terça-feira, 29 de maio de 2012

UM HUMOR PORTUGUÊS



O Mário Zambujal será talvez um dos últimos herdeiros de uma Lisboa da boémia nocturna de jornalistas, actores, escritores… 

Uma Lisboa que tem a sua mitologia, o seu role de pequenas e grandes histórias, anedotas, pequenas tragédias, grandes amores, o seu rosário de figurões inesquecíveis, gente do melhor e do pior que, a pouco e pouco,  se vai apagando a pouco e pouco da memória colectiva. Uma Lisboa que tem a sua língua e a sua forma de fazer humor.

Este humor vem de um trabalho por vezes brilhante sobre a palavra e a sua ambiguidade. É um humor que estende  e se espraia no prazer de enovelar e desenovelar a língua, o verbo, o adjectivo. Não é o humor curto e rápido  dos anglo-saxónicos.

Seria inútil  pôr Vasco Santana a fazer stand up comedy.  E quem diz Vasco Santana  diz Henrique Viana, António Silva, Raúl Solnado e tantos outros. 

O stand up comedy é para mastigar e deitar fora. O humor português tradicional é para passar de boca em boca. “Ó Evaristo tens cá disto?”, “Tira a mão da popelina!”, “É regar e pôr ao luar!” são frase que ficaram a passear pela boca de tantos de nós durante anos, usadas em contextos muito diversos, e que mereciam e continuam a merecer uma gargalhada ou pelo menos um sorriso aberto...

Muita da obra do Mário Zambujal não chegou a ser escrita. Foi lançada aos 4 ventos à mesa do almoço ou do jantar, pela tarde ou pela noite dentro, oferecida a quem o acompanhava na circunstância e nalgumas dessas circunstâncias tive o prazer enorme de ser um dos privilegiados companheiros.

A “Dama de espadas” é uma história de amor e dos equívocos do amor, embrulhada num belo humor lisboeta. Ou á portuguesa, conforme se quiser. 

Tudo nos é dado sem complicações, com a simplicidade (tão difícil por vezes de conseguir) de quem sabe bem contar a sua história e limpar a narração dos empecilhos que a desviam do fundamental.

Simples, rápido, direito ao fim. Cheio de humor e ironia. Como mandam as regras. Ou mandavam.



sábado, 26 de maio de 2012

A ARTE DO DIÁLOGO


Há quem considere a literatura policial uma literatura menor. No entanto, o romance policial só é menor quando é menor, mas é maior quando é maior. Coisa de La palisse. Mas não tão discipiente como isso.

Temos um mistério ou um crime, a descrição do ambiente humano, social, geográfico onde esse mistério ou o crime se deu. A busca das motivações, o mergulho na procura das personalidades, dos seus rituais e dos seus desvarios.

As editoras mais atentas às coisas boas dos livros fazem-nos o mimo de nos oferecer autores menos conhecidos ou até desconhecidos. É o caso dos 3 romances deste autor policial americano publicados discretamente pela Cotovia.

Depois de terem desaparecido das livrarias estão agora nas prateleiras dos policiais nas Bertrands.

Li os três e peço aos editores que continuem a publicar este autor de quem aliás já aqui falei. Eu comprometo-me a fazer propaganda para arranjar mais leitores.

Mathew Scudder, o detective, ex-polícia, sem escritório, alcoólico que não bebe e frequenta quase diariamente as salas dos alcoólicos anónimos, aceita, a pedido do pai, procurar uma jovem desaparecida sem deixar sinais. Nada garante que lhe tenha acontecido alguma coisa. Simplesmente desapareceu como só é possível na vastidão de um país como os EUA.

O que é fantástico é que em 80 ou 90% do livro não acontece quase nada. Scudder procura pela jovem com pouca convicção, torna-se namorado da sua ex-porteira/senhoria, procura saber a razão da morte de um companheiro miserável das sala de AA's, conversa horas a fim com um gangster assustador e perigosíssimo.

Block domina de forma brilhante a arte do diálogo. Recorta situações, sugere dramas, faz-nos adivinhar entre sussurros e frases meio ditas o que pode estar por trás da cortina da vida de gente que vive nas margens da grande Nova York.

O leitor segue esse percurso errante por bares e apartamentos, por ruas e noites, com um interesse crescente como se houvesse um extraordinário mistério a desenrolar-se à sua frente.

E, o que é mais curioso, é que, quando Scudder, quase inesperadamente, resolve o mistério do desaparecimento e assassinato da jovem procurada pelo pai, o leitor fica danado, porque esse final acaba por lhe roubar o fantástico fluir dessa longa vagabundagem que constitui a alma do livro.




domingo, 20 de maio de 2012

UM ÉTICA DA RELAÇÃO ENTRE A ESCRITA E O REAL



Já aqui disse e repito que os meus amigos são os melhores escritores do mundo. Tenho direito a dizê-lo. Sou excessivo. Sou preconceituoso. Sou apaixonado.  O que não me impede de falar aqui apenas dos livros de que gosto e que me parece terem muito para que os possa propor a outras pessoas.

Neste caso apenas posso dar azo ao júbilo por ter lido um excelente romance de um excelente amigo onde e torna comovente a humanidade que transpira em cada linha.

Acalmem-se, no entanto, os que tremem de medo à mínima suspeita de se estar na presença de mais um livro “infectado” pelo terrível Realismo Mágico.

“A confissão da leoa” é um romance duro, denso, inquietante, corajoso. Não facilita. Tendo como pano de fundo um acontecimento real testemunhado em parte pelo escritor. Trabalha sobre o fio complexo da mitologia e das crenças ancestrais para  revelar a violência em que assenta o domínio masculino sobre as mulheres numa aldeia do Norte de Moçambique.

A narrativa de “A confissão da leoa” resulta do cruzamento de duas vozes. A de Mariamar, vítima da violência masculina, e a do caçador de leões, ou de leoas, o homem que vai fazer a última caçada da sua vida e que procura desesperadamente o amor, o verdadeiro amor. E talvez haja uma terceira voz, disfarçada mas presente, a do próprio escritor, apenas referido em pequenas citações como se estivesse completamente fora da acção.

A história desenvolve-se como uma espécie de cebola que se vai descascando e mostrando que a realidade é feita de camadas que, retiradas, vão revelando sucessivos dados novos, novos pontos de vista, nova luz sobre acontecimentos muito escondidos numa sopa final onde convergem preconceitos, tradições, mitologias diversas, medos ancestrais.

O Mia conteve-se aqui em relação à sua encantadora invenção vocabular para se centrar na complexidade das personagens e no entrançado de real e irreal, sonho e pesadelo, verdade e ficção

A prosa envolve-nos, agarra-nos, seduz-nos, engana-nos, desvenda-nos estranhos caminhos, na busca de uma estética e de uma ética da relação da escrita com a real… Enfim, tudo  o que se pede a um grande romance.


quarta-feira, 9 de maio de 2012

INTRODUÇÃO À HISTÓRIA - UMA OBRA SEM PONTO FINAL DE MARC BLOCH







Este último ano teve, sem dúvida, uma leitura que me marcou. Não se trata de ficção, romance ou conto. O título do livro diz tudo: “Introdução à História”. Com um nome tão direto e quase cru, direcionado para um área tão específica do saber, o mais provável é não despertar um interesse generalizado, e até parecer estranho ser aqui referida. Este título, quase quadrado, esconde um conteúdo único muito eclético. O próprio livro e o autor têm uma história para além da história, da história que pretendem querer introduzir. Esta obra de Marc Bloch - importante historiador medieval do século XX – tem a sua própria história, escrita num dos períodos mais negros da história do século XX. Nesse labor, do conhecido historiador, é dado o passo para uma “nova história”, termo que a própria história registará como nova abordagem ao estudo e análise da própria história enquanto ciência.
Marc Bloch, neste, como em mais escritos da sua autoria, e em consonância com outros companheiros historiadores do seu tempo que seguiam a mesma tendência, quis mudar o modo como se contava, registava e fazia história – a historiografia não seria mais a mesma. Queria que a história deixasse de abordar e tratar apenas os grandes feitos, os grandes líderes, as grandes coisas. Queria que a história passasse a estudar toda a sociedade, também os pequenos feitos, os indivíduos comuns, a sociedade no seu todo, algo que nos fizesse aproximar mais do passado, com uma visão apropriada ao Homem real. Bloch queria que na história passasse a constar o todo, e não o particular que alguém decidiu destacar no passado, por razões várias. Bloch defendia que a história devia ser mais um exercício de reflexão e criação que propriamente de acumulação acrítica de conhecimento passado. Esta nova forma de ver o passado foi revolucionária para a História, e tem hoje claras influências na sociedade contemporânea. Emancipou o Homem na história, e permitiu que o estudo da história fosse dinâmico e passível de novas construções para o presente e futuro. Fez com que a história se relacionasse com as outras ciências de um modo pluridisciplinar e fosse uma das bases de planeamento para o futuro.
“Introdução a História” é uma obra inacabada, Marc Bloch nunca a terminou… Não lhe permitiram dar o ponto final no seu magistral trabalho. Muito mais haveria para escrever, tal como o próprio autor planeara. Marc Bloch foi fuzilado em 1944. Bloch era judeu, tinha sido soldado na primeira Guerra Mundial, e quando a França fora ocupada pelos Nazis abandonou o mundo académico e alistou-se na Resistência Francesa. Durante a Guerra foi capturado, torturado pela Gestapo, e executado por ordens de Klaus Barbie, o conhecido oficial das SS e da dirigente da Gestapo.
Da obra inacabada surgiu a oportunidade de fazer jus ao autor e continuar o seu trabalho. Muitos historiadores o fizeram, muitos continuaram a fazer história, abraçando-a como “nova”. Por ironia do acaso, e do papel que o próprio Marc Bloch deixou na história, hoje temos todos ao nosso dispor uma obra inacabada para continuar a escrever a nossa história.

Micael Sousa
Leitor Convidado: Micael Sousa é engenheiro Civil, Técnico Superior de HST, Mestre em Energia e Ambiente e também vagueante mas apaixonado de uma licenciatura em História.Leitor e cidadão convicto. Mantém entre outros o blogue "A Busca pela Sabedoria": http://abuscapelasabedoria.blogspot.pt/. É activista do Movimento Anti-Corrupção: http://movimentoanti-corrupcao.blogspot.pt/.