quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

AINDA AS TRADUÇÕES E OS TRADUTORES




Um livro de Roberto Bolaño, escritor chileno falecido em 2003, com 50 anos, foi considerado por “The New York Times Book Review” como um dos melhores livros de 2008. Esta glória póstuma de um escritor de língua espanhola deve-se à tradução do seu livro “2666” para inglês dos E.U.A. O que surpreendeu os conhecedores da obra de Bolaño, escritor de méritos, sem dúvida, mas de influência reduzida nas literaturas hispânicas.
O primeiro número de 2009 da “Babélia”, suplemento cultural de “El País”, dá conta do sucedido e aponta a razão de tal. Ou seja, o texto em língua inglesa “adquire outra vida, outra função”, que não tinha em castelhano. É um outro texto e um outro escritor, em sintonia com um outro público para quem a força de uma escrita “vitalista” ganha uma ressonância muito particular.
Mas não sei se este sucesso da obra se deve somente ao facto de ser traduzido para uma língua de outra cultura, pois é bem possível que se deva, também, à qualidade do tradutor. Sempre considerei que os tradutores são decisivos para o prestígio dos autores em países em que não se fala a sua língua. Só partindo deste princípio é que se poderá compreender a atribuição do Prémio Nobel a escritores de países cujo idioma é desconhecido do doutíssimo júri da Academia Sueca. Assim, estou em crer que é uma tremendíssima injustiça não se explicitar que o dito prémio foi atribuído não a um, mas a dois escritores: ao autor da obra e ao seu tradutor!
Entre nós, há exemplos de sobra da importância dos tradutores. Desde as traduções de autores norte-americanos por José Rodrigues Miguéis e Jorge de Sena, até às traduções dos clássicos russos por Nina Guerra e Filipe Guerra. Para não falar das traduções do francês por Pedro Tamen, do alemão por João Barrento ou do espanhol por José Bento. Graças a eles, tivemos acesso, em primeira mão, ao que de melhor se tem escrito noutras línguas. A excelência das suas traduções deveria ser merecedora da atribuição de prémios literários, tão ou mais prestigiosos quão os que habitualmente contemplam os “autores”.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Instruções para salvar o mundo

Para mim todos os livros (que valem a pena ler) são “instruções para salvar o mundo”, ou antes “instruções para me salvar a mim, no mundo”. Porque, como já alguém disse, fazem-nos resolver problemas da nossa relação com este universo que, por vezes, é demasiado cruel. Por isso, à partida, este titulo do livro da Rosa Montero parece redundante. Mas não é! Apenas é uma caixa de surpresas, um antídoto para toda a malvadez, uma espécie de “conto de Natal” como afirmou o El Mundo (escrito nas abas do livro).

Alem das passagens maravilhosas que a Rosa Montero nos habituou nos seus livros, também temos um livro mais coordenado com a nossa condição de “seres suburbanos” nesta “aldeia global”. Suburbanos porque, mesmo que queiramos estar “in”, estamos sempre na margem, fora deste centro da existência que, cada vez mais, é unicamente virtual. Ninguém vive nesta cidade, apenas desejam viver. 

A história de quatro personagens (ou talvez mais) em queda acentuada num precipício e que vão acabar por se cruzar por circunstancias variadas. As personagens (um taxista viúvo, um médico desleixado, uma prostituta, uma ex-professora universitária) são uma espécie de mortos vivos, que rejeitam viver neste mundo, fogem para uma “second life”, para uma recordação ou simplesmente procuram um local vazio de anestesia completa porque a vida dói. As suas acções, algumas não intencionais, permitem uma espécie de inter-ajuda. Todas elas tem um momento breve de bondade, uma capacidade de nobreza quase raro nesta malha urbana atestada de corpos que se movem de um lado para outro sem saírem do SEU lugar. 





Contos completos de Truman Capote


Truman Capote é um autor indelevelmente ligado a uma só obra, “A sangue frio”, narrativa não ficcional em torno do selvático homicídio de uma família de uma família no Kansas rural. Com esta obra, Truman Capote converteu-se em estrela americana tendo na altura apoarecido em tudo o que era “talk shows”. Começou também a cair nas boas graças da “high society” boémia. Anuncia a publicação de um novo romance, “Súplicas atendidas” que nunca viria a completar (está publicado em Português o que resultou desse esforço sempre adiado). Este romance examinaria impiedosamente a vida dos amricanos ricos. Os seus amigos ricos vão abandonando-o e Truman Capote entra num túnel de drogas e álcool. Poderíamos pensar que a isto se resume a carreira do autor. Mas temos tido ao longo dos anos a edição em português de textos que revelam outras facetas deste autor, como por exemplo “A harpa de ervas”. Não me recordo precisamente se é neste livro que escreve uma crónica deliciosa sobre a sua experiência de acompanhar uma companhia de dança americana à Rússia. E agora chegam-nos os “Contos completos” pela Sextante Editora”, e vemos todo o grande escritor de textos curtos que foi Truman Capote. Apesar de longo, este é daqueles livros que nos deixa com uma sensação de pena no final de que não hajam mais contos. Este li vro revela-nos também a versatilidade de temas abordados. Há dois contos, por exemplo, autobiográficos, relativos à sua infância. A mãe casou com um homem bastante mais velho e ao fim de um ano separam-se. Truman Capote é entregue a parentes que vivem numa quinta do Alabama. A sua infância está marcada pela amizade funda com uma senhora idosa de alama de criança que sempre o acompanha nas suas brincadeiras. Num outro conto, é relatada uma viagem da criança Truman Capote até New Orleans para ver o pai. Várias coisas o apavoravam: a ideia de deixar a sua amiga, o ter de viajar sozinho e, sobretudo, reencontrar-se com um homem praticamente desconhecido. Mas a promessa completamente irrealista da sua amiga de que iria ver neve em New Orleans convence-o, embora com tristeza, a partir. Para aquilatarmos da versatilidade do autor, atentemos por exemplo no conto “A lenda de Preacher”, onde um velho negro perdeu há um ano a sua mulher. Este personagem folheia atentamente a bíblia embora não saiba ler e está profundamente influenciado pelos sermões do pastor local. Todos os dias, Preacher faz um percurso até um rio para ver se acontece algum milagre. Um dia avista dois indívídos (caçadores). Preacher corre para a sua pobre casa e tenta arranjá-la o melhor possível. Entretanto os caçadores vão atrás dele com a intenção de lhe pedir de beber. Quando eles chegam a sua casa, Preacher pensa que um dos caçadores é Jesus Cristo e, o outro, um santo. Este desencontro é delicioso.
Se tivéssemos que dar estrelas como os críticos de cinema (desde “a evitar” até 5 estrelas) eu diria: “a não perder”

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

DAPHNE DU MAURIER, UMA CONTISTA ACTUAL?




Daphne du Maurier, escritora inglesa, que viveu de 1907 a 1989, ficou célebre não só pelos contos como também pelos romances que escreveu. De entre estes últimos, destacarei a sua “Rebeca” (1938), amplamente divulgada entre nós, em parte devido ao filme a que deu origem.
Este relembrar da autora decorre da publicação recente, pela Relógio d’Água, de um livro seu, “Contos”. Contos vários, publicados entre 1971 e 2006 (o conto de 2006 é um conto antigo, só agora descoberto).
Na colectânea a que me refiro, avultam os dois textos, “Não Olhes Agora” e “Caso Limite”, publicados quando a autora tinha mais de 60 anos. São dois textos muito bem urdidos, de uma contenção exemplar, o que permite um crescendo de forte progressão da acção, envolta em mistério e inquietação, que conferem ritmo e “suspense” à narrativa e dão sentido ao desfecho final – quase imprevisto, quase lógico.
Histórias que se inserem na boa tradição inglesa das histórias de mistério e de uma certa alucinação, em que se pretende envolver o leitor, fornecendo-lhe e, simultaneamente, ocultando-lhe pistas indiciadoras do desenrolar da acção. Acção que tem algo de romance de aventuras, em que o insólito e o burlesco constituem elementos estruturantes da narrativa.
Convirá ainda referir que esta colectânea inclui três outros contos, sendo um deles o famoso “Pássaros”, que serviu de inspiração a Hitchcock, para realizar o filme do mesmo nome.
Para terminar, um voto: que estas linhas despertem o interesse pela obra, tão esquecida, de Daphne du Maurier e levem à leitura dos seus escritos, ainda tão jovens, tão frescos.

sábado, 17 de janeiro de 2009

ENTRE A REALIDADE E A FICÇÃO



Verdade e ficção de mãos dadas. O livro é a história da vida e morte de S. que todos sabemos tratar-se de Snu Abecassis, o grande amor de Sá Carneiro que, aliás, morreu com ele no terrível desastre de Camarate. No entanto, S. não é Snu. Miguel não pretendeu fazer uma reportagem. Pretendeu, isso sim, dar um retrato breve do Portugal dos anos 60, atraés de uma estrangeira que aqui desembarca por amor, que se desilude e que encontra o fogo do amor maior.

É belíssima a técnica de Miguel Real que consegue com rara elegância fazer um exercício difícil: pegar a história de Snu Abecassis, manter uma narração próxima da verdade apenas nos minutos que antecedem a queda do avião com Sá Carneiro, e desenhar uma poderosa figura feminina ancorada na realidade mas desenhada na ficção, uma nórdica, educada para ser emancipada e o seu choque com o Portugal salazarista e a riquíssima família judia do marido.

A magnífica escrita barroca e excessiva de Miguel Real aparece aqui um pouco vigiada já que que o tempo histórico talvez fosse dado a um tom menor. E também porque o balanço entre realidade e ficção requereria um cuidado grande para que a narrativa surja credível (com algo de reportagem televisiva, quase) sem deixar de fazer um belo mergulho na alma humana nomeadamente na forma elegante e incisiva como trata a sensualidade de S.

Um momento tocou-me especialmente: o embarque dos soldados para África, narrativa certeira e pungente, retrato duro de um país atrasado e grosseiro e metido entre baias como gado para o matadouro.

No geral, o trabalho do Miguel Real é particularmwente louvável, escapando muito bem às duas grandes armadilhas previsíveis de um projecto como este e que eram, uma, a de se agarrar demasiado á verdade, outra, de se afastar completamente, criando uma ficção que apenas se sustentaria no nome de Snu apenas por critérios comerciais.

A MORTALIDADE DOS IMORTAIS




Falava-se da mortalidade dos imortais e citava-se um artigo surgido no “Ipsilon”, suplemento de artes, letras e outras coisas mais de “O Público”, no qual se profetizava que, daqui a 200 anos, ninguém se lembrará do “Memorial do Convento” de Saramago. Eu não concordei, não pelas razões que os meus jovens interlocutores supunham, mas por considerar que 200 anos era uma eternidade. E recordei-lhes um dos casos mais impressionantes que conheço: o caso de Gabriel D’Annunzio, escritor italiano de finais do século XIX, primeiras décadas de XX. D’Annunzio, o escritor-ídolo da geração da minha mãe, que desencadeou paixões e provocou escândalo pela ousadia inconveniente da sua escrita. O D’Annunzio de “O Fogo”, êxito estrondoso em toda a Europa Ocidental. O fogo do lirismo pós-romântico, que incendiou a sensualidade recalcada de uma geração – um fogo há muito extinto. E não foram precisos 200 anos, 20 magros anos após a sua morte (ocorrida em 1938) foram mais do que suficientes.
Se voltarmos às letras portuguesas, alguém será capaz de prever o que ficará do que agora se publica, se lê, se valoriza? Um dos interlocutores do grupo em que me encontrava afirmou: “Que o Pessoa fica, disso não tenho dúvidas!” Na verdade, nem isso me parece tão seguro. Algum Pessoa ficará, sem dúvida, mas outro… Não lhe disse, mas, claro, estava a pensar na “Mensagem”, obra muito marcada pelas circunstâncias em que foi escrita. E recordei, recordei àqueles jovens amigos com quem dialogava, o que corria quando eu comecei a interessar-me pela coisa literária, ainda nos anos quarenta. Três nomes eram considerados incontornáveis na história da nossa poesia: Camões, Bocage e Antero de Quental. Antero, logo seguido por Gerra Junqueiro. Quem, hoje em dia, poderá colocar nesse pedestal o Antero ou o Junqueiro?
Muitos são os factores que fazem catapultar para a ribalta determinados nomes, em detrimento de outros (por vezes, por razões que não são facilmente explicáveis). E menos explicáveis serão, ainda, as que levam ao seu esquecimento. O que é igualmente verdade para os casos de reconhecimento posterior daqueles que não tiveram essa oportunidade em vida. Em parte, foi o que aconteceu com Mário de Sá-Carneiro: considerado, durante muito tempo, como um poeta “excêntrico”, perdido numa busca insana de inovação, Sá-Carneiro acabou por ser colocado em lugar cimeiro, na nossa poesia do século XX. Talvez porque tenha “adivinhado” algo de essencial à nossa modernidade (ou talvez porque a sua ligação com Fernando Pessoa tenha originado uma espécie de efeito carambola).
Outros há que continuam no mais profundo dos esquecimentos em que mergulharam logo após o seu desaparecimento. Entre eles, avulta, no caso da prosa, Joaquim Paço D’Arcos, romancista menor, admitamos, mas contista excepcional, da estirpe de um Sommerset Maugham. Nem a publicação integral dos seus contos e novelas, pelas Publicações Europa-América, parece tê-lo retirado do limbo em que caiu.
Mas ainda há os que (Cesário Verde e Camilo Pessanha, por exemplo), após terem sido redescobertos, voltaram a sumir-se – até quando? Como estivessem sujeitos a uma lei “natural” de ciclos que se vão sucedendo (e repetindo).
Moral da história: todos os imortais são mortais, pelo menos enquanto a asa da ressurreição não os resgatar da noite da não-existência.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Rebeldes

Depois de ler fascinado As velas ardem até o fim, A herança de Eszter, e sobretudo o magnífico, A mulher certa, não fiquei indiferente a este novo título em português de Sándor Márai, autor húngaro, tão brilhante quanto enigmático.

A conturbada passagem da adolescência para a vida adulta de um grupo de jovens é o tema forte deste inquietante livro. Se por um lado a temática é claramente universal, o contexto onde a trama se desenrola é particularmente relevante na peremptória recusa destes jovens em aceitar a transição para o mundo dos adultos. De facto, mesmo que o auto-intitulado "bando" de jovens viva numa pequena cidade, algo isolada da Primeira Guerra Mundial que se desenvolve não muito longe dali, a decorrente destruição humana, material e de valores, assim como a esperada decomposição do Império Austro-Húngaro, sempre acaba por afecta-los. A ausência da autoridade paterna e circunstâncias familiares algo particulares deixam estes jovens completamente livres para desenvolverer uma actividade incongruente e liquidar o património das suas famílias. Esta bizarria é naturalmente menor quando comparada com a monstruosidade de uma guerra que ceifa milhões de vidas, mas Sándor Márai não é um autor que apresenta dicotomias fáceis e, claramente, não pretende enaltecer o romantismo dos ideais da juventude, pois o "bando" é inevitavelmente um microcosmo do mundo circundante. Há no seu seio contradições, hipocrisias e uma estrutura de classes, ainda que esta seja negada nas suas práticas quotidianas. E é finalmente esta estrutura de classes que leva à dissolução do "bando": um membro do grupo, pertencente à classe humilde, acaba por enredar os seus companheiros, e em particular o líder do grupo, numa trama de sedução envolvendo um actor de província. Porém, esta é, nas suas palavras, uma traição natural, dado que a si estava vetado poder desfrutar a vida como os ricos, ainda que isto nada tivesse a ver com a riqueza. Na verdade, este é um tema recorrente na obra de Sándor Márai, dado ter ficado profundamente marcado com a experiência, na Hungria do pós Segunda Guerra Mundial, da intolerante destruição, pelo comunismo de inspiração estalinista, do património cultural universal que estava sob a custódia da antiga classe dominante.

Mas se esses são elementos mais que suficientes para um grande livro, Sándor Márai não nos deixa de também maravilhar com reflexões de membros do "bando" sobre o acto de escrever e sobre a amizade. Termino com dois exemplos que considero magníficos:
"Começara a ler há dois anos. Lia, desordenadamente, tudo que lhe caía nas mãos. Um dia, escreveu qualquer coisa. Tinha quinze anos. Ao ver o que tinha escrito, assustou-se e escondeu o papel na gaveta. No dia seguinte, tirou-o e leu. Não era poesia, mas também não lhe parecia prosa. Assustou-se e rasgou-o. Este susto persistiu durante alguns dias. Ao tempo, ainda vivia "no mundo de cá". Não conseguiu falar com ninguém. O que era aquilo? Porque escrevera? O que significa alguém pegar numa caneta e pôr-se a escrever? E encontrar-se diante de algumas linhas limpas e acabadas. Porque o fizera? Assim escreviam também os escritores?"

E um pouco mais adiante:
"Havia um qualquer segredo por detrás dos livros, não era tanto o que diziam, antes a razão de alguém ter escrita aquelas linhas. Sobre isso, não tinha com quem falar. De vez em quando, tentava com Ernó, mas Ernó falava sempre de outra coisa. Falava do "conteúdo" dos livros. Ele sabia que isso tinha uma importância secundária. Teria que descobrir por que motivo se faziam livros. Seriam fonte de alegria para quem escrevia o que pensava? Ele sentia serem, antes, uma fonte de sofrimento. O que se escrevia, perdia-se, nada mais tinha de comum com a pessoa, trasformava-a numa recordação penosa, semelhante à de um crime, em virtude do qual - um dia, mais tarde - se poderia ser sempre responsabilizado."

E sobre a amizade:
"Alguém sorri, irresponsável, uma vez, e atolamo-nos logo nessa amizade. Ele não sabe que amizade é essa. Imaginara amigos de outro modo; por amigos entendia um passeio leve e sereno, uma simpatia sem compromisso, que não obrigasse a mais nada. Caminha-se lado a lado, trocam-se umas ideias... E agora, pela primeira vez, pensava que poderia existir entre as pessoas um gancho pesado e impossível de soltar, passível de ser rompido somente à custa de graves ferimentos."

E pouco depois:
"Quem sabe se estarei vivo e poderei, um dia, escrever alguma coisa. Escrever também é doloroso, mas não dói tanto como viver entre pessoas."

Orfeu B.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

O NOSSO LUGAR



"O que leio e ensino guia-se por três critérios somente : o fulgor estético, a força intelectual e a sabedoria. As pressões sociais e as modas jornalísticas podem obscurecer estes critérios durante algum tempo, mas as obras conjunturais nunca perduram. O espírito regressa sempre às suas exigências de beleza, de verdade e inteligência. A mortalidade paira, e todos nós aprendemos o triunfo do tempo. Temos um intervalo, e depoiso nosso lugar deixa de nos conhecer."


Harold Bloom, "Onde está a sabedoria?"

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

ERA NO TEMPO DO REI




Uma graça. Muito divertido. Um entretenimento de muita qualidade. Na linha de um outro romance muito divertido, “Memórias de um sargento de milícias” de Manuel António de Almeida, do início do séc. XIX, a quem toma a figura do Sargento Leonardo para lhe contar a infância no Rio de Janeiro da Corte de D. João VI quando se torna companheiro de tropelias do Infante D. Pedro.

Romance pícaro, ligeiro mas bem trabalhado, quer na linguagem quer no retrato do mundo popular e marginal do Rio, quer no da Corte e se debatem as contradições entre D. João VI e a Rainha Carlota Joaquina.

É curiosa a visão que o autor dá de D. João VI, homem bondoso, mas homem de Estado com visão sobre o que vai pelo xadrez das relações internacionais da época, tão diferente daquele imagem bacoca, imbecilizada do monarca que tanto tempo predominou num certo imaginário popular.

Carlota Joaquina é uma desavergonhada, ambiciosa, capaz de meter toda a gente na cama e de conspirar com todos contra o marido (de que dá retrato de louco) no fito de vir a ser Regente de Espanha e Portugal.

D. Pedro é o valente herói brasileiro, brigão, atrevido e namoradeiro. Mas é mais do que isso. É o retrato de um príncipe carregado de nobreza e verticalidade, qualidades que nos fazem cada mais falta. A todos nós.

D. Miguel é um menino da mamã, um rapzito moralmente mal aviado, intelectualmente menor, sem a chispa nem a dignidade do irmão (meio-irmão sendo verdade que o seu pai seria o jardineiro do Ramalhão em Sintra). E parece que o retrato rima bem com ó papel que veio a desempenhar na nossa História.

O Rio de então anuncia o de hoje. Miséria e riqueza excessiva. Ouro e fome. Malandros, ladrões, piratas, no meio de uma natureza fabulosa. E envolvendo a cidade periodicamente essa respiração incrível que se chama Carnaval.

Foi o meu último romance do ano que assim acabou bem.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

AS AVÓS DO INCESTO QUASE POSSÍVEL




Doris Lessing, Prémio Nobel da Literatura em 2007, tem vários livros traduzidos em edições portuguesas. De entre eles, destacarei “As Avós e Outros Contos” (Editorial Presença). Por ser um bom livro, bem traduzido e… por ser um livro de contos! Na verdade, não sei se todos esses “contos” se poderão considerar contos, pois a sua extensão e, principalmente, a organização interna de alguns deles aproxima-os mais do género novelístico do que do contístico.
Embora tenha lido alguns trabalhos (tanto em português, como em francês) sobre a distinção entre esses dois géneros, nunca cheguei a uma conclusão muito precisa. Creio que é um “problema” que afecta intelectuais (e académicos) franceses e portugueses, e que nunca preocupou grandemente os seus congéneres de outros países. Por isso, acabei por optar por seguir uma norma muito simples: será conto o que o autor considerar como tal. Norma que não se pode aplicar a esta obra de Doris Lessing, visto a autora a ter apelidado “The Grandmothers”, simplesmente - o que me “obrigou” a reflectir sobre o assunto… A obra, de 274 páginas, é composta por quatro histórias, a última das quais, “Um Filho do Amor”, estende-se por 103 páginas. É uma história longa e complexa, envolvendo várias personagens e situações que ocorrem numa unidade temporal prolongada, com caracterizações várias e diferenciadas dos estados psicológicos dos intervenientes na acção. Por tudo isso, preferia considerá-la uma novela.
Mas, mais importante do que estas destrinças, é o conteúdo narrativo do texto, ou seja, a saga da personagem principal ao longo de dezenas de anos e a sua inserção em diferentes contextos geográficos, humanos e sociais. Uma história que parece dever algo a Somerset Maugham e à sua predilecção pelas vivências e pelos lugares exóticos do Império Britânico. Enfim, uma história notável, com um ritmo intenso, que se lê de um fôlego.
Diferente é a primeira história do livro, a que dá nome à obra: “As Avós”. Uma história deliciosa, que trata de um modo subtil um tema difícil: o incesto. Neste caso, o falso incesto (do ponto de vista biológico e legal), mas não menos incestuoso para as personagens que o vivenciam. A delicadeza das discrições, a finura das observações, a sensibilidade de que a linguagem está impregnada fazem deste texto uma referência obrigatória no estudo do conto (da novela?) da moderna literatura inglesa.
Albano Estrela