segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Lustrum


It's like fighting the Hydra – no sooner do I lop off one head than another two grow back in its place.

Comentário de Cícero sobre seus oponentes políticos.

Na novela Império, Robert Harris descreve a ascensão de Cícero, o grande advogado e estadista romano e possivelmente o maior orador da antiguidade, à posição de Cônsul da República de Roma, cargo equivalente ao de primeiro-ministro excepto que ao longo de um único ano e exercido em meses alternados com um colega eleito. A narrativa é devida a Tiro, escravo de Cícero, mas que na verdade era seu secretário, representante e conselheiro, e que deixou o seu nome gravado na história pela invenção da taquigrafia e pela autoria duma biografia de Cícero, entretanto perdida.

No segundo livro da trilogia, Lustrum, Tiro descreve-nos as dificuldades do consulado de Cícero desde o seu discurso inaugural em 63 A.C., e as implicações da sua governação que o levaram ao exílio em 58 A.C. O título refere-se em latim, ao sacrifício expiatório oferecido a cada cinco anos. Lustrum é um livro vertiginoso, que apresenta ao leitor uma fascinante anatomia dos meandros do poder e da corrupção. Um thriller onde a inteligência e a capacidade de cálculo político de Cícero são testadas até o limite do possível, numa eloquente demonstração da precariedade e volatibilidade do exercício da política em tempos de crise. Em 63 A.C., a Republica está à véspera de aumentar consideravelmente a sua influência e riqueza, mas paradoxalmente, corre o risco real de ser dilacerada e arrastada para a ditadura pelas alianças, traições, crimes e seduções de homens imorais e inescrupulosos. O mais proeminente de todos, César, um homem cruel, maquiavélico e imprevisível, com uma ambição sem limites pelo poder. Para além de César, também: Pompeio, o maior general da república; Crasso, o homem mais rico de Roma; Cátulo, um político íntegro, mas fanático ao ponto da inconsequência, e na prática um aliado dos inimigos de Cícero; Catalina, um sociopata obcecado pela riqueza e pelo exercício da corrupção; e Clodius, um jovem ambicioso, adulador e traiçoeiro. Lustrum retrata de forma épica a luta desigual destes homens contra o íntegro, embora complexo e não completamente imaculado, Cícero, cuja ambição era deixar o seu nome gravado na História da República.

Lustrum é um livro que propicia uma leitura excitante e que, para além das reflexões acerca do seu conteúdo, suscita uma inevitável questão de outra ordem, nomeadamente se um bestseller pode ter um incontestado valor literário. Embora eu não seja de todo um leitor de livros mais vendidos, penso que a qualidade literária não é o maior apanágio desses livros. E julgo que é uma grande pena, pois estou convicto que a humanidade estaria muito melhor se Stendhal, Swift, Dostoevsky, Tolstoi, Kafka, Eça de Queiros, Graciliano Ramos, García Marquez, etc. fossem consistentemente os autores dos livros mais vendidos.

Mas considero justo referir que há também entre os mais vendidos, livros que são estimulantes e muito bem escritos. E que há autores de bestsellers que têm a capacidade de escrever livros de grande qualidade, de criar novos géneros literários, e reflectir sobre a cultura contemporânea de forma crítica e original. Muito particularmente, julgo que Robert Harris é um autor com uma enorme capacidade criativa e literária no género da ficção de natureza histórica. Na verdade, tendo tido a oportunidade de ler todos os seus livros de ficção, Pátria, Enigma, Archangel, Pompeia, Império, Escritor Fantasma (que considero o menos interessante de todos) e agora Lustrum, tenho que dizer que os considero todos muito bem conseguidos literáriamente e que são invariavelmente óptimas leituras. E estou ansioso por ler o livro derradeiro desta trilogia sobre a vida de Cícero que supostamente será publicado em 2011. Mas até lá, felizmente, não faltarão livros excitantes!


Orfeu B.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

AS FALSAS E AS "VERDADEIRAS" MEMÓRIAS




De William Boyd foi publicado recentemente, em português, uma obra intitulada “Viagem ao fundo de um coração” (Casa das Letras) que me colocou a questão das falsas e das verdadeiras memórias. Trata-se de um romance assente na memória da personagem principal que nos relata muitas das peripécias da sua vida social e dos seus encontros com figuras históricas marcantes dessa época, tentando dar à narrativa um tom de verdade, e que tem para o autor a finalidade de reconstituir o espírito do século XX, o que consegue, aliás, de maneira digna de admiração. É uma ideia interessante mas comum que abre grandes possibilidades sobretudo no romance histórico. Contudo, para ser válida, carece de um fundo de autenticidade que lhe confira coerência ou verossimilhança interna e externa (ou contextal). Ora, a leitura das primeiras dezenas de páginas leva-nos a duvidar dessa verossimilhança: o herói está sempre nos pontos cruciais dos acontecimentos e o seu encontro com personalidades históricas relevantes é de uma coincidência espantosa. Na verdade, Boyd tem uma cultura apreciável e um conhecimento de fontes históricas e sociais que lhe permite criar ambientes e manusear com desenvoltura personagens e acontecimentos. A impressão de uma falsa memória é algo que se vai impondo e tirando credibilidade à narrativa, o que me levou a reflectir sobre as”falsas” e “verdadeiras” memórias que a literatura nos pode apresentar, concedendo embora que todas as memórias têm o seu quê de reconstrução e, portanto, de criação. Cito apenas dois exemplos tirados do livro mencionado. Um refere-se aos episódios pretensamente passados com o Duque de Windsor (ex-rei Eduardo VII) e a Duquesa , sua esposa, no qual o duque é apresentado como uma personalidade fraca, sendo totalmente dominado pela mulher. Ora, este é um conhecimento comum que a pequena História nos tem trazido. Mas o que podia ser um factor de verossimilhança é enfraquecido pelas aventuras mirabolantes do herói do romance com a família Windsor e, em especial, com a Duquesa. O outro exemplo que não é muito diferente, refere-se a E. Hemingway, escritor de personalidade arrebatada, capaz de transformar o seu maior amigo num inimigo de estimação. Estou a pensar na relação de Hemingway com Saroyan. Essa faceta arrebatada daquele escritor tem sido relatada por vários contemporâneos, inclusivamente pelo próprio Saroyan que refere em escritos seus essa característica de Hemingway.
Estes dois exemplos, entre muitos outros possíveis, que atestam a apropriação por Boyd de lugares comuns da História, levam-nos a pôr em causa o procurado carácter testemunhal e a verossimilhança de um relato pretensamente factual. Ora essa pretensa factualidade não é, nem pode ser, a verdadeira carcterística do romance histórico, a qual assenta na verossimilhança dos acontecimentos relatados.
A referência a Saroyan levou-me, por contraste, a evocar uma história que o escritor nos relata e se passa em Lisboa, nos anos quarenta, durante a 2ª guerra mundial. E cito essa história pelo seu duplo interesse: como forma de apresentação, baseada num testemunho pessoal, de uma personagem histórica – Calouste Gulbenkian e por ser pouco conhecida.
Saroyan passou por Lisboa nessa época e hospedou-se no Hotel Avis, o melhor da cidade, onde Gulbenkian reservara para si o último piso do hotel que ocupou durante vários anos. Nessa noite, Gulbenkian deixou a sua sala de jantar privativa e foi à sala de jantar do hotel, onde se encontrava Saroyan, o qual assistiu a uma cena curiosa: a entrada do capitão de um barco ancorado no Tejo que tentava convencer GulbenKian a comprar a carga do barco que ele capitaneava. As autoridades marítimas haviam dado ordem para o barco deixar Lisboa nessa mesma noite, o que teria como consequência a apreeensão da carga, mal saísse a barra. O negócio que o capitão propunha era o seguinte: a venda a Gulbenkian pelo valor de cinco mil contos (hoje, pelo menos cem vezes mais ) da carga do navio que no dia seguinte Gulbenkian poderia vender pelo dobro do preço, atendendo ao valor que essas matérias primas tinham para qualquer um dos beligerantes (ingleses e alemães). Este argumento não convenceu Gulbenkian que apenas lhe respondeu não estar interessado em fazer mais negócios. Este encontro testemunhado por vários presentes dá-nos, de uma pincelada, a imagem de um homem extremamente rico, para o qual o dinheiro já não tem a mínima importância. Este, sim, é um episódio que se apresenta com cunho de veracidade. Em suma, há uma grande diferença nas memórias de que a literatura se serve quando elas se baseiam na recolha documental, por mais minuciosa que seja, ou quando expressam vivências do autor, como é o caso de Somerset Maugham, em geral, e, em especial na novela ”Mr Ashendem”. Nesta novela pretende-se também dar uma visão de aspectos históricos do século XX, confessando declaradamente o autor, no prefácio que a antecede, ter-se inspirado na sua experiência de agente secreto ao serviço da Inglaterra, na 1ª guerra mundial, experiência remodelada “ao serviço da ficção” (Mr Ashendem et autres nouvelles, p. 797, Omnibus).

sábado, 21 de agosto de 2010

Roteiro para uma cave em chamas


Naquele breu onde nada se via, subterrâneo onde era suposto habitarem todos os animais da terra, apenas se ouvia um riso fino. Vindo do nada, um riso. Quem és tu que não te vejo? Quem sou eu que não me conheço?

Vi-a tecer uma teia entre as raízes das árvores e estendê-las às árvores vizinhas. Estendê-las, mais e mais, ligando árvores, até serem todas em rede. Segredou-me que tinha que ser assim, uma teia invisível à superfície.

...

Quase me perco na tranquilidade daquele deixar-me ir e o ficar. Enquanto o corpo sara lentamente. Prolongo a imobilidade até ser completamente reestabelecida. Acordo em paz, com Miriam sobre o meu ombro, quase se despedindo. A folha desfaz-se ser ter sido preciso queimá-la. Um fogo invisível está agora presente dentro de mim. E também o ser que o guarda.

Ana Viana

Instalação que incorpora uma obra literária, fotografia, vídeo, desenho, pintura e objectos, "Roteiro para uma cave em chamas", é a síntese do trabalho colectivo de Ana Viana, António Paulo, Francisco Condessa, Gila, Manuel Álvaro e Miguel Brazete. Uma manisfestação múltipla que se materializa na exposição patente no Centro Cultural de Cascais até 10 de Outubro de 2010.

Trata-se mais concretamente dum trabalho colectivo que tem como ponto de partida um texto de Ana Viana. Ponto de partida ou de chegada, pois as múltiplas manifestações artísticas presentes nesta composição podem ser vistas como que dispostas segundo uma espiral que pode ser percorrida do interior para o exterior, ou vice-versa. Pouco importa, importa acima de tudo é a leitura, intelectual e sensorial. Importa, na minha óptica, deixar-se enredar na urdidura da aranha Miriam, que laboriosamente procura limpar-incendiar a cave repleta de textos por organizar. Textos reais? Textos potenciais? Suponho que a resposta é muito menos relevante do que a postulação da pergunta. Mais correctamente, das perguntas.

Uma singela hipótese, para estimular o aparecimento doutras mais elaboradas:

Miriam, nome etimologicamente derivado do egípcio Myrhiam, que significa "princesa", e que também é equivalente a Maria. Miriam, irmã de Moisés e Arão, que salva o primeiro das águas do Nilo. Personagens que na Torá hebraica protagonizaram o salto da escravidão para a liberdade, e que desencadearam os inevitáveis e essenciais descaminhos decorrentes.

Orfeu B.


segunda-feira, 16 de agosto de 2010

O pintor de batalhas

...

Un largo camino. Había una trama subyacente, una perspectiva fabulosa e interminable como un bucle, que recorría el círculo del mural sin detenerse nunca, integrando cada uno de los elementos, relacionando entre sí las naves que zarpaban bajo la lluvia, la ciudad en llamas sobre la colina, los fugitivos, los soldados, la mujer violada y el niño verdugo, el hombre a punto de morir, los bosques con ahorcados, colgantes como frutos, la batalla en el llano, los hombres acuchillándose en primer término, los jinetes a punto de entrar en combate, la ciudad durmiente y confiada entre sus torres de acerro, hormigón y cristal. El universo visible y la inmensidad concebible de la naturaleza. Todo lo que había querido pintar estaba allí: Brueghel, Goya, Uccelo, el doctor Atl y los demás, cuantos dispusieron la mirada y las manos para expresar lo qua a lo largo de su vida había penetrado por el visor de la cámara hasta la caverna de Platón de su retina ...

Arturo Pérez-Reverte


Do autor de La tabla de Flandres, esta novela intensa sobre a violência da guerra e a devastação psicológica que esta engendra. Um texto sobre a busca da geometria invisível subjacente a tudo, e sobre como por entre o caos da guerra agregam-se a arte, a ciência, o amor, a lucidez e a solidão.

Um livro sobre a busca da síntese: numa torre junto ao Mediterrâneo, um fotográfo de guerra procura, depois de três décadas a fotografar batalhas, pintar num fresco circular a paisagem intemporal que nunca fora capaz de capturar por meio da fotografia.

Uma novela de grande actualidade e que se lê de um jacto, mas que não deixa de plantar sementes de inquietação no leitor. Uma reflexão absolutamente necessária sobre o tempo em que vivemos.

Orfeu B.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

ALGUMAS QUESTÕES ACERCA DE PUBLICAÇÕES PÓSTUMAS




A publicação do texto de Vladimir Nabokov, “ O Original de Laura” (numa bela edição da Teorema), vem uma vez mais suscitar a questão da publicação de obras inéditas de autores falecidos, autores que, declarada ou implicitamente, não queriam essas obras publicadas. E fá-lo com uma agudeza gritante, não só pelo conteúdo do texto ( apenas fichas, por vezes esparsas), como também por ser publicado contra o pedido expresso da sua destruição, caso ele não tivesse sido concluído antes da sua morte.
Se há casos em que se justifica uma publicação que o autor não queria que o fosse (KafKa é o exemplo clássico) e se noutros se pode descortinar uma razão, outros há em que se não vislumbra qualquer justificação. Caso interessante é o da obra de Truman Capote, “Travessia de Verão”, obra de juventude editada pela D. Quixote, uma novela cheia de frescura mas de escrita por vezes um tanto incipiente, embora promissora. Texto que não acrescenta à glória do autor mas que permite compreender a evolução do seu estilo. Enfim, questões a discutir, com respostas variáveis , consoante a postura dos intervenientes. O que não é o caso da “obra”(?)de Nabokov, que, embora publicada com os cuidados possíveis, nem de perto nem de longe apresenta qualquer semelhança com uma obra literária. Creio que a melhor solução teria sido depositá-la numa biblioteca para consulta de estudiosos interessados em aprofundar o mundo obsessional do autor ( a morte, o sexo, o amor).
Esta é apenas uma opinião que vale o que vale, e que tem como finalidades provocar a reflexão dos meus leitores sobre o problema da pertença da obra literária ao seu autor e da legitimidade de dispor livremente dela, sabendo que a sua vontade será respeitada mesmo para além da sua vida e levá-los a discutir as condições em que ela pode (e deve) ser desrespeitada em função de um juízo de interesse público. Feito por quem e com que legitimidade? E com que critérios?

terça-feira, 10 de agosto de 2010

O LIVRO DO SAPATEIRO


Bela viagem através de um conjunto de poemas de grande qualidade e emoção. A profissão do sapateiro é aqui tomada como metáfora ou como paralelo da profissão do escritor.

A mão do sapateiro e a mão que escreve. O enclausuramento na cave do sapateiro e do escritor. A luz que vem apenas da janela ao alto. O ofício que fica gravado nos sapatos e no andar de quem os leva.

A metáfora é trabalhada quase até ao limite, o que leva a que alguns poemas percam em grandeza para se aterem à construção desta relação circular e quase obsessiva da palavra com o ofício do sapateiro.

Apesar disso, ou também com isso, Pedro Tamen é um dos poetas que mais me emociona, pelo rigor do ofício e pela espessura intensa do olhar.

Este excelente e seriíssimo poeta reforça a ideia da poesia como ofício e arte de voar para dimensões exteriores ao registo cru e curto da poesia do quotidiano tão na moda ultimamente.

sábado, 7 de agosto de 2010

CADERNOS DE UM CAÇADOR



Tento enumerar algumas características que fazem um grande romance ou uma grande colecção de contos. Haverá mais, por certo, mas proponho-me pensar nestas:

a capacidade de efabulação, de montar com eficácia a máquina narrativa;

a capacidade de criar personagens que transportem o leitor para uma dimensão inesperada e intensa da diversidade humana;

a requintada e rara arte da escrita que surpreende, amarra e conduz o leitor independentemente da própria linha central da narração.

a capacidade de nos transportar para uma dimensão superior da experiência estética.

Os grandes escritores russos do século XIX, como é o caso de Turgueniev, tinham estes atributos em larga escala.

Muitos bons e sublinhados escritores da actualidade têm várias destas qualidades em maior ou menor grau. Com frequência conseguem ser eficazes porque seguem as regras e o o fluir dos consabidos tempos da novela, tão repetidos em cursos da chamada escrita "criativa", e fazem correr a sua história com o devido asseio e despacho.

Mas falta-lhes muitas vezes a arte da grande escrita. É por isso que, na leitura de muitos romances actuais chegamos a cerca de metade, dois terços, e temos o sentimento de que o escritor não anda nem desanda, a história fica a marinar, as personagens não saem da mesma, as situações repetem-se, as palavras parecem sair de uma máquina a funcionar em seco.



Turgueniev era um mestre na grande arte da escrita. As suas descrições de paisagens, animais, poderosas personagens, delicados ou tremendos estados de alma, são primorosas. Levam-nos a emoções que não tínhamos experimentado.

Talvez a escrita de um escritor como Turgueniev exija um leitor diferente da maior parte dos romances actuais. Exige, talvez,um outro tempo de leitura. O tempo de saborear as palavras,de nos deixarmos embalar pela sua paixão pela natureza e, mais, pelas palavras com que nos oferece essa paixão e connosco compartilha essa emoção pelo drama dos homens e das mulheres e esplendor da paisagem sem fim da sua Rússia.

Turgueniev leva-nos através da história de uma personagem. mas logo a interrompe a propósito das árvores de um bosque, da pesca num rio, de uma lebre que foge, de um homem que canta... Leva-nos aonde nos quer levar e traz-nos de volta à história interrompida páginas e páginas depois e fá-lo porque a sua arte é deslumbrante e irrecusável.

Há poucos dias li que o escritor norueguês Kjeill Asklidsen perguntava em que é que a alegria é interessante para uma história. Pois em Turgueniev é permanente a alegria pelas maravilhas da natureza e essa alegria não o impede de desenhar com dureza a drama dos servos e de denunciar a organização de uma sociedade a viver ainda nas faldas do feudalismo

Na contracapa deste livro cita-se Harold Bloom, o conhecido crítico americano, que o coloca entre as grandes obras da literatura de sempre.

Li-o em início de férias, quando no peito ainda borbulhava o caldeirão das angústias do dia-a-dia. Com este extraordinário livro de contos saí desse caldeirão para o tempo maravilhoso da grande literatura.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

SAÚDE, CIÊNCIA E RAZÃO




Este romance do meu amigo Francisco Moita Flores lê-se apaixonadamente. Não falo da paixão pelo enredo dramático em si mas pela questão central que atravessa a sua escrita que é a da luta entre razão e ciência, por um lado e, por outro, a fé religiosa e os hábitos incrustados na população e resultantes da falta de cuidados modernos de saúde.

O autor criou uma ficção próxima da realidade em torno da procura do assassino de Sidónio Pais, questão ainda hoje sem resposta, e através dessa ficção faz circular o seu vasto conhecimento sobre a situação da justiça e da investigação policial durante o Período da República e os primeiros e angustiosos passos das Ciências forenses, da Polícia de Investigação Criminal, da Medicina Legal e também da Saúde Pública.

Por aqui passam ou são referidas figuras reais, históricas e míticas de médicos da época: Miguel Bombarda, Ricardo Jorge, Sousa Martins e outros. Homens que construiram alguns os alicerces da modernidade em Portugal.

O ambiente da Lisboa onde se passa este romance é de negrura e miséria atravessadas por um turbilhão de confusões políticas, perseguições e ajustes de contas. Um tempo em que se ancia o falhanço do projecto democrático republicano e se anuncia a emergência da ditadura que tem uma primeira tentativa justamente através da figura de Sidónio Pais, o Presidente-Rei como lhe chamava Fernando Pessoa.

Enquanto ainda se combate e morre nas trincheiras de França a gripe "espanhola" ou "pneumónica" faz uma razia na população, agravada pela falta de cuidados de higiene básica.

A personagem principal é o dr. Asdrúbal de Aguiar, médico legista que procurou a todo o custo fazer os exames necessários para descobrir o assassino de Sidónio usando métodos modernos e científicos contra a incapacidade grosseira da polícia que arranja um culpado que confessa o crime através da pancada pura e dura.

Levada pela mão segura de quem sabe bem entretecer os fios novelescos, a ficção que envolve os factos reais agarra-nos e faz-nos atravessar a trama de uma forma por vezes pungente, por vezes emocionada, terna, cómica ou sarcástica.

Moita Flores é um escritor de bem. Trata bem as suas personagens. Não ingora mas deixa de lado a perversidade, e concentra-se no lado melhor de cada uma dessas personagens. Ana Rosa, o dr. Asdrúbal de Aguiar, o dr. Azevedo Neves, o divertidíssimo dr. Moreira Júnior (actor de magníficas cenas de comédia a pedirem para passar ao écran, grande ou pequeno).

No final fica-nos a certeza de que há pouco menos de 100 anos estávamos em muitos campos em plena pré-história, nomeadamente no que diz respeito à saúde pública e às ciências forenses.

domingo, 1 de agosto de 2010

A Estranha





"El mar no es capaz de sufrir ... Entonces, ¿con qué finalidad fue creado?" Aquel mundo vacío, privado se sentido y finalidad desde tiempos ancestrales, se extendía indiferente a su alredor. " Solo la razón es capaz de doler", se dijo.

La Extraña



Autor duma obra singular, Sándor Márai nasceu em 1900, em Kassa, cidade do Império Austro-Húngaro, hoje Kosice na Eslováquia. Na década de 1930 adquiriu a reputação de ser um dos mais originais escritores húngaros. Sobreviveu à guerra apesar da sua profunda aversão e aberta oposição ao fascismo. Em 1948 foi levado a deixar a Hungria depois da ascensão do comunismo, cuja força destrutiva também repudiava. Viveu de seguida na Suíça e na Itália, até obter a nacionalidade norte-americana e fixar-se em San Diego, Califórnia, na década de 1970. Depois de perder a esposa em 1986 e o filho adoptivo em 1987, Márai suicida-se em 1989. Conta-se que só após a organização dos seus pertences, que a esposa de seu filho e os seus netos se deram conta de quão profícuo e proeminente Márai era enquanto autor.

O homem que nos seus 46 livros, 27 dos quais de ficção, descreveu e dissecou a desintegração material e moral causada pela guerra, pelo fascismo e pelo comunismo, também não exímia o consumismo e o "lixo da economia de mercado" como causas do declínio do humanismo e da sociedade burguesa.

Não sendo ainda muito conhecido entre nós, as recentes e excelentes traduções para o português das suas obras mais representativas, são um agradável exemplo de clarividência e discernimento editorial. No entanto, como recentemente pude constatar, em Espanha há muitos mais títulos traduzidos e a reacção entusiástica da crítica faz antever que muitos outros aparecerão num futuro próximo.

A novela A Estranha foi escrita em 1934. Julgo que se o autor não tivesse sido ostracizado pelo regime comunista húngaro que baniu completamente a sua obra, este livro seria mais conhecido e figuraria, junto com alguns títulos de Dostoyevski e outros de Kafka, como um dos mais representativos antecedentes literários do existencialismo que década e meia mais tarde ganharia corpo enquanto movimento filosófico.

Profunda e evocativa, a escrita de Márai cartografa detalhadamente as paisagens da alma. Há semelhanças notáveis, a nível indagativo e de enredo, dado que ambos envolvem um assassinato cuja responsabilidade nunca é categoricamente assumida ou negada, com o Estrangeiro de Camus, livro escrito em 1942. Na obra de Márai, o protagonista, um brilhante linguista e orientalista parisiense, Viktor Askenasi, a pretexto de imprescindíveis férias, encontra-se num buliçoso hotel em Dubrovnik a examinar as suas duvidosas decisões existenciais, sem contudo ajuizá-las segundo os códigos sociais vigentes. E entre as conversas mundanas das famílias veraneantes e o intenso calor, o seu estado de perplexidade moral é exacerbado pela percepção da pronúncia duma estranha que com um forte acento berlinense solicita, na recepção do hotel, a chave do quarto "Zwoundvierzig".

O acontecimento liberta um fluxo inexorável de sentimentos, levando-o finalmente ao quarto da estranha e ao território ignoto da loucura. Através dum relato tenso, lúcido e analítico, Márai conduz-nos ao âmago das questões fundamentais, ao coração da insatisfação existencial e das questões centrais da identidade, das ambiguidades do amor, por entre os labirintos da solidão, sempre num equilíbrio instável entre a auto-preservação e a dissolução individual.

Enfim, um texto que nos lança para territórios essenciais e que despretensiosamente demonstra a necessidade absoluta da literatura enquanto instrumento imprescindível de reflexão sobre a problemática da existência e sobre os destinos da humanidade.

Orfeu B.