sábado, 27 de abril de 2013

MEMÓRIA DOCE E VIBRANTE





È uma obra muito interessante este livro de Memórias da Eugénio Lisboa, (Acta Est Fabula, Memórias I - Lourenço Marques, 1930 – 1947. Guimarães, Opera Omnia, 2012), dedicado tão sentidamente à cidade de Lourenço Marques que chega a agradecer-lhe o «ter existido para eu ter podido nascer nela», como diz no fim dos iniciais “Agradecimentos”. Chegado a uma certa idade, como diz Eugénio Lisboa, sentiu uma vontade irresistível de escrever as suas memórias mais recuadas, para seu gosto pessoal, pelo puro prazer de o fazer e sem outros intuitos que este seu deleite, considerando, por isso, que poucos ou nenhuns se interessarão por este trabalho. Penso que se engana. Primeiro, porque é difícil ceder às memórias quando elas, com o tempo, se vão decantando, ganhando tanta nitidez que têm que se expressar de alguma maneira, de tal modo sentimos que, nelas, está mais do que a nossa vida, somos nós mesmo que pelas memórias se redime de qualquer coisa que toda a vida nos apelou, mas que acaba quase sempre por nos escapar. E, portanto, o sentimento que o levou a revivê-las será compreendido por todos os que passaram uma certa etapa da vida, e isso é já uma boa razão. E em segundo lugar, porque elas acabam frequentemente por ser muito mais do que simples revivências pessoais, como é manifestamente o caso. Todos terão as suas, importantes e de muito interesse para a vida de cada um, mas algumas adquirem valor maior, ou pela riqueza própria ou pelo modo como são contadas. De facto, há muitos livros de memórias, mas mais do que o valor delas para o próprio, interessa a qualidade que alcancem. Felizes os que são capazes de as traduzir em formas de beleza ou de interesse suficiente para proveito próprio e alheio.

É certo que não se sente uma grande preocupação formal em Eugénio Lisboa, mas, mesmo que aqui e ali sejam algo coloquiais, (em expressões a propósito, diga-se) sempre prevalece a qualidade e a riqueza a que nos habituou, o seu estilo rico, dinâmico, enredado e cativante. E que acaba por casar muito bem com o que nos quer contar, ganhando assim uma segunda razão a publicação delas. É que as suas memórias são vivas, sentidas, luminosas, quentes, por um lado, e, por outro, cheias de referências que, só por si, são motivo de meditação nos tempos que correm, além de poderem servir de proveito e exemplo para muitos distraídos.



Há um primeiro aspeto que vale a pena referir. Eu não vivi na Lourenço Marques daqueles tempo, (nem depois; nunca lá estive) mas consegui sentir e “ver”muito daquilo que nos relata: o clima, as cores, os cheiros, os mercados indígenas, o Índico e suas praias, os baldios do futebol, os dias imensos das férias, em suma, essa sedução de África, que sentiram todos os que por lá passaram, ou lá nasceram, e que lhes ficou para sempre na alma. Assistimos, por outro lado, ao seu despertar para a vida, ao nascimento da sua consciência crítica, às primeiras evidências da estratificação social, que ele (e família) sentiram, pertencentes a um estatuto algo ambíguo entre os africanos do musseque e os brancos da Polana, entre o povo e os snobs, sentindo-se por isso um pouco estrangeiro entre os meninos do liceu, algo tolerado pela sua modéstia económica. Mas honrado e demasiado inteligente para ouvir o ímpeto da sua vontade e perceber a sua superioridade em relação a quase todos os colegas. Capaz, portanto, de desenvolver a força do seu sonho de futuro, intelectual, cultural e científico, numa Europa longínqua e então mítica, empolgado pela ideia de uma missão muito pessoal, embora indefinível, coisa corrente entre os adolescentes mais dotados. Assim, a sua condição de branco com poucas posses, vivendo longe da zona fina da cidade, acabou por lhe proporcionar a sorte de uma multiculturalidade, intercultural e transcultural, digamos assim, com todos os ingredientes de uma formação vivida, e estruturante, porque sem ressentimentos nem invejas, que a própria inteligência e sucesso escolar impedem, proporcionando, ao mesmo tempo, a capacidade de tirar dos dois lados o melhor que cada um tinha e assim superar a ambos.

Mais interessante ainda é acompanharmos o itinerário humano e cultural de Eugénio Lisboa, até pelo grande ensinamento para hoje. Sobretudo seguir a galeria das suas personagens e a ordem de aparecimento dos autores da sua formação, e que, para sempre, lhe serviram de referência. Os personagens, para além de alguns familiares, que ele fotografa bastante bem em ângulos afetivos e críticos, os exóticos ou típicos, aqueles que habitam a nossa juventude e que, ao fim de muitos anos, nos parecem quase irreais, como se nunca tivessem existido. Mas também, e sobretudo, a galeria dos seus professores. O rigor com que os descreve, mas de um modo muito humano e compreensivo chega a ser comovedor. E mostra-nos, - como se o não soubéssemos ainda – como os grandes professores marcam a nossa vida de uma maneira indelével e são os esteios de muito do que de bom e de valioso podemos vir a ser mais tarde. Há ali páginas muito belas, de ternura e agradecimento para alguns dos seus melhores professores da instrução primário e do liceu. E também outras muito críticas para com os maus, os balofos e os pérfidos, que também os havia, como se sabe.

Finalmente, é muito interessante seguir a descrição que nos faz do seu itinerário literário, o gosto pelos livros e o pouco dinheiro para os comprar, o “namoro” das montras das livrarias, a “Minerva Central”, a “Progresso” (ah, como eu o compreendo!) o aparecimento dos autores e as marcas que iam deixando numa personalidade em formação: Herculano, Garrett, Júlio Dinis, e depois e sobretudo Stendhal, e a perturbação dos americanos, Mark Twain, Hemingway, Faulkner, Sorayan e de novo os europeus, Óscar Wilde, Gide, Proust, Roger Martin du Gard, George Eliot, Dickens, Charlotte Brontë, e José Régio, claro! E doutros mais ligeiros, (por que não?) algum Emílio Salgari, Júlio Verne, Condessa de Segür, etc. E sempre novos autores, novas experiências e a consciência crescente desse campo riquíssimo, contraditório e inesgotável que é a grande literatura. Eugénio Lisboa levou-me a sentir de novo, embora por outras paragens e a uma geração de distância, a sedução dos autores, o cheiro dos livros, certas palavras mágicas como “Portugália Editora”, “Editorial Gleba”, “Livros do Brasil”,“Editorial Inquérito”, “Romances Universais” e a perturbação de certas obras, a experiência funda e fecunda que causam numa personalidade em formação.
Por tudo isto é muito interessante ver como ele reconhece a importância determinante que os grandes autores tiveram na sua formação. Pudera! Todo o livro é a veemente afirmação disso. Cito, a propósito (p. 142): «O 6º ano do liceu começou, como de costume, em Setembro (de 1945). Encontrava-me mais forte, mais desenvolto. Ter passado incólume pelas tragédias de O’Neill tinha-me fortalecido. “Atravessar” aquilo, sem ficar chamuscado, pelo contrário, sentir que algo dentro de mim se “lavara” e me purificara e fortalecia - dava-me uma sensação de confiança e de força». “Diz-me o que lês (ou leste) dir-te-ei quem és”, é uma das maiores verdades que se pode dizer sobre educação e formação em geral. Estranho é que haja gente, com responsabilidades educativas, que não o saiba. A profundidade humana, a riqueza e a complexidade das pessoas e das situações, os dramas, a experiência condensada que proporcionam, a libertação pela imaginação, a fruição da beleza e a plenitude que as grandes obras proporcionam, como é que se pode formar um ser humano sem tudo isto? E como é que esta riqueza inesgotável e esta experiência se podem substituir por resumos, súmulas, sinopses e outros miseráveis sucedâneos que por aí andam? E que até podem dar para tirar boas notas, mas que deixam pelo caminho seres planos, sem profundidade nem densidade, eternamente “inocentes”, mas convencidos, imaturos mas desde logo cediços, e acima de tudo indiferentes à beleza e sem perceberem o tudo que perdem. Nada substitui a leitura dos grandes mestres, como é possível que tanta gente “responsável” o não saiba e o não pratique? Como é possível que no nosso ensino se estejam a substituir os grandes autores pelos simulacros?

João Boavida

sábado, 13 de abril de 2013

POESIA - UM RESUMO



Já não é o primeiro ano em que a FNAC edita uma colecânea de poesia publicada no ano anterior e escolhida quatro poetas de diferentes gerações e diferentes gostos, imagino: Armando Silva Carvalho, José Alberto Oliveira, Luís Miguel Queirós, Manuel De Freitas

É o resumo do ano e se não estou em erro este tipo de antologia era feita também no início dos anos 70. Só não recordo quem a editava nem quem eram os antologiadore (talvez o Egito Gonçalves entre outros).

Uma antologia é um material precioso pelo que escolhe tanto quanto pelo que exclui. Neste "RESUMO" estão presentes cânones próximos, caminhos não excessivamente divergentes, vozes de alguma forma consonantes no trabalho poético que se afasta da metáfora, talvez até nalguns casos da própria dimensão estética, para privilegiar poemas que mergulham sobretudo na circunstância, no momento, no pequeno acontecimento que ganha inesperada proeminência pela própria escrita poética.

Devo dizer que adoro antologias. São um material de trabalho excelente. Ficam sempre como pontos de referência pelo que escolhem e pelo que excluem.

Neste "RESUMO" podemos ter uma ideia de quem são alguns dos poetas mais jovens em acção e como se cruzam ou não com outras gerações e outros caminhos.

A poesia portuguesa precisa destas publicações. E doutras a partir de outros cânones. Por que a poesia é feita de caminhos diversos que se tornam significativos na confrontação de vozes e silêncios, de éticas e estéticas, da relação mais próxima ou mais longínqua com aquilo a que se possa chamar público.

Hoje muita da mais jovem poesia vagueia pela net e por pequeníssimas edições. Para que não aconteça aquilo de que Alexandre O'Neill falava num poema que era:

"Quem nos lê a nós? São vocês.
Quem vos lê a vocês? Somos nós.
por isso fica tudo entre nós entre nós."