MENSAGEIRO
DAS ESTRELAS
que desvela espectáculos
GRANDES E IMENSAMENTE ADMIRÁVEIS,
propondo a cada um, mas sobretudo
AOS FILÓSOFOS E ASTRÓNOMOS, contemplar o que
GALILEO GALILEI,
NOBRE FLORENTINO,
professor de matemática da Universidade de Pádua,
observou com o auxílio de uma
LUNETA
por ele recentemente concebida, na FACE DA LUA,
AS INUMERÁVEIS ESTRELAS FIXAS, A VIA LÁCTEA,
NEBULOSAS
e, sobretudo,
QUATRO PLANETAS
revolvendo em torno de JÚPITER, a distâncias e
com períodos diferentes, com espantosa rapidez, os quais
ninguém até hoje divisara, e agora pela primeira vez
foram vistos pelo Autor
E POR ELE DESIGNADOS DE
ESTRELAS MEDICEIAS.
Veneza, Tommaso Baglioni, 1610
Nada menos que 400 anos de atraso. No entanto, com a devida pompa e circunstância no encerramento do Ano Internacional da Astronomia. Enfim, antes tarde do que nunca, a primeira tradução em Portugal do Sidereus Nuncius, O Mensageiro das Estrelas de Galileo Galilei. E para tal foi instrumental o Ano Internacional da Astronomia, o maior evento de divulgação científica jamais empreendido, e que por meio de centenas de milhares de actividades levou cerca de 100 milhões de pessoas a participarem em eventos educacionais e na observação do céu em 148 países.
Mas, a bem da verdade, a primeira tradução para o português é devida ao filósofo e historiador brasileiro Carlos Ziller Camemietzki, numa encomenda do Museu de Astronomia e Ciências Afins do Rio de Janeiro, em 1987. Uma edição de bolso foi relançada na primeira metade de 2009 pela revista Scientific American Brasil. Mas este detalhe não impediu a nossa comunicação social de alardear a tradução em Portugal como sendo a primeira para a língua de Camões. E infelizmente, sem qualquer reflexão histórica sobre como foi possível este esquecimento de 400 anos.
Naturalmente, não deve haver qualquer dúvida quanto a importância desta tradução (e para qualquer língua!), pois o Sidereus Nuncius, o De revolutionibus orbium coelestium (1543), Sobre a Revolução das Esferas Celestes de Copérnico, e os Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica (1687), Princípios Matemáticos da Filosofia Natural de Newton, são os livros que desencadearam uma das mais profundas transformações da história da humanidade, a revolução científica.
Mas há que se compreender que as traduções deste livro fundamental foram sempre algo tardias dado que, apesar do impacto causado pelas 550 cópias da primeira edição Veneziana de Março de 1610, os que fundamentalmente se interessavam pela sua temática, "os filósofos e astrónomos", eram educados e escreviam sobre as suas ideias e descobertas em Latim, língua na qual praticamente todos os estudantes universitários na Europa tinham que ser proficientes, pelo menos até o final do século XVIII.
As edições imediatamente subsequentes do Sidereus Nuncius são de 1611, esta sob a forma de xilogravura, e possivelmente ilegal apareceu em Frankfurt, e de 1653 em Londres, na qual constava outras obras de Galileo. Para além do facto cultural acima mencionado, há a interdição imposta pela Igreja Católica Apostólica Romana que classificou o livro como "falso" por defender que a Terra girava em torno do Sol e colocou-o no Index dos livros proibidos em 1616, um anátema de grande peso. Assim, a primeira tradução para o francês apareceu em 1681, para o inglês em 1880 e para o alemão só em 1965!
O objecto do livro está descrito no frontespício do opúsculo de sessenta páginas reproduzido acima. Mas para além das descobertas absolutamente notáveis que são ali descritas, há a mente dum cientista em verdadeiro estado de ebulição, e acima de tudo, um princípio de acção. Isto é, uma metodologia, comummente referida como científica, que é baseada na observação dos factos e na construção de hipóteses que os explicam, podendo estas serem confirmadas ou refutadas através de observações suplementares. Foi esta a metodologia que substituiu o modo escolástico medieval de pensar, quase que completamente baseado em argumentos teóricos frequentemente infundados, pelo racionalismo moderno que molda a razão e as teorias em função dos factos e na verificação experimental de hipóteses.
Em suma, o magro livro de Galileo tem no seu seio a raiz de um dos elementos mais fecundos da civilização europeia; muito possivelmente a causa mais fundamental que propiciou à Europa a hegemonia do mundo nos séculos sucessivos. A revolução científica impulsionou não só as ciências e o pensamento, mas foi também um elemento decisivo da Revolução Industrial. Não é por acaso que o poeta místico inglês William Blake culpava Newton por todos os males que assolaram o mundo do seu tempo, e mais concretamente pela transformação do mundo rural e bucólico em um mundo urbano, mecanizado e desumanizado. Muito possivelmente, as suas convicções ficariam reforçadas se lhe fosse dada a oportunidade de vislumbrar o nosso tempo. A revolução científica transformou irreversivelmente o mundo. E curiosamente, a ciência encontra-se hoje numa posição semelhante à da Igreja Cristã no tempo de Galileo. Então, aquela instituição detinha a hegemonia do conhecimento oriundo de Jerusalém, Atenas e Roma, os focos fundadores da nossa civilização, e a sua posição determinava praticamente todas as actividades humanas na Europa, em parte da Ásia, e na Ámerica. Hoje, a ciência está na base de todas as decisões e baliza a nossa visão do mundo e do Universo (é a convicção deste autor que estamos muito melhor desta forma, apesar de todos os malefícios e perigos que hoje enfrentamos).
Assim, na opinião do presente autor, qualquer pessoa que tem a curiosidade de compreender o caminho que historicamente percorremos sairá beneficiada com a leitura deste livro de Galileo. O leitor poderá então entender como os livros deixaram de ser só veículos de ideias para se tornarem em ferramentas de transformação do mundo. E podem os leitores portugueses agora fazê-lo graças à competente tradução do historiador da ciência Henrique Leitão e à generosa edição da Fundação Calouste Gulbenkian que compreende: um elucidativo estudo introdutório devido ao tradutor; uma breve cronologia dos antecedentes e das observações que dão corpo ao livro; a tradução e valiosas notas explicativas; e a reprodução facsimilada da primeira edição de Março de 1610.
Orfeu B.
2 comentários:
Mas que grande mixórida.... O «Sidereus Nuncius» nunca foi proibido pela Igreja Católica nem colocado no Index. Disparate. Senhor Orfeu: mesmo para dizer mal é preciso estudar um bocadinho, tá bem ? (E, já agora: dizer mal da Igreja Católica é o grande entretenimento dos cobardes hoje em dia.... mas você sabe certamente que os membros dessa Igreja, sobretudo os da hierarquia, estão impedidos, por código de conduta, de lhe responder de volta. Seja valente e diga mal de alguma pessoa ou instituição que, contrariamente à Igreja Católica, lhe responda na mesma moeda. No fundo, é sobretudo uma questão de tomates, sabe?)
Caro Leitor, muito obrigado pelos seus comentários. Eu concordo consigo, no fundo é uma questão de "tomates". E o Leitor demonstra uma coragem admirável ao defender, sob a capa do anonimato, uma instituição que ao longo da história nunca teve problemas em exercer a sua prepotência contra os mais fracos, como por exemplo contra as centenas de cristãos novos que foram massacrados em Lisboa em 1506, ou contra Giordano Bruno que foi queimado vivo no Mercado das Flores em Roma em 1600. Infelizmente, muitos outros acontecimentos da mesma natureza poderiam ser enumerados. Relativamente aos escândalos mais recentes, percebe-se uma vez mais que quem tem "tomates" pode profanar a inocência de crianças sem ter que se preocupar com as consequências que qualquer cidadão teria que enfrentar caso cometesse crimes tão hediondos. Mas quanto as estes, eu suponho que sendo o Leitor tão atento e tão destemido, não os deixará de denunciar incansavelmente.
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