quinta-feira, 22 de abril de 2010

LITERATURA, AMOR, AMIZADE E GUERRA



Será muito difícil escrever a guerra para quem não a viveu directamente no campo de batalha. O medo, a morte, o cheiro, a pólvora, a relação entre os soldados, a chuva, a lama, o medo… Talvez a escrita ajude a curar a dor e a irracionalidade que todo o combatente traz agarrada à pele.

Quem viveu a guerra poderá usar a escrita como terapia, testemunho, grito… Que sei eu.

Quem não a viveu terá de fazer um trabalho de reconstituição muito cuidadoso que pode ser mais realista e descritivo ou mais vivencial, mesmo que essa vivência seja apenas ficcional.

O meu amigo Sérgio, professor de História, soube fazer muito seriamente o seu trabalho de casa. Reconstruiu cuidadosamente o ambiente que se vivia em Portugal em plena ditadura Sidonista, evitando muito avisadamente qualquer espécie de preconceito ideológico para que seja o personagem principal a confrontar-se não com a ideologia mas com o resultado da ideologia que foi o matadouro de La Lys, Verdun, etc, etc.

O Capitão Blanc é um jovem sidonista, militar de carreira, filho de outro militar de carreira, que procura cumprir com garbo e eficácia a missão de observador das acções no teatro, ou melhor dizendo, nas trincheiras da I Guerra Mundial.

Blanc mergulha nesse mundo apocalíptico e, a pouco e pouco, a partir do convívio com os soldados esgotados, revoltados e transformados quase em fantasmas, vai passando a olhar para a guerra como um jogo horrível e absurdo, um jogo de políticos e generais que, para ganhar poucas centenas de metros de lama ao inimigo, não hesitam em mandar milhares ou milhões de homens para a morte.

Blanc balança entre as memórias da infância e uma realidade assustadora e não será o mesmo homem depois de passar por um inferno cuja descrição arrasadora, circular e quase obsessiva, nos arrasta e envolve num baile negro de horror e podridão.

Mas nesse cenário terrível há ainda lugar para a humanidade e o romantismo através da amizade viril e limpa com o cabo que o conduz de moto através dos lugares da guerra, e do amor com uma enfermeira americana que se mistura na memória do capitão com a doce preceptora irlandesa da sua infância.

Blanc aproveita a sua missão para procurar alguém no meio da guerra, alguém com quem tem umas contas atrasadas para resolver. E aí, Sérgio Luís de Carvalho mostra todos os seus recursos, criando um desfecho inesperado e muito intenso para essa busca.

Conhecer os tempos da República através da literatura é um exercício muito enriquecedor. Fazê-lo através da pena do Sérgio é uma experiência excelente para conhecermos Portugal e os portugueses há pouco menos de cem anos, tão distantes e tão próximos de nós.

domingo, 11 de abril de 2010

O QUE FICA DO QUE SE LÊ?


O

Um mistério que me tem acompanhado ao longo da vida (vida comprida, de muitas dezenas de anos de leituras feitas), é o de saber o que fica (e por que fica) dos livros que tenho lido. O enredo? O estilo? O inesperado das situações? As características das personagens? É mistério que nunca consegui decifrar, o que me leva a supor que não obterei resposta se vir a questão apenas pelo lado do objecto (isto é, do texto literário) e me esquecer do sujeito (do sujeito leitor e dos seus estados de alma). Dizer que o fenómeno resulta da conjugação destas duas ordens de factores é uma “boutade” de bom senso, que nada explica. E o mistério avoluma-se quando as coisas se passam com os contos que escrevi: se há textos que me continuam presentes, outros há em que dificilmente me reconheço. Enfim, o que não tem explicação, explicado está.
Estas considerações vêm a propósito de uma obra de Lev Tolstói, que acabo de ler: “O Diabo e Outros Contos” (Relógio d’Água, 2008). Textos que eu já conhecia, em traduções (versões?) portuguesas anteriores ou em traduções francesas, mas de que tinha apenas uma pálida lembrança. Ou, para ser mais exacto, dos seis textos que constituem o livro, eu só conhecia cinco, pois havia um (“Depois do Baile”) que me era totalmente desconhecido. É um conto admirável, de equilíbrio notável entre forma e conteúdo. Um pequeno conto de nove páginas, quase exclusivamente centrado na descrição das emoções, nos sentimentos do protagonista, descrição suportada por um fio narrático extremamente subtil. Num baile de sociedade, em São Petersburgo, um jovem apaixona-se por uma beldade, com quem dança, em inebriamento de música, movimento e olhares. O estado de graça em que ele vai mergulhando atinge o seu clímax quando a jovem dança com o pai, coronel do exército do czar, oficial ainda pleno de garbosidade. É um quadro que o faz amar ainda mais a jovem, amor, admiração, que se derrama pelos que com ela estão, o pai em primeiro lugar. Um mundo perfeito que lhe é revelado.
Regressado a casa, a exaltação em que vive não o deixa dormir, o que o leva a sair, em rota de aproximação da casa da sua amada, ainda o dia está a nascer. Num descampado, surge-lhe um espectáculo surpreendente: duas filas de soldados, um rufar de tambores e um desgraçado de um tártaro-soldado fugitivo, violentamente espancado pelos seus irmãos de armas, costas em chaga viva, e que grita: “Amigos, piedade!”. Quem comanda o castigo e incita à crueldade é o coronel da paternidade. Perante esta visão, todo o emaravilhamento da noite do baile se vai esfumando e, com ele, a sua paixão. Para dar lugar a uma interrogação: o que é que ele não sabe e os outros conhecem, para considerarem normal aquele acto de selvajaria?
Interrogação para a qual não encontra resposta, mas que muda a sua vida: não ingressa no serviço militar, como tencionava, nem em nenhum outro serviço em que houvesse chefe e chefiados, pois não se sente com préstimo para coisa alguma em que a relação de violência estivesse presente.
Um texto tão inesperado, tão fora do comum, tão profundamente humano, que não posso deixar de pôr uma questão: será este um dos textos que guardarei, para todo o sempre, na caixa negra da minha memória? Ou terá o mesmo destino dos outros cinco que compõem o ramalhete do livro de Tolstói? Bem, daqui a dez ou quinze anos, se vivo ainda for, direi de minha justiça…

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Sidereus Nuncius



MENSAGEIRO
DAS ESTRELAS
que desvela espectáculos
GRANDES E IMENSAMENTE ADMIRÁVEIS,
propondo a cada um, mas sobretudo
AOS FILÓSOFOS E ASTRÓNOMOS, contemplar o que
GALILEO GALILEI,
NOBRE FLORENTINO,
professor de matemática da Universidade de Pádua,
observou com o auxílio de uma
LUNETA
por ele recentemente concebida, na FACE DA LUA,
AS INUMERÁVEIS ESTRELAS FIXAS, A VIA LÁCTEA,
NEBULOSAS
e, sobretudo,
QUATRO PLANETAS
revolvendo em torno de JÚPITER, a distâncias e
com períodos diferentes, com espantosa rapidez, os quais
ninguém até hoje divisara, e agora pela primeira vez
foram vistos pelo Autor
E POR ELE DESIGNADOS DE
ESTRELAS MEDICEIAS.

Veneza, Tommaso Baglioni, 1610



Nada menos que 400 anos de atraso. No entanto, com a devida pompa e circunstância no encerramento do Ano Internacional da Astronomia. Enfim, antes tarde do que nunca, a primeira tradução em Portugal do Sidereus Nuncius, O Mensageiro das Estrelas de Galileo Galilei. E para tal foi instrumental o Ano Internacional da Astronomia, o maior evento de divulgação científica jamais empreendido, e que por meio de centenas de milhares de actividades levou cerca de 100 milhões de pessoas a participarem em eventos educacionais e na observação do céu em 148 países.

Mas, a bem da verdade, a primeira tradução para o português é devida ao filósofo e historiador brasileiro Carlos Ziller Camemietzki, numa encomenda do Museu de Astronomia e Ciências Afins do Rio de Janeiro, em 1987. Uma edição de bolso foi relançada na primeira metade de 2009 pela revista Scientific American Brasil. Mas este detalhe não impediu a nossa comunicação social de alardear a tradução em Portugal como sendo a primeira para a língua de Camões. E infelizmente, sem qualquer reflexão histórica sobre como foi possível este esquecimento de 400 anos.

Naturalmente, não deve haver qualquer dúvida quanto a importância desta tradução (e para qualquer língua!), pois o Sidereus Nuncius, o De revolutionibus orbium coelestium (1543), Sobre a Revolução das Esferas Celestes de Copérnico, e os Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica (1687), Princípios Matemáticos da Filosofia Natural de Newton, são os livros que desencadearam uma das mais profundas transformações da história da humanidade, a revolução científica.

Mas há que se compreender que as traduções deste livro fundamental foram sempre algo tardias dado que, apesar do impacto causado pelas 550 cópias da primeira edição Veneziana de Março de 1610, os que fundamentalmente se interessavam pela sua temática, "os filósofos e astrónomos", eram educados e escreviam sobre as suas ideias e descobertas em Latim, língua na qual praticamente todos os estudantes universitários na Europa tinham que ser proficientes, pelo menos até o final do século XVIII.

As edições imediatamente subsequentes do Sidereus Nuncius são de 1611, esta sob a forma de xilogravura, e possivelmente ilegal apareceu em Frankfurt, e de 1653 em Londres, na qual constava outras obras de Galileo. Para além do facto cultural acima mencionado, há a interdição imposta pela Igreja Católica Apostólica Romana que classificou o livro como "falso" por defender que a Terra girava em torno do Sol e colocou-o no Index dos livros proibidos em 1616, um anátema de grande peso. Assim, a primeira tradução para o francês apareceu em 1681, para o inglês em 1880 e para o alemão só em 1965!

O objecto do livro está descrito no frontespício do opúsculo de sessenta páginas reproduzido acima. Mas para além das descobertas absolutamente notáveis que são ali descritas, há a mente dum cientista em verdadeiro estado de ebulição, e acima de tudo, um princípio de acção. Isto é, uma metodologia, comummente referida como científica, que é baseada na observação dos factos e na construção de hipóteses que os explicam, podendo estas serem confirmadas ou refutadas através de observações suplementares. Foi esta a metodologia que substituiu o modo escolástico medieval de pensar, quase que completamente baseado em argumentos teóricos frequentemente infundados, pelo racionalismo moderno que molda a razão e as teorias em função dos factos e na verificação experimental de hipóteses.

Em suma, o magro livro de Galileo tem no seu seio a raiz de um dos elementos mais fecundos da civilização europeia; muito possivelmente a causa mais fundamental que propiciou à Europa a hegemonia do mundo nos séculos sucessivos. A revolução científica impulsionou não só as ciências e o pensamento, mas foi também um elemento decisivo da Revolução Industrial. Não é por acaso que o poeta místico inglês William Blake culpava Newton por todos os males que assolaram o mundo do seu tempo, e mais concretamente pela transformação do mundo rural e bucólico em um mundo urbano, mecanizado e desumanizado. Muito possivelmente, as suas convicções ficariam reforçadas se lhe fosse dada a oportunidade de vislumbrar o nosso tempo. A revolução científica transformou irreversivelmente o mundo. E curiosamente, a ciência encontra-se hoje numa posição semelhante à da Igreja Cristã no tempo de Galileo. Então, aquela instituição detinha a hegemonia do conhecimento oriundo de Jerusalém, Atenas e Roma, os focos fundadores da nossa civilização, e a sua posição determinava praticamente todas as actividades humanas na Europa, em parte da Ásia, e na Ámerica. Hoje, a ciência está na base de todas as decisões e baliza a nossa visão do mundo e do Universo (é a convicção deste autor que estamos muito melhor desta forma, apesar de todos os malefícios e perigos que hoje enfrentamos).

Assim, na opinião do presente autor, qualquer pessoa que tem a curiosidade de compreender o caminho que historicamente percorremos sairá beneficiada com a leitura deste livro de Galileo. O leitor poderá então entender como os livros deixaram de ser só veículos de ideias para se tornarem em ferramentas de transformação do mundo. E podem os leitores portugueses agora fazê-lo graças à competente tradução do historiador da ciência Henrique Leitão e à generosa edição da Fundação Calouste Gulbenkian que compreende: um elucidativo estudo introdutório devido ao tradutor; uma breve cronologia dos antecedentes e das observações que dão corpo ao livro; a tradução e valiosas notas explicativas; e a reprodução facsimilada da primeira edição de Março de 1610.


Orfeu B.



sexta-feira, 2 de abril de 2010

5 DE OUTUBRO

Estudar História é, ou devia ser também, mergulhar nas histórias de que é feita a História.

A ficção que se constrói sobre temas históricos traz-nos o cheiro de uma época, os tiques, os maneirismos, o recorte das principais figuras, as suas ansiedades e desejos, os seus amores.

A ficção não substiui mas contribui e muito para dar carne à matéria abordada pelo ensaio e pela investigação histórica.

Estamos em plenas comemorações do centenário da República. Têm sido dados à estampa alguns romances cuja acção incide directamente sobre os anos imediatamente anteriores e posteriores à implantação da República. Vale a pena visitá-los e fazer dessa visita uma forma menos pomposa mas mais apaixonante de comemorar o centenário do 5 de Outubro.

Lembro-me de alguns como "Café República" de Álvaro Guerra, "O milagre segundo Salomé" de José Rodrigues Miguéis, e mais recentemente "As Cidadãs" de Maria Filomena Beja, "O destino do Capitão Blanc" de Sérgio Luís de Carvalho, "1910" de António Trabulo e este "5 de Outubro" de Lourenço Pereira Coutinho.





O autor dá-nos neste romance um painel cheio de cor social e humana da teia fervilhante onde, entre encontros e desencontros, se faziam e desfaziam planos de muitos atentados, revoltas, compromissos políticos, conluios, conspirações que enredavam a sociedade portuguesa nos meses anteriores ao 5 de Outubro.

Por aqui se cruzam os republicanos, os monárquicos, os revolucionários, os moderados, os carbonários... A escrita ritmada e ligeira leva-nos a espreitar momentos da vida, das aspirações, dos amores de personagens tão importantes como o próprio Rei D. Manuel, José Relvas, Afonso Costa, Machado dos Santos, Paiva Couceiro...

Do Palácio das Necessidades à redacção do jornal A Lucta de Brito Camacho, do Hotel do Buçaco às barricadas da Rotunda, da casa dos Patudos em Alpiarça aos almoços no Tavares Rico e aos encontros clandestinos nos Banhos de S. Paulo, o autor passeia a nossa curiosidade por uma sociedades ligeirota e talvez pouco consistente, mas carregada de emoções excessivas.

A monarquia cai porque está pronta a cair. E cai sobretudo pela teimosia de Machado dos Santos, um visionário que na noite de 3 de Outubro, contra tudo e contra todos, entra com os seus carbonários pelo quartel de Infataria 16 e começa uma revolução em que parece que ninguém acredita a não ser ele próprio.

Em certos momentos parece ser uma revolução de opereta e nalgumas peripécias inesperadas é inevitável encontrarmos uma ou outra semelhança com a Revolução do 25 de Abril.

Quanto ao romance, deixa-se ler muito bem e isso já é dizer bastante.