vida?
oh faminta ciência da paciência!
coisas bem menores mudaram para sempre a minha vida, 
e então porque não a mudaria uma rosa compactamente múltipla?
morrer por uma rosa é que fia mais fino: 
que fabuloso fio em que roca e em que fuso,
que segredo do mundo

Herberto Helder



terça-feira, 2 de junho de 2015

A ARTE SUPREMA DO MONÓLOGO



Lê-se Sandor Marai como um doce veneno que, página a página, se infiltra no nosso coração e o carrega do júbilo de encontrar as semelhanças que todo o leitor procura nas suas leituras mas também do ferro da dúvida que coloca o nosso rosto no espelho do lado mais sombrio da profunda inquietude de que se faz a condição humana.

O tecido narrativo foge ao diálogo e espalha-se gloriosamente pela arte deslumbrante do monólogo que Marai tão bem domina.

Poderíamos dizer que a estrutura narrativa não é a de um romance mas a de uma sequência de monólogos teatrais.

Sabemos que Casanova fugiu da prisão da Inquisição de Veneza e acaba de chegar a Bolzano, já fora da República de Veneza e vai recompor-se dormindo hopra e horas a fio.

Três momentos poderiam depois tornar-se nos três actos de uma peça de teatro.

1º O monólogo de Casanova ao acordar e descobrir que várias mulheres de Bolzano o vieram espreitar pelo buraco da fechadura para ver quem é aquela personagem extraordinária, artista exímio na arte das cartas e do amor. (“O que é que tu vês?”, perguntam as mulheres à que espreita no momento em que ele se levanta. E ela responde cheia de espanto e admiração: “É um homem!”)

2º O monólogo do Conde de Parma que traz uma curtíssima carta de amor de Francesca, a sua própria mulher, a Giacomo Casanova. O marido velho e poderoso, propõe, mediante uma enorme quantia, que Giacomo se encontre com Francesca, que a seduza e a desengane para que ela regresse para junto do marido “curada” da tentação daquele amor.

3º O encontro dos dois apaixonados, ele mascarado de mulher e ela de homem, a extraordinária declaração de amor de Francesca a Giacomo, e a separação perante a acusação de que Casanova não ser capaz de abraçar o amor verdadeiro, o amor total, o amor de entrega absoluta para além de todas as regras e limites.

Ler Marai é mergulhar no prazer intenso, obsessivo, por vezes quase doentio de trazer os extremos das emoções humanas para o reino da palavra., Sem psicologias baratas nem complicadas elaborações narrativas. Usando apenas o luxo da palavra que, com frequência, nos deixa sem respiração.

domingo, 10 de maio de 2015

Carta ao Futuro

                
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Toda a vida que se cumpre esgota a comunicabilidade onde quer que se anuncie. Assim, a hora da sua verdade não é uma hora de comício, mas de solidão final. A máscara que nos defende não tanto contra os autores como contra nós próprios (porque se nós a montamos não é tanto para que os outros nos identifiquem por ela, como para que nós acabemos de por ela nos identificarmos), essa máscara que é de comédia, ainda quando de tragédia, é bem vã nos instantes derradeiros de qualquer situação, porque então os ohos que nos vêem não nos vêem de fora mas de dentro. Ah, estar só é terrível. E difícil: a própria solidão do espírito inventa a memória da fraternidade corpórea, relembra a presença dos outros, o seu olhar que nos fita e que nos espera do lado de lá da provação. Por isso me ocorre muitas vezes que para um homem saber que voz última lhe fala, deveria ao menos ver-se flagrantemente à hora de uma morte abandonada, numa ilha deserta e perdida. Pascal: On moura seul.

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Se há uma vida a cumprir em unidade, se cada qual, dentro do seu mundo, é uma positividade sem margens - toda a vida está certa, para aquele que a vive, dentro da ilusão ou do erro. Por isso nós conhecemos, fora dos que nos oprime ou deseja oprimir, uma certa tolerância fatigada ou fraterna. Irmãos de uma só comunidade, esta que se limita no nascer, no morrer, na angústia de uma redenção qualquer, é bom que nos reconheçamos, sob o mesmo império de uma mesma lei - é bom que um olhar de concórdia nos dê o que puder de reconforto e de encorajamento.

Vergílio Ferreira


Carta ao Futuro (1958) é um texto do romancista e ensaísta Vergílio Ferreira (1916-1996), nome maior da prosa ficcional portuguesa do século XX. Com um claro pendor metafísico e existencialista, a escrita de Vergílio Ferreira, com indeléveis raízes queirosianas, é particularmente tocante no seu cariz memorialista. O autor deixou-nos uma vasta obra, das quais destaco as que conheço e considero marcantes: "Para Sempre" (1983), “Uma Esplanada sobre o Mar" (1986). Vergílio Ferreira foi recipiente do Prémio Camões em 1992.

Carta ao Futuro é uma longa carta-ensaio destinada a um amigo imaginário, para ser lida amanhã, daqui a séculos ou a milénios. Vergílio Ferreira procura nessas linhas aferir se os temas existenciais que nos afligem desde sempre são ainda sentidos ou se já estarão superados. As questões em foco envolvem: o papel da arte e das emoções estéticas, a morte do indivíduo e a sua opacidade, a morte de Deus, a solidão final, a comunicação e a empatia, a unidade do ser, as verdades - que segundo o autor são necessariamente existenciais, o absoluto da arte e a sua sagração. 

Vergílio Ferreira identifica os seus temas essenciais colocando-os no contexto do encontro do ser consigo próprio e da re-criação dos pilares do mundo, substituindo a ilusão da procura de Deus e de algo superior, pelo sentido da comunidade humana adquirido através do entendimento profundo da dádiva da vida, do fazer e do criar, através do sentimento estético associado à arte.  

Nesta carta à humanidade, Vergílio Ferreira apresenta a sua crença de que, ao longo dos tempos, a arte é a forma mais fundamental de evitar que as angústias existenciais fragmentem a essência da humanidade. Uma carta para ser lida inúmeras vezes amanhã, daqui a séculos ou milénios, sempre.
   
Orfeu B.