domingo, 28 de dezembro de 2014

Ultimatum

Mandado de despejo aos mandarins da Europa! Fora.
Fora tu , Anatole France , Epicuro de farmacopeia homeopática, tenia-Jaurès do Ancien Régime, salada de Renan-Flaubert em loiça do século dezassete, falsificada!
Fora tu, Maurice Barrès, feminista da Acção, Châteaubriand de paredes nuas, alcoviteiro de palco da pátria de cartaz, bolor da Lorena, algibebe dos mortos dos outros, vestindo do seu comércio!
Fora tu, Bourget das almas, lamparineiro das partículas alheias, psicólogo de tampa de brasão, reles snob plebeu, sublinhando a régua de lascas os mandamentos da lei da Igreja!
Fora tu, mercadoria Kipling, homem-prático do verso, imperialista das sucatas, épico para Majuba e Colenso, Empire-Day do calão das fardas, tramp-steamer da baixa imortalidade! Fora! Fora!
Fora tu, George Bernard Shaw, vegeteriano do paradoxo, charlatão da sin- ceridade, tumor frio do ibsenismo, arranjista da intelectualidade inesperada, Kilkenny-Cat de ti próprio, Irish Melody calvinista com letra da Origem das Espécies!
Fora tu, H. G. Wells, ideativo de gesso, saca-rolhas de papelão para a garrafa da Complexidade !
Fora tu, G. K. Chesterton, cristianismo para uso de prestidigitadores, barril de cerveja ao pé do altar, adiposidade da dialéctica cockney com o horror ao sabão influindo na limpeza dos raciocínios!
Fora tu, Yeats da céltica bruma à roda de poste sem indicações, saco de podres que veio à praia do naufrágio do simbolismo inglês!
Fora ! Fora !
Fora tu, Rapagnetta-Annunzio, banalidade em caracteres gregos, «D. Juan em Patmos» (solo de trombone)!
E tu, Maeterlinck, fogão do Mistério apagado!
E tu, Loti, sopa salgada, fria!
E finalmente tu, Rostand-tand-tand-tand-tand-tand-tand-tand! Fora! Fora! Fora!
E se houver outros que faltem, procurem-nos aí para um canto! Tirem isso tudo da minha frente!
Fora com isso tudo! Fora!
Aí ! Que fazes tu na celebridade, Guilherme Segundo da Alemanha, canhoto maneta do braço esquerdo, Bismarck sem tampa a estorvar o lume?!
Quem és tu, tu da juba socialista, David Lloyd George, bobo de barrete frígio feito de Union Jacks?!
E tu, Venizelos, fatia de Péricles com manteiga, caída no chão de manteiga para baixo?!
E tu, qualquer outro, todos os outros, açorda Briand-Dato-Boselli da in- competência ante os factos, todos os estadistas pão-de-guerra que datam de muito antes da guerra! Todos! todos! todos! Lixo, cisco, choldra provinciana, safardanagem intelectual!
E todos os chefes de estado, incompetentes ao léu, barris de lixo virados pra baixo à porta da Insuficiência da Época!
Tirem isso tudo da minha frente!
Arranjem feixes de palha e ponham-nos a fingir gente que seja outra! Tudo daqui para fora! Tudo daqui para fora!
Ultimatum a eles todos, e a todos os outros que sejam como eles todos! Se não querem sair, fiquem e lavem-se!
Falência geral de tudo por causa de todos ! Falência geral de todos por causa de tudo ! Falência dos povos e dos destinos — falência total! Desfile das nações para o meu Desprezo!
Tu, ambição italiana, cão de colo chamado César!
Tu, «esforço francês», galo depenado com a pele pintada de penas! (Não lhe dêem muita corda senão parte-se!)
Tu organização britânica, com Kitchener no fundo do mar desde o princípio da guerra!
(It’s a long, long way to Tipperary, and a jolly sight longer way to Berlin !) Tu, cultura alemã, Esparta podre com azeite de cristianismo e vinagre de nietzschização, colmeia de lata, transbordeamento imperialóide de servilismo engatado!
Tu, Áustria-súbdita, mistura de sub-raças, batente de porta tipo K!
Tu, Von Bélgica, heróica à força, limpa a mão à parede que foste!
Tu, escravatura russa, Europa de malaios, libertação de mola desoprimida
porque se partiu!
Tu, «imperialimo» espanhol, salero em política, com toureiros de sambenito
nas almas ao voltar da esquina e qualidades guerreiras enterradas em Marrocos !
Tu, Estados Unidos da America, síntese-bastardia da baixa-Europa, alho da aÁorda transatlântica, pronúncia nasal do modernismo inestético!
E tu, Portugal-centavos, resto de Monarquia a apodrecer República, extrema- -unção-enxovalho da Desgraça, colaboração artificial na guerra com vergonhas
naturais em África!
E tu, Brasil «república irmã», blague de Pedro Álvares Cabral, que nem te
queria descobrir!
Ponham-me um pano por cima de tudo isso!
Fechem-me isso à chave e deitem a chave fora!
Onde estão os antigos, as forças, os homens, os guias, os guardas?
Vão aos cemitérios, que hoje são só nomes nas lápides!
Agora a filosophia é o ter morrido Fouillée!
Agora a arte é o ter ficado Rodin!
Agora a literatura é Barrès significar!
Agora a crítica é haver bestas que não chamam besta ao Bourget!
Agora a política é a degeneração gordurosa da organização da incompetência!
Agora a religião é o catolicismo militante dos taberneiros da fé, o entusiasmo cozinha-franceza dos Maurras de razão-descascada, é a espectaculite dos pragmatistas cristãos, dos intuicionistas católicos, dos ritualistas nirvânicos, angariadores de anúncios para Deus !
Agora é a guerra, jogo do empurra do lado de cá e jogo de porta do lado de lá!
Sufoco de ter só isto à minha volta!
Deixem-me respirar!
Abram todas as janelas !
Abram mais janelas do que todas as janelas que há no mundo!
Abolição total do passado e do futuro como elementos com que se conte, ou em que se pense, nas soluções políticas. Quebra inteira de todas as continuidades.

3. — Abolição do dogma do objectivismo pessoal. — A objectividade é uma média grosseira entre as subjectividades parciais. Se uma sociedade for composta, por ex., de cinco homens, a, b, c, d, e e, a «verdade» ou «objectividade» para essa sociedade será representada por a+b+c+d+e/5

No futuro cada indivíduo deve tender para realizar em si esta média. Tendência, portanto de cada indivíduo, ou, pelo menos, de cada indivíduo superior, a ser uma harmonia entre as subjectividades alheias (das quais a própria faz parte), para assim se aproximar o mais possível daquela Verdade-Infinito, para a qual idealmente tende a série numérica das verdades parciais.

Resultado:
(a) Em política: O domínio apenas do indivíduo ou dos indivíduos que sejam os mais hábeis Realizadores de Médias, desaparecendo por completo o conceito de que a qualquer indivíduo é lícito ter opiniões sobre política (como sobre qualquer outra coisa), pois que só pode ter opiniões o que for Média.(b) Em arte: Abolição do conceito de Expressão, sustituído pelo de Entre- -Expressão. Só o que tiver a consciência plena de estar exprimindo as opiniões de pessoa nenhuma (o que for Média portanto) pode ter alcance.
(c) Em filosofia: Substituição do conceito de Filosofia pelo de Ciência, visto a Ciência ser a Média concreta entre as opiniões filosóficas, verificando-se ser média pelo seu «carácter objectivo», isto é, pela sua adaptação ao «universo exterior» que é a Média das subjectividades. Desaparecimento portanto da
Filosofia em proveito da Ciência. Resultados finais, sintéticos:
(a) Em política: Monarquia Científica, antitradicionalista e anti-hereditária, absolutamente espontânea pelo aparecimento sempre imprevisto do Rei-Média. Relegação do Povo ao seu papel cientificamente natural de mero fixador dos impulsos de momento.
(b) Em arte: Substituição da expressão de uma época por trinta ou quarenta poetas, pela sua expressão por (por ex.), dois poetas cada um com quinze ou vinte personalidades, cada uma das quais seja uma Média entre correntes sociais do momento.
(c) Em filosofia: Integração da filosofia na arte e na ciência; desaparecimento, portanto, da filosofia como metafísica-ciência. Desaparecimento de todas as formas do sentimento religioso (desde o cristianismo ao humanitarismo revolucionário) por não representarem uma Média.
Mas qual o Método, o feitio da operação colectiva que há de organizar, nos homens do futuro, esses resultados? Qual o Método operatório inicial?
O Método sabe-o só a geração por quem grito por quem o cio da Europa se roça contra as paredes ! Se eu soubesse o Método, seria eu-próprio toda essa geração!
Mas eu só vejo o Caminho; não sei onde ele vai ter.
Em todo o caso proclamo a necessidade da vinda da Humanidade dos Engenheiros!
Faço mais: garanto absolutamente a vinda da Humanidade dos Engenheiros! Proclamo, para um futuro próximo, a criação científica dos Super-homens! Proclamo a vinda de uma Humanidade matemática e perfeita!

Proclamo a sua Vinda em altos gritos!
Proclamo a sua Obra em altos gritos! Proclamo-A, sem mais nada, em altos gritos!
E proclamo também: Primeiro:
O Super-homem será, não o mais forte, mas o mais completo! E proclamo também: Segundo:
O Super-homem será, não o mais duro, mas o mais complexo! E proclamo também: Terceiro:
O Super-homem será, não o mais livre, mas o mais harmónico!
Proclamo isto bem alto e bem no auge, na barra do Tejo, de costas para a Europa, braços 
erguidos, fitando o Atlântico e saudando abstractamente o Infinito.


Publicado em Novembro de 1917, no primeiro e único número de Portugal Futurista, este manifesto de Álvaro de Campos é uma reacção ao Manifesto Futurista de Marinetti de 1909, e de outros artísticos que lhe seguiram (o Manifesto Cubista de 1912, o Manifesto Supremacista de Kandinsky de 1915, o Manifesto Dada de Hugo Ball de 1916). O seu título é uma clara alusão ao Ultimatum inglês de 1890 e dá eco aos ideais de independência cultural que esta profunda crise política provocou em Portugal no final do século XIX. O Ultimatum do genial autor do poema da Tabacaria, tenta suscitar o entusiasmo dos criadores de língua portuguesa e lançar um repto ao bafiento e restrito meio artístico da época. As repetidas metáforas relacionadas à comida e a um imaginário antropofágico são a forma estilística mais marcante deste texto que sugere que a superação artística (o desenvolvimento da sensibilidade) exige radicais mudanças de paradigmas sociais, políticos e psíquicos.

É interessante referir que a analogia antropofágica é retomada na língua portuguesa no Manifesto Antropofágico, texto literário escrito por Oswald de Andrade, principal agitador cultural do Modernismo brasileiro. Lido na casa de Mário de Andrade para colegas artistas e escritores em 1928, foi publicado no mesmo ano na Revista de Antropofagia. Neste manifesto, a deglutinação e a digestão da cultura europeia é a fórmula sugerida para dar continuidade ao Modernismo brasileiro iniciado em 1922.                    

Orfeu B.





sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

FAREI O MEU MELHOR




“Um poema não serve para ganhar dinheiro mas serve para reorganizar o mundo”

Cornelius Castoriadis

Como Castoriadis podíamos dizer que o romance, e especialmente o romance em Portugal, não serve para ganhar dinheiro mas serve para reorganizar o mundo.


A verdade é que todos nós somos uma Alice que precisa da chave, da palavra mágica, da pedra filosofal que nos faça atravessar o espelho para nos reencontrarmos do outro lado, mais completos, mais claros, mais pacificados, improvavelmente mais felizes.

Numa sociedade de neurose, de excessivo peso do objecto, uma sociedade dominada por esta economia que mata reduziu a própria arte a uma dimensão de mercadoria, é do lado dessa mesma arte, do lado da literatura, do símbolo, da metáfora, da poesia, que podemos encontrar a chave que nos leve a atravessar o espelho.

Mal iremos sempre que a poesia, o pensamento, a literatura se auto-mutilarem, recusando o diálogo com o mundo e os homens.

Frágil e doente de ultra-romantismo me pareceu sempre a corrente que afirma a independência das artes em relação à espessura da realidade histórica, social ou política,

Um jovem poeta português escreveu há 3 ou 4 anos que:

“Não existe num verso nada de útil à salvação do mundo…”

Contra este ensimesmamento convoco duas vozes.

Jorge Semprún que, ao falar da experiência extrema da sobrevivência num campo de concentração nazi, dizia que

“… uma voz encostada a outra voz pode chegar para manter um ser humano em vida”

E o que é a Lídia Jorge senão uma voz que se encosta às nossas vozes para nos manter verticais e em vida?

Outra voz, a de Czeslaw Milosz, poeta polaco nascido para a poesia no final da 2ª Guerra Mundial, que afirmava com grande veemência no seu poema “Dedicatória”,

“O que é a poesia que não salva
Nações ou pessoas?
Um conluio com mentiras oficiais,
Uma canção de bêbados cujas gargantas serão cortadas num momento,
Leitura para raparigas de liceu.”

(tradução Jorge Gomes Miranda)

Temos em Portugal uma vasta tradição de poetas e escritores cujas vozes e cujas obras são faróis que nos ajudam a pensar e a situar o nosso pensamento perante a sorte dos homens neste estrepitoso rolar do mundo.

Basta citar, entre vários outros, Antero, Torga, Sophia, Carlos Oliveira ou, mais recentemente, Saramago.

Cada um à sua maneira, todos eles se tornaram faróis que por momentos se exilaram da sua própria originalidade, da sua individualidade criadora, ou melhor, que as completaram, chamando a si o fogo da cidadania, oferecendo aos seus concidadãos uma palavra de consolo, um olhar rebelde e independente, uma capacidade de olhar mais largo e mais fundo.

Longa e, por vezes feroz, tem sido desde sempre a discussão à volta do compromisso dos escritores e dos poetas nomeadamente entre os presencistas e os neo-realistas.

A questão continua a pôr-se de outras formas, noutro cenário social e político, noutro tempo.

Muitos dos que se reclamam da mac-felicidade pós-moderna passam gloriosamente por palcos de purpurina escovando dos ombros os mosquitos da cidadania e do compromisso.

Mas a questão continua de pé. Senão oiçamos o poeta irlandês, prémio Nobel, Seamus Heaney

“Se pensarmos em países como a Rússia ou a Polónia, a Espanha até certo ponto, e talvez a Irlanda, em todos eles os poetas são objecto de uma permanente expectativa. Há aí uma tradição da poesia que faz com que os poetas tenham um compromisso com a História e com o país e faz com que haja um espaço no espírito colectivo para o poeta como figura representativa.”

O poeta fala de poetas talvez no sentido estrito. Eu falo de poetas num sentido largo que engloba obviamente a nossa Lídia Jorge, uma mulher que pela sua escrita e pela sua presença cívica afirma de forma tão elegante quanto incisiva um compromisso com a literatura, com o tempo, com o espírito colectivo de uma nação, através da denúncia dos tropeções diversos que a magoam e da necessidade de voltar a construir um dia limpo e pleno de esperança.

Em tempos, há uns 30 anos talvez, dizia-me um destacado músico que, quando não sabia o que fazer ou em que sentido caminhar, olhava para o Zeca Afonso porque era ele o farol, era ele que apontava os caminhos necessários.

Gosto de pensar assim da Lídia, como um farol para onde podemos olhar quando nos perdemo.

"O organista", um pequeno conto e uma grande obra.Um farol paraentendermos que caminhos podem levar muito longe a literatura em língua portuguesa.

Para terminar talvez possa usar as palavras de Helicon quando pergunta a Calígula na peça de Camus:


HELICON
Em que posso eu ajudar-te ?

CALÍGULA
No impossível !

HELICON
Farei então o meu melhor.

E é a isto que a Lídia nos habituou e que nós esperamos dela em cada obra e em cada uma das suas intervenções, que faça o seu melhor, porque precisamos muito desse melhor, da sua verticalidade e da grandeza com que exerce a sua condição excelente de mulher e de poeta.


sábado, 20 de dezembro de 2014

A Mortalidade do Poema Contínuo

Sobre um Poema

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

Herberto Helder


O aparecimento de uma colectânea integral da obra de um grande poeta é sempre motivo de júbilo e celebração. A recente publicação dos Poemas Completos de Herberto Helder não seria excepção, mas ao facto em si há que se adicionar a opção feita, há muito pelo poeta, de viver no anonimato e a implicação implícita de que a sua obra estava encerrada.

Mas o ofício de escrever tem uma lógica própria e um “vício” de muitas décadas não pode, para nossa felicidade, ser completamente silenciado; como um vulcão, o hábito de querer se fazer ouvir, vive longos períodos de dormência até voltar à sua actividade eruptiva quando a pressão magmática aumenta.

Eu julgo que a imagem é particularmente apropriada no que diz respeito a Herberto Helder, um autor inquieto, cuja riqueza e instabilidade biográfica se coaduna com a sua escrita explosiva e visceral.    

O que se conhece do autor de A Colher na Boca (1961), Os Passos em Volta (1963), Húmus (1966), Cinco Canções Lacunares (1968), Photomaton & Vox (1979), A Faca Não Corta o Fogo (2008), Servidões (2013), A Morte sem Mestre (2014) entre outros títulos igualmente essenciais? Que nasceu em 1930 no Funchal no seio de uma família de origem judaica e que passou, inevitavelmente, pelo curso de Direito em Coimbra e que pouco depois se refugiou, também inevitavelmente, na Filologia Românica do curso de Letras da mesma universidade? Que em 1955 frequentou em Lisboa o grupo do Café Gelo, do qual faziam parte Mário Cesariny, Luiz Pacheco, António José Forte, João Vieira e Hélder Macedo e que então trabalhava como propagandista de produtos farmacêuticos? Que … Sim, poderíamos continuar, mas este esboço biográfico, ou talvez qualquer outro mais comprometido e completo, pouco acrescentaria enquanto explicação para a prodigiosa capacidade encantatória da escrita do autor.    

Porque nos ensinou o poeta, aquando da colectânea Ou o Poema Contínuo, que precisamente, a poesia é um fluxo e que enquanto tal não pode ser fixada ou dissecada. Ensinou-nos que o seu entendimento através dos sentidos-sentimentos-razão só pode ser alcançado in vivo, enquanto ela respirar. E talvez mais, que o momento da poesia é o da respiração agonizante do peixe fora d’água, é o instante aquando o sangue perde o seu calor e está ainda vivo, pouco antes de se tornar apenas um fluido inerte.

Sim, a morte interrompe o poeta, com ou sem meios para comprar uma bilha de gás, mas antes do silêncio, há uma centelha magnífica de vida e criatividade através da qual tudo nos é revelado, materializando um generoso vislumbre da solução que explica a galáxia e a pétala.

E depois de desvendada a fórmula, poderemos todos, e poderão os habitantes no futuro, lê-la infinitas vezes para fixar as estrelas ou para torna-las cadentes:

e eu sensível apenas ao papel e à esferográfica:
à mão que me administra a alma


queria fechar-se inteiro num poema
lavrado em língua ao mesmo tempo plana e plena
poema enfim onde coubessem os dez dedos
desde a roca ao fuso
para lá dentro ficar escrito direito e esquerdo
quero eu dizer: todo
vivo moribundo morto
a sombra dos elementos por cima


Orfeu B.


quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

ROMA, ROMA ROMA




Tinha ficado de olho neste autor, jornalista espanhol de profissão que, como correspondente do El País tem corrido mundo. Da sua estadia aqui ou ali foi escrevendo livros de “Histórias” sobre as cidades que habitou, Londres, Roma, Nova York.

As “Histórias de Roma” dão-nos uma leitura muito pessoal sobe a cidade eterna. A História e as histórias, as pessoas, a comida, o futebol, a política. Não se trata de um guia para turistas Nem pensar. Trata-se sim, de um livro que resulta de uma vivência

O autor leva-nos pela mão, quer dizer, pela palavra, através casas, ruas e ruelas, restaurantes e personagens tão reais como inesquecíveis.

Fala-nos da Roma Imperial e dos seus monumentos, do Vaticano, da corrupção dos políticos, nomeadamente das histórias de Berlusconi, e mostra-nos que os nossos políticos corruptos ainda são amadores perante a grandiosidade e descaramento dos negócios à italiana.

E também nos lembra a grandeza do cinema italiano relembrando Monicelli ou Alberto Sordi, a escrita de Leonardo Sciascia, ou mostra a inesperada formalidade dos italianos.e especialmente dos romanos.

No meio de uma infinidade de pormenores, fiquei algo espantado pela persistente presença do fascismo numa cidade que foi cabeça do regime de Mussolini e onde os sinais de pompa bacoca, de violência gratuita e tribal permanece nas claques da Roma e da Lacio, numa celebração semanal de ritos que bem gostávamos fossem afastados de vez para que a Europa das democracias pudesse florir em pleno.

Vê-se que Eric González gosta de gostar e gosta de partilhar com os seus leitores as coisas de que gosta e as surpresas com que se depara na sua vida de jornalista andarilho.

O livro é editado pela Tinta da China na sua deliciosa colecção onde tem vindo a publicar títulos que guardo com carinho sobre cidades e viagens verdadeiras ou inventadas. Livros que, além do mais têm um design gráfico simples e de rara eficácia e são objectos que sabe bem ter na mão.


sábado, 29 de novembro de 2014

HAVERÁ MÚSICA E LIVROS



Primeiro livro de Romand Gary, que tem como cenário as florestas Lituanas em 1942 durante os duríssimos anos de resistência ao nazismo.

Gary, ele próprio, fugiu de França onde vivia com a mão para Inglaterra onde se juntou às tropas gaulista e se tornou num heroico piloto de aviação durante a 2ª Guerra.

O personagem central do livro é o jovem Janeck que vive na floresta com os partisans. O pai, o médico Tardowski morre como um heróis sem que o filho o saiba.

Janeck torna-se um homem e encontra o amor ao longo do livro e dos anos de luta na floresta contra os nazis. Torna-se ele próprio um partisan, colabora nas várias tarefas da resistência, apoio assaltos, ajuda os companheiros mais velhos na vida e na hora de morrerem. E tem uma paixão: a música. E pode-se dizer que as passagens em que ele encontra uma rapariga pianista, num caso, um menino judeu violinista, noutro caso, são momentos de rara beleza e emoção.

A música representa udo aquilo a que Janeck aspira, o contrário absoluto da opressão, da barbárie, da desumanidade. A música é para ele um diálogo transcendente com o que há de mais humano (ou mais divino) nos homens.


Por vezes o livro parece ficar por uma idealização da resistência, dos valores humanos que persistiuram na luta contra a barbárie nazi. Mas Gary foge rapidamente a essa idealização através da construção de um tapete de pequenas histórias que se cruzam, sucedem, sobrepõem-se com momentos de horror ou de ternura, fugindo a essa idealização do que possa ser a humanidade, a dos próprios partisans que não são heróis impolutos mas homens que se debatem com o nazismo e com as suas próprias contradições.

O título vem da ideia subjacente a todo o livro de que na resistência se adquirem e constroem os valores que irão ser os da construção de uma nova Europa livre, culta, democrática, em que todos acreditaram e que, com o correr dos tempos, nos escapou por entre os dedos das mãos.

Uma outra sequência de narrativas cruza o romance. São os contos que o estudante Dobranski vai escrevendo com a alegria e a paixão de quem faz da palavra uma arma também ela de resistência.

O jovem escritor afirma a dado passo que “Não há arte desesperada. O desespero é apenas falta de talento.”

As suas histórias são estranhas, raiam o absurdo e acendem uma faúlha de esperança e delírio, como é o caso do conto que anuncia a vitória na batalha de Leninegrado em que os cadáveres de soldados alemães conversam enquanto são levados pelas águas do Volga, sob o olhar de dois corvos russos saídos de um poema de Pushkin que os observam e se preparam para os devorar.

No final, quando a guerra está nos últimos dias Dobranski é atingido e enquanto vê a sua vida esvair-se ouve Janeck que lhe fala do tempo que está para vir com o fim da guerra e do nazismo.

“Havera música e livros, pão para todos e calor fraterno. Não haverá mais guerras, não haverá mais ódio.”

Sabemos como esta esperança alimentou muitos homens e continua a alimentar muitos outros apesar de estarmos a viver de novo um tempo de desespero em que teremos de lutar de novo e de outra maneira por tudo o que os partisans sonharam um dia.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

O FEITIÇO DA ÍNDIA E O FIM DO IMPÉRIO




escrita de Miguel Real atinge neste livro um momento de grande qualidade e equilíbrio na ligação entre o trabalho do escritor, a investigação histórica necessária a um romance que atravessa vários séculos, a reflexão do filósofo sobre a identidade portuguesa na relação com os outros povos e sobre o conceito de Império Português e o seu fim que neste caso se torna territorial e humano na semente que põe um termo à presença portuguesa na Índia.

O autor conta-nos a história de 3 homens, José Martins que no fim do séc. XV é o primeiro português a desembarcar na Índia.

Depois virá Augusto Martiins., mestre de metalurgia que no início dos anos 50 do séc. XX emigra para a Índia.

Finalmente outro José Martins, filho de Augusto que vai à procura do pai em 1975.

Os três deixam-se enfeitiçar pela Índia e trocam nos dois primeiros casos as suas Rosas de Lisboa por Rhemas da Índia.

O ultimo apaixona-se por Sumitha, sua meia irmã e torna-se pai de Arun com quem acaba o sangue português na Índia.

Através destas três histórias conta-se a história do fascínio dos portugueses pela Índia, pelos seus hábitos e costumes, pela sua natureza excessiva e envolvente, pela sua sensualidade livre do mal e do. pecado cristãos. Fala-se, enfim, dessa “perdição”, dessa entrega ao fascínio do outro, que subjaz ao Império Português, já que é de homens e das suas paixões que se fazem os Impérios.

Nos três momentos desta história assistimos primeiro ao início do Império, à conquista e ao domínio feroz dos primeiros governantes, Vasco da Gama, Francisco de Almeida e Afonso de Albuquerque. E ainda ao extermínio dos árabes e aos primeiros sinais de entendimento entre portugueses e hindus.

O autor mostra-nos ainda a distância entre os que partem do pequeno Portugal e lutam e sofrem lá longe e os que governam na Côrte de Lisboa sem visão nem projecto e que apenas aspiram ao lucro fácil e imediato. Sempre foi assim e, ao que parece, continua.

No segundo momento, o autor mostra-nos a pequenez do domínio lusitano em tempos de Salazar, a perda do território da Índia Portuguesa, a manutenção de uma classe de burocratas luso-indianos onde a cultura do Império se resume a um exercício balofo e pomposo de rotinas caídas em desuso e que, de alguma forma, vão sendo tranquilamente suportadas ou toleradas pela nova Índia.

Num terceiro momento é a queda do Império, o fim dessa união carnal, sensual, estética, espiritual entre duas culturas tão distantes mas aparentemente tão afeitas uma à outra, através da morte de Arun e do fim do sangue português na Índia.

A escrita de Miguel Real funciona como uma espécie de máquina fotográfica que dispara permanentemente e nos vai dando páginas sucessivas de pormenores que se entrelaçam para compor um vasto retrato da realidade (a Índia ou Lisboa) que nos chega através de cheiros, cores, sabores, temperaturas, materiais, frutos, animais, doenças, pústulas, luzes, águas que nos colocam no interior desses espaços com uma raríssima intensidade.

Mas Miguel Real é um homem da filosofia e não apenas um narrador realista de cidades, casas, rituais, corpos entrelaçados. Todas essas descrições lhe servem para ir construindo de forma ficcional um olhar estruturado sobre aquilo a que se chama ou chamou o Império Português, a sua decadência e o seu final.

Eu diria que este é livro denso, uma manta de histórias apaixonantes, em que a principal personagem somos todos nós, ou melhor, é Portugal, um herói multifacetado, ora pícaro, ora heróico e corajoso, ora feroz e bárbaro, ora sensual e deslumbrado, um Portugal à procura do seu novo lugar no mundo.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

INDÍCIOS DE OURO

INDÍCIOS DE OIRO
“Indícios de Oiro” é o título do último livro de poesia de Mário de Sá-Carneiro, publicado em 1937, pela revista Presença. O poeta, no entanto, havia-se suicidado, em Paris, em 1916, com vinte e seis anos incompletos. O conceito “indícios” já tinha sido utilizado por Mário de Sá-Carneiro em poemas anteriores, como “Quasi”, de que se transcreve a estrofe inicial: QUASI Um pouco mais de sol – eu era brasa Um pouco mais de azul – eu era além Para atingir, faltou-me um golpe d’asa... Se ao menos eu permanecesse aquém... Mas são exactamente os indícios desse “além” que se repercutem no “aquém” (a que estamos confinados), que se constituem em o verdadeiro Oiro da sua expressão poética – o que o autor não reconhece enquanto tal. Mário de Sá-Carneiro considera que não consegue atingir o “além”, mas que no “aquém” não pode permanecer. Daí, as tentativas de suicídio, a presença da morte nos últimos poemas, para mim, os mais belos. E o que acontece na Poesia, também ocorre noutras Artes, como a Música. Estou a pensar numa novela de Julio Cortázar (1914-1984), publicada na sua obra “As Armas Secretas”, edição da Cavalo de Ferro, em 2014. Nessa novela (é mais uma novela do que um conto), Cortázar dá notícia dos últimos tempos de vida de um músico norte-americano de Jazz, Charlie Parker. O texto, que tem como título “O Perseguidor”, é uma história romanceada dos últimos meses de Charlie Parker, a quem ele chama de Johnny Parker, o músico de Jazz, que, através do seu saxofone, persegue uma sonoridade muito pessoal, dificilmente vislumbrada, que lhe foge. Sonoridade talvez alcançada numa peça musical, “Amorous”, gravada sem a sua autorização. Se Mário de Sá-Carneiro vivia mergulhado em absinto, Parker era um consumidor inveterado de drogas duras. Quando morre, com quarenta e tal anos, tem o aspecto de um homem de mais de setenta anos. Cortázar diz-nos que tendo sido perguntado a Parker o que via, o que sentia, quando tocava peças como o “Amorous”, ele fala da Morte que o acompanha nesses momentos, em que tudo está perto, mas não se atinge. Que nunca se alcançará: “Campos cheios de urnas, Bruno. Montes de urnas invisíveis, enterradas num campo imenso”. E, mais adiante: “Não é uma questão de mais ou menos música, é outra coisa... por exemplo, é a diferença entre Bee [a filha] estar morta e estar viva. O que toco é Bee morta, sabes, enquanto o que quero, o que quero...” Como acontece com Mário de Sá-Carneiro, também esta situação se passa em Paris. Também estes “indícios”, afinal, sejam o Oiro mais fino que se possa alcançar no campo da Música de Jazz.

domingo, 9 de novembro de 2014

"Dijiste: "Iré a otra ciudad, iré a otro mar./Otra ciudad ha de hallarse mejor que ésta./Todo esfuerzo mío es una condena escrita;/y está mi corazón - como un cadáver - sepultado./(...)" Kavafis

A Lámpara de Aladino” 
de Luís Sepúlveda 
Porto Editora

Nesta época absolutamente desumana e falsamente embrulhada em humanidade que vamos atravessar podemos oferecer muito ou pouco. Sendo que o muito ou pouco que damos reside numa riqueza de palavras que não podemos ter sem o contributo da leitura. Digo leitura e não livros por ser mais lato, ainda que muitos de nós tenhamos coladas a nós as páginas do papel como a pele ao corpo.

Se podemos viver sem livros? Claro que sim. Mas seríamos muito mais pobres, solitários e infelizes. Ainda que possamos ser isso tudo no meio deles.
Quando recomendamos um livro fazemo-lo, por vezes, pelo que ela nos deu independentemente do contributo que deu à grande Literatura.

Gostar de um autor pode levar-nos à tentação de ler tudo dele e esgotar a surpresa ou de o relegar durante muito tempo para leituras futuras enquanto partimos à descoberta de novos. Na busca de equilíbrio cruzei-me com “A Lámpada de Aladino” de Luís Sepúlveda
Neste caso vale a pena o regresso porque reconhecemos a escrita, a atmosfera e a surpresa está lá. E trago-o aqui porque ainda não o consegui arrumar. 

Um livro de contos que é um livro de viagens. Quando estamos em casa para sair por aí e quando andamos por aí para ter um lugar de regresso. Para ser andarilho sem ficar perdido é preciso ter dentro de nós a casa e o ser. E para ser sedentário quanto baste é preciso viver nos livros a vida que nos falta.

Luís Sepúlveda conta-nos como surgiu o “Velho que lia romances do amor” e ficamos com a sensação de que cada conto dele nasce assim. E sentimos esse privilégio de, ao ler, nos parecer estarmos lá a olhar por cima do ombro, o momento inspirador da história, a história ela mesma. Ficção e realidade abraçadas. Que nisto de viajar, ou deambular pelo mundo, há quem volte o mesmo, desperdiçando a viagem e há quem pare num lugar para o apreender para o respirar, nunca desperdiçando a história do desconhecido/a solitário/a.

Nos solitários hotéis por onde Sepúlveda nos leva não nos sentimos esmagados pela desolação que encerram porque ele sempre nos coloca na rota do encontro, da confidência de mistérios da vida. Não há histórias de princípio e fim apenas farripas de vidas, de pequenas felicidades e mistérios, encontro/desencontro… Aparecem mulheres e é sempre com ternura que elas emergem das páginas. Sepúlveda dá-nos a sua visão da mulher. Não que haja uma escrita masculina mas há indiscutivelmente o olhar, o sentir do homem no olhar e ternura que usa para nos contar das mulheres. 

Tenho dificuldade em destacar apenas uma, todas têm uma unidade neste périplo pelo mundo. Vida repetida. Mas um faz-me pensar no livro do Gabriel Garcia Marques “Amor em tempo de Cólera”. nos poemas de Neruda, ou de kavafis. Gosto de sentir que os caminhos fazem sentido por algo que havemos de encontrar algures, mesmo que muitos anos depois.

Um pequeno livro viajante que toca com mãos e alma a realidade que encontra. 
Um bom presente... 

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Crónicas de uma Loucura Ordinária

         

Estilo é a resposta para tudo.
Uma forma renovada de acercarmos algo enfadonho ou perigoso
Fazer algo enfadonho com estilo é preferível do que fazer algo perigoso sem estilo
Fazer algo perigoso com estilo é que eu chamo arte 



A mística do poeta maldito e desajustado atravessa a história da literatura. O fascínio dos artistas que, por força da sua criatividade, foram para além dos limites da sanidade, do decoro e do conforto da conveniência política e social, conduz-nos à essência da força libertadora da literatura.   

"Crónicas de uma Loucura Ordinária" corresponde à segunda parte de duas colectâneas de contos do poeta norte-americano Charles Bukowski publicadas em 1972. O primeiro volume, intitulado “Erections, Ejaculations, Exhibitions, and General Tales of Ordinary Madness” dá-nos uma ideia do estilo irreverente e pornográfico do autor. Charles Bukowski, poeta das franjas e alcoólatra inveterado, é bem conhecido por novelas como “Factotum” (1975), “Women” (1978), “Pulp” (1994), peças de teatro como “Barfly” (1984), assim como por um número considerável de colectâneas de poemas. 

O conto “The Most Beautiful Woman in Town” inspirou o comovente e perturbador filme de 1981 “Crónicas de uma Loucura Ordinária” do realizador italiano Mario Ferreri. Magistralmente interpretado por Ben Gazzara e Ornella Muti, o filme apresenta-nos com cores fortíssimas a voragem de uma relação apaixonada e suicida entre um poeta, Charles Serking, e a sua musa, a jovem prostituta Cass. Inadaptados numa sociedade desumanizada e embrutecida pelo consumismo e pelo materialismo, Charles e Cass vivem precariamente na vertigem do gume afiado da anestesia alcoólica e da auto-mutilação. Quando Cass se suicida, Charles é consumido pelo sentimento de culpa e mergulha na dor e na incerteza da sua escrita. 

A declamação do poema Estilo, que é transcrito abaixo na sua forma original, captura com fidelidade a intensidade do exercício poético e o seu extraordinário poder de iluminar os mais recônditos redutos da alma. Só um poeta tem a sensibilidade necessária para compreender completamente a tragicomédia da existência.  


“Style is the answer to everything.
A fresh way to approach a dull or dangerous thing
To do a dull thing with style is preferable to doing a dangerous thing without it
To do a dangerous thing with style is what I call art

Bullfighting can be an art
Boxing can be an art
Loving can be an art
Opening a can of sardines can be an art

Not many have style
Not many can keep style
I have seen dogs with more style than men,
although not many dogs have style.
Cats have it with abundance.

When Hemingway put his brains to the wall with a shotgun,
that was style.
Or sometimes people give you style
Joan of Arc had style
John the Baptist
Jesus
Socrates
Caesar
García Lorca.

I have met men in jail with style.
I have met more men in jail with style than men out of jail.
Style is the difference, a way of doing, a way of being done.
Six herons standing quietly in a pool of water,
or you, naked, walking out of the bathroom without seeing me.”


Orfeu B.
   



domingo, 19 de outubro de 2014

Quando Sherlock Holmes existiu na realidade...

Arthur & George





Julian Barnes

Arthur & George, de Julian Barnes, é um livro tecnicamente extraordinário. Mas, mais impressionante do que a forma como está escrito, é a riqueza e densidade de interpretações e visões que proporciona que o transformam num livro fascinante.
Partindo de uma premissa – baseada em factos reais – tão inesperada quanto brilhante (Arthur Conan Doyle, o escritor que criou Sherlock Holmes, investiga um caso real, tentando ilibar George Edalji de um crime que este não cometeu, aplicando numa investigação verdadeira e concreta os mesmos princípios detectivescos que atribuiu à sua personagem ficcional), Barnes conta-nos um pedaço de história verdadeira que é, simultaneamente, uma estória literária, dissipando de forma tão provocatória quanto deliciosa as fronteiras entre realidade e ficção, entre biografia e romance.
Começamos por acompanhar os percursos de vida de Arthur e de George, em separado; se um é uma individualidade marcante da sociedade inglesa de finais do século XIX e início do século XX, o outro é um simples anónimo embrenhado numa vida banal e algo peculiar que teve o azar de ser arrastado para uma situação complicada e injusta. Os caminhos de ambos acabarão por se cruzar lá para meio do livro, em momentos chave da vida de cada um, coincidindo num relacionamento breve mas determinante, para se voltarem inevitavelmente a separar. (O livro termina pouco depois da morte de Conan Doyle.)
Mais do que o relato de duas vidas de alguma forma extraordinárias e muito mais do que uma estória de detectives inteligente, este livro surge-nos como um retrato acutilante e abrangente da sociedade inglesa, nas suas vicissitudes e particularidades, nas suas riquezas e fraquezas. Na verdade, juntamente com os dois protagonistas, é-nos apresentada uma outra personagem, magistralmente criada, que acaba por se impor como a verdadeira protagonista: a “essência” do ser inglês, uma certa “britishness”.
Com uma leveza aparente e ilusória, oscilando entre o trágico e o cómico,
Barnes conduz-nos afinal por entre inesperadas reflexões que acabam por constituir uma espécie de terceira camada do livro (se considerarmos que a primeira se ocupa de Arthur e George em particular, da forma como as suas personalidades evoluíram ao longo do tempo; e a segunda da sociedade inglesa em abstracto), conferindo-lhe uma densidade e abrangência imprevista; temas como o poder da imprensa, o arcaísmo arbitrário do sistema judicial, a dissimulação do racismo, a importância do empenho cívico individual activo, a incompetência e arrogância da polícia, a cegueira provocada pela religião, a pressão moral imposta pela sociedade através da ditadura da aparência, bem como questões mais íntimas como a solidão solitária e a solidão acompanhada ou o relacionamento individual com a morte, conferem a este livro – que não
deixará de representar uma visão ficcionada de uma época história distante – uma actualidade não apenas desconcertante mas, principalmente, preocupante. 

Leitor convidado: Paulo Kellerman, escritor
http://agavetadopaulo.blogspot.pt/

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

ETERNO DOMINGO




“Eterno domingo” é um curiosíssimo livro, editado pela “Lápis de Memórias” do meu amigo Adelino Castro, em que se visita a paixão pelo futebol vivida improvavelmente por um professor universitário, doutorado em Teoria da Literatura.

Não é caso único no mundo. Bastaria falar dos escritos sobre futebol do grande escritor espanhol Javier Marías, de alguns poemas de Manuel Alegre ou, por outro lado, dos poemas de Artur Jorge, destacadíssimo jogador e treinador e creio que doutorado em germânicas metodologia de treino.

O autor deste livro, Ricardo Namora, foi jogador de futebol, treinador de futebol e é um desmesurado apaixonado pelo futebol. Além disso é professor de Literatura.

Normalmente, esta diferença temática de interesses não permitiria que se imaginasse uma coisa rimasse pacificamente com a outra. Mas a verdade é que acaba por rimar.

O que motiva Ricardo Namora é uma paixão alegremente desmesurada, um conhecimento extenso da matéria e uma forma de escrever que nos leva a seguir a leitura com forte motivação, interesse, curiosidade e surpresa.

Talvez isto só seja verdade apenas para quem gosta minimamente de futebol. Eu gosto. Não sou um taradinho. No entanto, mais de perto ou mais de longe, o futebol faz parte da minha vida, desde os relatos do Artur Agostinho ao domingo na emissora Nacional, passando pelo Benfica Campeão Europeu e por esse momento mágico e único que foi a explosão do Eusébio no Europeu de 66 em Londres.

Conheci e tornei-me amigo de alguns jogadores e adoro ouvir-lhes as histórias. O rei Eusébio outros magriços como o Simões e o Zé Augusto. Mais o Carlão e, entre outros, o Toni, um dos homens mais carregados de Humanidade que conheci.

Li a Bola escrita magnificamente por esses extraordinários jornalistas que foram Carlos Pinhão, Vítor Santos e vários outros, e deliciei-me durante anos com as crónicas do meu querido e saudoso amigo Duda Guenes.

Hoje em dia já acho menos graça. O negócio e o marketing invadiram tudo. A paixão foi substituída pela tribalização consumista. Deito um olhozito de vez em quando aos jogos na televisão. Mas não tenho paciência para ver um jogo inteiro.

O “Eterno Domingo” é que eu li inteiro, aprendi umas coisas valentes e diverti-me muito.

Ricardo Namora fala-nos das suas paixões e conta-nos histórias que presenciou ou que nos traz de dentro do bruma de outras memórias. Fala-nos de como começaram e s desenvolveram os clubes e os campeonatos de Espanha, Inglaterra, Itália, Alemanha, Brasil e Portugal.

Não será literatura pura e dura. Nem pretende. Mas, como sabemos, o livro vale pelo escrito e pelo lido. É feito por autor e por leitor. E este leitor que eu sou aprendeu umas coisas sobre futebol e mais, sobre a paixão pelo futebol.


quinta-feira, 18 de setembro de 2014

AS FRONTEIRAS DA VERDADE




Javier Cercas é um dos escritores mais interessantes da actual literatura espanhola, o que não é dizer pouco porque são bastantes os escritores espanhóis que merecem referência.

Dele já tinha lido um livro emocionante, "Soldados de Salamina", um dos primeiros romances a abordar a complexidade da Guerra Civil de 36-39 e a trazer a sua memória para o romance.

Esse trabalho sobre a memória é importante, quer para a literatura espanhola quer para a portuguesa. A guerra Civil, de um lado, a guerra colonial, do outro, precisam de ser trazidas para fora dos mitos e das verdades convenientes, para serem questionados à luz da ficção que, por vezes, se torna no bisturi mais afiado para entender a história.

Este romance, que se infiltra na pele do leitor, desenvolve-se através de uma engenhosa construção dramática em torno de três personagens: Cañas, Zarco e Tere.

Zarco é um famoso delinquente juvenil em 78, finais do franquismo, um chefe de um gang marginais miseráveis e desalojados na Catalunha que começa pelo pequeno roubo e do esticão passa ao roubo de automóveis, depois aos assaltos a casas, a lojas, bombas de gasolina e, finalmente, a bancos.

Todo o gang é apanhado pela polícia, alguns morrem, e só um escapa, Cañas, o único filho da classe média que vai acabar por se tornar num advogado famoso.

Tere é outro membro do gang, uma rapariga extremamente sensual, atraente e misteriosa, por quem Cañas se apaixona e por que também se integrará no gang.

O romance é conduzido pelas entrevistas de um escritor que pretende escrever a verdade sobre Zarco.Os depoimentos de Cañas vão-se alternando com outras personagens, o polícia que prendeu Zarco e o director da prisão.


Ao longo dos anos, depois de fugas e novas prisões, Zarco vai-se tornando numa personagem mediática. Cerca de 20 anos depois, através de Tere, pede a Cañas que seja ele a defendê-lo.

E toda esta trama se torna num carrossel em que a busca da verdade nos leva a questionar o valor da memória a forma como a memória, as nossas memórias, se vão questionando e refazendo ao longo do tempo.

sábado, 30 de agosto de 2014

A PRIMAVERA HÁ-DE CHEGAR


Não me canso de agradecer aos editores que me têm revelado e trazido para a língua portuguesa autores que eu não conhecia, mea culpa, mea culpa, e que vieram alargar o meu olhar sobre a literatura, ou seja sobre o sentido da vida.

Podia falar de muitos autores como Hernán Rivera Letelier, Olivier Rolin, Le Clézio, Errí de Luca, Julio Ramon Rybeiro, Barnard Malamud, Ignácio Martínez de Pisón e tantos outros mais como, agora, John Fante

Agradeço-vos a todos, queridos editores, a sensibilidade, a inteligência e quantas vezes o risco com que exercem a vossa profissão, sobretudo quando fogem aos sucessos garantidos por amor ao livro e à literatura.

A editora Ahab publicou o primeiro e o segundo romances do quarteto Bandini. O terceiro foi publicado pela Objectiva/Alfaguara e creio que o quarto romance não está publicado em português mas espero que alguém faça a gentileza e o acto de inteligência editorial de o publicar.

Descobri que Fante (1909-1983) é um autor extremamente elogiado no mundo literário americano, com rasgados elogios, entre outros, de Bukowski que dizia que ”Fante era o meu Deus”.

“A primavera há-de chegar, Bandini” é a história de um inverno na vida de Arturo, um jovem de 14 anos e da sua família italiana e pobre, constituída por pai, pedreiro, mãe, dona de casa, e três irmãos, Frederico, o patife, August o bonzinho que vai para padre, e Arturo, o mais velho, o nosso herói e narrador.

O romance passa elegantemente da voz de um narrador neutro para a voz de Arturo, passando, por vezes pela a voz do pai, Svevo, numa escrita brilhante, rápida, sem perdas de tempo, atravessando registos de grande dureza para logo desabar um pormenores de rara emoção e deixando tudo embrulhado aqui e ali, num inesperado fio poético.

O mundo de Bandini tem pontos óbvios de proximidade ou convergência com os romances de John Steinbeck. É o mundo dos pobres, dos trabalhadores.

Fala-nos do choque de uma família italiana e católica de origem rural do Sul de Itália, com os seus valores culturais e éticos, tratada pelos americanos como estrangeira.

E tem o sabor da pobreza experimentada por esta família, da verdadeira pobreza, a pobreza da América dos anos 30, e de uma solidariedade sem doçuras dentro da família.

Mas o que o romance sobretudo nos oferece é um extraordinário relato da vida feita por Arturo, em que se cruzam a forma como olha para o pai e para a mãe e ainda para a traição do pai com uma americana rica e do regresso do pai a casa, a expressão dos seus sonhos, do seu amor, da sua paixão pelo beisebol, do seu entendimento conturbado do catecismo e aquela inquietante lista de pecados da catequese que Arturo nunca sabe bem se são mortais ou não.

Deste delicioso diálogo do jovem com os pecados conclui ele que na hora da morte é preciso ser muito rápido para conseguir confessar-se antes de morrer e assim conseguir não morrer em pecado mortal.

O que é enternecedor é que Fante faz um acto de magia que só os grandes escritores conseguem quando conta um pouco da história todos nós, rapazes, de 14 anos de todos os tempos, ao contar a história de Arturo Bandini,

Todos nós tivemos amores deslumbrantes, inventámos grandes e complicadas ficções para nos entendermos com o mundo e com os outros, sofremos da mesma forma os desgostos de amor apenas sonhados, olhámos com espanto e inquietação para o desenvolvimento do desejo, tentámos entender-nos com o conceito de ciúme, e tentámos entender qual o papel que nos esperava como homens na sociedade e na família.

Trata-se de um livro que nos arrebata na verdadeira acepção da palavra e só posso acrescentar que estou mortinho para ler o segundo romance desta série que se intitula: “Pergunta ao pó”.


sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Breves Notas sobre ciência


História das ciências (1)

  A História das Ciências encontra-se sempre ligeiramente atrasada em relação à História dos Desejos.
  Há metáforas famosas, peguemos nelas.
  É como se os cavalos fossem o Desejo e a carroça puxada por eles a ciência.
 Se os cavalos se separarem da carroça ganharão velocidade, mas perderão utilidade pública; a sociedade quer funções e não fugas.
 Mas o pior sucede mesmo à carroça. Se os cavalos se separarem ela, ela não mais se moverá.

A 2ª matemática

  Questão de Wittgenstein:
  “Se todos os homens acreditarem que 2 x 2=5, 2 x 2 será ainda igual a 4?”

  Existe uma 2ª matemática atrás da primeira. É feita daquilo que é Erro na primeira, e é ainda - como a primeira matemática - feita de ordem e regras. Os erros da 2ª Matemática são também proposições incontestáveis na 1ª Matemática.
 (Pensar nos opostos. No mal e no bem. Na exactidão e na falha. No alto e no baixo.)

Gonçalo M. Tavares


Gonçalo M. Tavares é um dos mais interessantes e originais jovens escritores portugueses: tem ideias, escreve com clareza e precisão, é prolífico e a sua obra é de qualidade homogénea e incontestável. Outra característica marcante dos textos de Gonçalo M. Tavares é a capacidade de obrigar o leitor a procurar continuamente o equilíbrio dos seus pontos de referência através do confronto com as ideias e conceitos expressos nos seus estimulantes textos. 

Em Breves Notas sobre ciência (2006), Gonçalo M. Tavares, o autor de Jerusalém (2004), Histórias falsas (2005), Canções Mexicanas (2011) e de muitos outros textos de interesse, procura aparentemente dissecar alguns dos pressupostos subjacentes ao trabalho científico. Digo-o aparentemente, porque apesar de as suas reflexões aparentarem ser, pela sua natureza e por conta da linguagem utilizada, de cunho epistemológico, elas o são só à primeira vista. De facto, nestas notas, impostas ao autor pelo seu interesse pela ciência, o ambiente discursivo científico-filosófico não passa de um engenhoso artifício para produzir um ensaio, escrito na forma de aforismos, sobre o método de abordar factos e o seu escopo, sobre a identidade do investigador e de seus estados de alma, sobre o objecto de estudo e a sua génese, sobre o amor, a verdade e o erro. 

Diz-nos Gonçalo M. Tavares:

«Céptico como os cépticos, crente como os crentes. A metade que avança é crente, a metade que confirma é céptica. Mas o cientista perfeito é também jardineiro: acredita que a beleza é conhecimento.»
   
Certamente, já o sabíamos desde Voltaire, e longe de dizer que o fazer científico não tem uma componente de crença e estética, mas há que se dizer que a beleza é um guia secundário para o investigador, embora seja, em oposição, a pulsão mais básica do artista. 

E também há no texto de Gonçalo M. Tavares um marcado interesse em focar o discurso nos equívocos inerentes aos procedimentos de busca das “verdades” e nos erros que o processo comporta. Mas, há muito a ciência não presume verdades acerca dos fenómenos e factos, mas se restringe a fazer hipóteses que servem, precária e temporariamente, como teorias. E nenhum cientista poderia afirmar que estas hipóteses são fruto exclusivo de factos puros e ideias com componentes estritamente científicas.   

Mas Gonçalo M. Tavares, não está interessado nas ciências, mas na literatura que se pode produzir tomando a ciência como pretexto. E sob este ponto de vista, estas Breves Notas sobre ciência propiciam, sem qualquer dúvida, uma leitura extremamente estimulante.  

Orfeu B.


segunda-feira, 11 de agosto de 2014

A MISERICÓRDIA DOS MERCADOS




Nunca entendi bem o conceito de geração referente apenas à idade. Talvez o entenda melhor no que diz respeito a uma arqueologia de vivências, atitudes, gostos, olhares, desejos

Nesse sentido, eu e o Luís Filipe Castro Mendes somos seguramente da mesma geração. Temos a mesma idade. Conhecemo-nos há muito. Os nossos filhos brincaram juntos. Vivemos seguramente momentos comuns nesse tempo de intensidades e angústias que foram os anos anteriores à queda da ditadura Ambos crescemos nos anos 60 com tudo que isso possa querer dizer.

É claro que temos relações com a escrita poética nascidas de fontes diferentes, influências diversas, relações de diferentes proximidades com as instituições literárias

A verdade é que sempre acompanhei a sua escrita com momentos de júbilo e felicidade. "Este é dos meus!", pensava eu. E é.
Leio e releio a sua poesia e fico mais feliz, por vezes mais triste e melancólico, mais mergulhado na matéria da poesia e, atrevo-me a dizer, mais cheio de mim próprio, ou melhor, dos meus velhos sonhos, raivas, irritações, delírios, paixões que, desde a juventude, não deixaram de me acompanhar.

Li este seu livro, reli-o e li também algumas críticas. Devo dizer que tenho muito pouco respeito pela actividade opininativa que se espalha por alguns jornais e que vem quase sempre revestida de seriedade literária ou cinéfila, ou teatral. Tenho razões para esta má vontade. E guardo recortes para não me esquecer das pequenas e grandes canalhices a que assisti ou até que sofri da parte dessa

Achei irónica a forma como se tentou puxar para o lado a poesia de Castro Mendes tentando "purificá-la" e retirando-a da vil prosa do mundo em que estamos mergulhados para a tornar em pura poesia, límpida, escrita sem mácula, com palavras sem ruas ou cidades, sem pobres e ricos, sem sofrimento ou desilusão em relação ao tempo que vivemos.

A música da poesia de Castro Mendes é neste livro um doloroso e melancólico diálogo com o avanço da idade e a constatação de que o mundo dos mercados é um mundo que escapa ao que foram os nossos sonhos, um mundo que conduz filhos à sobrevivência perante a miséria da economia.

O Luís Filipe não é um poeta político no sentido estrito do termo mas a sua melancolia resulta também do conhecimento directo de um mundo mergulhado em guerra e miséria e na lógica que para muita a gente não oferece discussão e parece até tornar-se na voz natural de um Deus qualquer.

A poesia serve também para isto. Abrir portas de questionamento sobre o mundo que vivemos e abrir pequenas janelas de dúvida amável, de fraterna partilha da arte das palavras.

"REGAS DE PROTOCOLO"

Os que não têm lugar à mesa
devem rodar delicadamente para trás
e afastar-se sem barulho e sem notícia.
Os lugares foram reduzidos por forma a
um número crescente de convidados deixar
de ter lugar no banquete, sem qualquer aviso prévio
ou desculpa improvisada. Prontamente.

Conhecer as regras é necessário.
Ignorá-las
é soberano.






domingo, 10 de agosto de 2014

A Minha Mulher



“Mas como tudo isto é absurdo, absurdo … resmoneava enquanto descia as escadas. É absurdo que esteja ser arrastado pela vaidade ou pelo amor-próprio … Que coisas tão pueris! Serei, acaso, condecorado por causa dos famintos? Irão nomear-me director dalguma repartição? Mas é absurdo, absurdo! E aqui, no campo, para que hei-de representar o papel de pessoa importante? Se me inquieto e aflijo é apenas por amor do próximo …

Sentia confusamente que estava a ser desonesto e mentia a mim próprio. O amor pelos famintos, que eu nunca tinha visto nem conhecia, nada tinha a ver com tudo aquilo. Tive vergonha e lembrou-me, não sei porquê, um verso dum antigo poema, que aprendera na infância:

Ah! como é agradável ser bom!

Mas ainda tive depois mais vergonha …

Anton Tchekov


Tchekov (1860-1904) é referenciado como um dos mais dotados contistas de sempre. As suas obras são constantemente re-editadas e as suas peças foram seminais no repertório teatral russo e moderno e gozam duma unanimidade incomum junto da crítica e do público. O seu estilo é directo e impressionista, as suas descrições anímicas reminescentes dos grandes escritores russos do século XIX. Julgo ser justo afirmar que obras como "O Cerejal", "A Gaivota", "O Tio Vânia", entre outras, são leituras obrigatórias para qualquer leitor interessado nos clássicos da literatura universal.    

"A Minha Mulher", é um longo conto (ou uma breve novela) escrito em 1891. Há neste magnífico texto todos os elementos do universo de Tchekov: a subtileza dos retratos psicológicos, enquadrados em situações quotidianas e/ou extraordinárias, a sua visão por vezes pessimista, mas sempre apaixonada da humanidade, e o seu profundo conhecimento da alma russa, na sua grandeza e nos seus aspectos mais sombrios. 

Neste conto, temos Pavel Andreievitch, um abastado funcionário reformado dos caminhos de ferro russo, que vive dilacerado pelo amor que descobre ainda sentir pela sua mulher. Esta, porém, não o julga digno de qualquer benevolência. A precária relação de separação que vivem, sob o mesmo tecto, perde a sua frieza habitual quando a sua esposa toma a iniciativa de reunir, junto da burguesia rural duma região da Rússia profunda, meios para aliviar a fome e a miséria que assolam os camponeses num inverno particularmente penoso. Pavel Andreievitch presume que esta iniciativa permitir-lhe-á re-estabelecer relações com a sua esposa, porém o seu zelo burocrático e a sua insensibilidade tornam as coisas ainda mais difíceis e insuportáveis. A tensão crescente acaba por empurrar Pavel Andreievitch para uma frustrada fuga para a capital, a qual culmina com um humilhante regresso, que o obriga a enfrentar, sem subterfúgios, a solidão e o irreversível desprezo da sua mulher.       

Um livro de grande intensidade psicológica, realista ao ponto de ser profundamente tocante, ainda que por vezes, sufocante na desesperança que nos descreve a impotência diante de relações humanas em conflito e a incapacidade da burguesia russa em entender as causas dos infortúnios do povo.

Orfeu B.
   

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

SOMBRA NO VENTRE



“… as noites só faziam sentido trincando nêsperas
e bordando palavras que dessem sombra no ventre”

Uma entre as boas poetas dos últimos anos, o que é raro e não é pouco, porque a poesia portuguesa não tem andado nos seus melhores tempos.

Este livro dedica-o a autora ao Miguel, “...que durante nove meses carregou comigo um filho. E durante outros tantos, este livro.”

É assim fácil de entender que este livro é um registo poético do tempo de gravidez.

Sem bonitinhos, adornos, requebros que o tema poderia sugerir, esta poesia é espessa, intensa, cuidadosamente elaborada numa vivência deslumbrada do corpo e da partilha do corpo com o filho que se aproxima e da sua celebração no altar do amor.

“MARSUPIAL” resulta do casamento notável entre a emoção vivida no corpo e a construção de um outro corpo feito de palavras nascendo inquietas das águas e da luz.

“agora a mulher estava no plural
a mulher era potável
a mulher escrevia o missal do seu corpo

um dia o anjo disse – vai à fábula –

então a mulher escolheu escrupulosamente o seu pé esquerdo
e foi.”

domingo, 3 de agosto de 2014

COMO SE NUNCA TIVESSE CONHECIDO RAÍZES NOS PÉS




“A mulher movia-se no silêncio nu da montanha como se nunca tivesse conhecido raízes nos pés.”

Um dia entrei numa livraria de Coimbra, a “Lápisdememórias” do Adelino Castro, e lá estava o Ondjaki a apresentar um livro. Não nos conhecíamos pessoalmente mas caímos nos braços um do outro e logo ali selámos uma daquelas valentes amizades que hão-de concretizar-se ao sabor dos acasos da vida.
Já guardava um cantinho das minhas paixões literárias para a escrita deste menino transcontinental que tem uma carga poética e emocional notáveis.
Esperava encontrar nestes contos aquelas narrativas realistas mas delicadas e ternas como em “Os da minha rua”.
Os contos reunidos neste livro são diversos. Vêm de lugares diferentes, de diferentes regiões do imaginário, de diferentes respirações da narrativa.
Avançam e recuam no espaço e no tempo, nas sombras do real e do irreal, do fantástico e do poético.
Cada conto tem o nome de um lugar, uma cidade, um sítio: Buenos Aires Budapeste, Madrid, Praga, Macau, Tânger, Nairobi, Dar Es Salaam
Porventura terão sido escritos ao sabor das viagens do autor. E estão divididos em 4 capítulos marcados por uma certa forma de atravessar o mundo com as palavras.
Há zonas onde predomina o labiríntico absurdo a soar a Borges, outros a cair no mágico, outros claramente poéticos apesar da prosa em que são vertidos.
Trata-se de um livro desigual, com altos e baixos em quem os baixos nunca são muito baixos e os altos conseguem chegar muito alto. Trata-se de um livro que exige uma entrega especial do seu leitor. É preciso deixarmo-nos mergulhar na escrita maravilhosa de Ondjaki, sem preconceito, sem querer saber: “E depois?” mas deixar que a chuva das palavras nos venha tocar no mais fundo da emoção
Ainda não li, mea culpa, “Os transparentes”, romance recente de Ondjaki. Tenho ouvido belos elogios e fico feliz por isso. Fico feliz por um bom livro e ainda por cima um bom livro de um bom amigo.
Destes “Sonhos…” gostava de salientar o conto que tem por título Massoxiangango, um dos mais belos poemas que li e de onde retirei a frase com que comecei esta prosa.


- E MAIS ALGUMA COISA -

Entusiasmado com o livro de Onjaki desatei a escrever sobre ele ainda me faltava o último conto. "Mossulo", história de fazer tremer, único momento explicitamente resultante de uma história vivida. E não é por acaso que se trata do último, uma vez que, de forma talvez oblíqua, é a chave de todos os contos, a raiz que prende os pés de quem lê à terra de que o autor faz nascer a ficção.


quarta-feira, 16 de julho de 2014



A Princesa que queria ser Rei
Texto: Sara Monteiro
Ilustração: Pedro Serapicos
Ed. Ambar
Porto, 2007


História atípica de princesa: não é linda, nem delicada. É forte e peluda e não quer bailes, nem bordados. 
O Rei baralhado: afinal o que é feminino? 
A rainha peremptória: “qualidades fora do seu sexo são defeitos”. O rei cogita: “e se as qualidades não fossem de nenhum sexo?”. Aos dezassete anos quer reinar. Só um homem pode ocupar o trono! Ela vai embora, provar ser melhor que um homem. 
Cai tristeza no palácio. 
Quando o reino é invadido o apelo de ajuda do rei é atendido por um cavaleiro que ninguém conhece. O rei quer acreditar que é a filha. Passam cem noites, o cavaleiro misterioso chega ao palácio. 
É ela! Forte, peluda, altiva e bonita! Tão boa como um homem. Melhor! Nos braços da guerreira que reclama o reino há uma criança recém nascida. São os pais que resolvem a questão do ser ou não ser rapaz ou rapariga e da aceitação plena da filha: “Que interessa isso?” E ficamos sem saber. 
A ilustração faz a ponte para um público mais pequeno a par de uma mensagem mais adulta nas entrelinhas. 
A figura da Princesa, menina, quase boneca, atenua o adjectivo de “cavalona” que lhe atiram; o pontilhado de barba na cara gera estranheza e graça; o minúsculo rei com um trono demasiado grande convive com a sombra dos imensos cabelos da princesa, símbolo da sua força. 
Não há príncipe. 
A princesa mulher/mãe será rei. 
O sexo não interessa para governar (bem). 
Um final feliz.

domingo, 13 de julho de 2014

O Passeio e outras Histórias

 Vim ao mundo a tantos de tal, fui educado em tal sítio, fui para a escola como qualquer um, sou isto e aquilo, chamo-me fulano de tal e não penso muito. Do ponto de vista do género sou do sexo masculino, do ponto de vista do estado sou um bom cidadão e do ponto de vista social pertenço à melhor sociedade. Sou um membro impecável, pacato e amável da sociedade humana, um dos chamados bons cidadãos, gosto de beber o meu copo de cerveja sobriamente, e não penso muito. Assim, não é de espantar que de preferência coma bem e também não é de espantar que as ideias não se aproximem de mim. O pensamento arguto é-me completamente alheio. As ideias ficam sempre muito longe de mim e por isso sou um bom cidadão, já que um bom cidadão não pensa muito. Um bom cidadão come o que tem a comer e isso basta!

Não esforço particularmente a cabeça, deixo isso às outras pessoas. Quem esforça a cabeça torna-se odiado. Quem pensa muito tem fama de ser incómodo. Já Júlio César apontava o dedo grosso ao Cássio, esquelético e de olhos encovados, a quem temia porque suspeitava que ele tinha ideias na cabeça. Um bom cidadão não pode inspirar medo e suspeita. Pensar muito não é o seu ofício. Quem pensa muito torna-se mal amado e é inteiramente desnecessário ser mal amado. Ressonar e dormir é melhor do que ser poeta ou pensar. Vim ao mundo a tantos de tal, fui à escola em tal sítio, leio ocasionalmente o jornal, tenho a profissão tal e tal, tenho tantos e tantos anos, pareço ser um bom cidadão e gostar de comer bem. Não esforço especialmente a cabeça, já que deixo isso às outras pessoas. Matar a cabeça a pensar não é o meu forte, pois quem pensa muito padece de dores de cabeça e a dor de cabeça é inteiramente supérflua. 

O Passeio e Outras Histórias


Os textos do escritor suíço de língua alemã, Robert Walser (1878 – 1956), são frequentemente referidos como sendo uma transição entre os do poeta romântico alemão Heinrich von Kleist (1777 – 1811) e os de Frans Kafka (1883 – 1924), escritor quinta essencial da literatura do século XX. Claramente, há entre estes autores denominadores comuns, porém eu prefiro pensa-los como ilhas no mar revolto das possibilidades criativas da ficção. No seu tempo, Walser era muito apreciado e entre os declarados admiradores estavam Stefan Zweig, Robert Musil, Hermann Hesse, Walter Benjamin e Franz Kafka. 
   
Em “O Passeio e Outras Histórias” o leitor pode apreciar com nitidez o estilo irónico, e sobretudo auto-irónico, de um autor que não se enquadrava nos cânones necessariamente pequeno-burgueses da posição de um escritor no seu tempo e nos padrões de gosto e estilo que esta posição sócio-económica e cultural subentendia. São também perceptíveis os danos causados na personalidade do autor a sua condição de perene solitário e excluído. O resultado é uma escrita fluída, necessariamente exaltada, e cheia de humores e de contida revolta.   

Ao lermos, por exemplo, o longo conto, O Passeio, salta à vista a felicidade que este caminhar desinteressado e libertador injecta no autor e como este não poupa esforços para que o leitor possa compartilhar estes momentos de surpreendente leveza e elação. Contudo, há nas entrelinhas, indeléveis traços de angústia, exasperação e duma solidão profunda. Não surpreende que tenha vivido o autor, as duas últimas décadas e meia da sua vida, num hospital de doentes mentais de Herisau a este da Suíça, alienado do mundo e dos seus semelhantes, e que só os passeios propiciavam algum alívio para a sua atormentada alma.  

A sua solitária morte num campo congelado pela neve no dia de Natal de 1956, parece ser a conclusão dolorosamente lógica de uma existência precária e solitária, e completamente dedicada à escrita e aos passeios. Walser deixou-nos poemas, novelas e uma infinidade diversificada e original de contos.  

Orfeu B.