sábado, 23 de fevereiro de 2013

Um Médico Rural


Nu, exposto ao frio desta era infelicíssima, com um carro terreno e cavalos sobrenaturais, lá vou eu, um velho.

Franz Kafka

A propósito da recente representação do teatro Aramá do conto "Um médico rural" de Franz Kafka no Porto sob a direcção de Tó Maia, concepção e execução plástica de Hernâni Miranda e Pedro Esperança, música de Elísio Donas e a competente actuação dos actores, escrevo algumas linhas na esperança que este belo trabalho colectivo seja reposto e tenha uma maior audiência. Naturalmente, este desejo tem na sua raiz a crença pessoal na absoluta necessidade da leitura por todos da obra de Kafka, e na convicção do fundamental papel que grupos como o Aramá tem para o nosso desenvolvimento cultural, social e económico. 

Franz Kafka (1883-1924) consta de todas as listas que se possam fazer dos mais marcantes escritores do século XX. Kafka alterou irreversivelmente a paisagem literária do século XX, tanto ao nível linguístico, estilístico e existencial, mas acima de tudo, apresentou a condição humana depois do século XX com uma abrangência e profundidade sem precedentes. Creio que não seria exagerado dizer que sem a obra de Kafka, nós seríamos ignorantes sobre a nossa verdadeira natureza.

"Ein Landarzt", texto datado de 1919, empresta também o título a uma colectânea de mais de uma dúzia de contos, na verdade, uma das poucas publicadas em vida. 

À pureza da narrativa e a simplicidade da história, Kafka contrapõe um cenário mental de extraordinária riqueza, no seio do qual todas as estruturas sociais, crenças e convicções colidem continuamente, onde todas as certezas transformam-se em questionamentos existenciais e onde as debilidades ganham a sua verdadeira dimensão humana. Não há regiões da alma que sejam inacessíveis ao bisturi da escrita de Kafka. Razão e emoção têm ambas uma dimensão redentora, mas são ao mesmo tempo, elementos de perdição e maldição.         

Em teoria, pouco poder-se-ia esperar dum conto sobre um médico rural que é chamado numa noite fria para assistir a um paciente criticamente doente a dez milhas de distância. Na noite anterior o seu cavalo havia morrido, e assim sem meios para a deslocação, pede para a sua criada, Rosa, procurar um cavalo emprestado entre os aldeões. Contudo, a imaginação de Kafka conduz-nos para os aspectos mais inesperados dos acontecimentos mais mundanos. 

Não me parece apropriado roubar ao leitor o prazer do mergulho das águas frescas do texto de Kafka. Bastará talvez referir, a guisa de peroração, que tal como no "Processo", obra mais madura iniciada em 1914 e terminada em 1925, a narrativa de "Um médico rural", conclui-se de forma definitiva para o protagonista, mas é deixada completamente em aberto no que diz respeito às suas implicações para a condição humana. Tal como no "Processo", onde os juízes podem condenar, mas não podem absolver, Kafka, demonstra-nos que um médico, expressão máxima do progresso humano, pode curar, mas não pode salvar no sentido místico que rege o modo de pensar dos camponeses a quem presta assistência.    

Naturalmente, é-nos impossível sintetizar e capturar com justiça a complexidade e profundidade da obra de Kafka, pelo que recomendamos, entre outros, o livro de Walter Benjamin que já foi aqui apresentado. Finalmente, gostava de enfatizar uma vez mais que a prevalência e a universalidade dos textos de Kafka ficaram brilhantemente demonstradas com a representação do grupo Aramá; contudo, para os que por ventura não estejam completamente convencidos, incluímos nesta recensão o curta metragem de animação de 2007 do realizador japonês Koji Yamamura baseado no "Um médico rural"

Orfeu B.


                                                       

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Cantatrix Sopranica L.

Experimental demonstration of the tomatotopic organization in the Soprano (Cantatirx sopranica L.)

George Perec
Laboratoire de physiologie
Facultè de médicine Saint-Antoine
Paris, France

Sommaire

Démonstration expérimentale d'une organization tomatotopic chez la Cantatrice.

L'auteur étude les fois que le lancement de la tomate il provoquit la réaction yellante chez la Chantatrice e demonstre que divers plusieures aires de la cervelle elles était implicatées dans le response, en particular, le trajet légumier, le nuclei thalemeux et la fiçure musicien de l'hémisphère nord. 


Cantatrix sopranica L. é uma colectânea póstuma de textos do brilhante e original autor francês George Perec (1936-1982). Perec é conhecido pelo ecletismo dos seus interesses e por obras como por exemplo, "La Vie mode d'emploi" de 1979, um vasto e complexo romance escrito de modo a simular o movimento das peças num jogo de xadrez ascendente ao longo duma escada, e pela novela de 300 páginas "La disparition" (1969), escrita sem nunca usar a letra "e", desaparição que é uma metáfora do destino dos judeus na Segunda Grande Guerra. 

   
Concretamente, Cantatrix sopranica L. consiste dum conjunto de cinco textos cómicos, escritos em linguagem pseudo-científica. O primeiro destes, escrito em inglês, descreve as reacções cerebrais causadas numa soprano quando submetida ao lançamento de tomates. Há uma discussão introductória de contextualização, uma descrição do grupo de estudo, 107 saudáveis sopranos do Conservatório Nacional de Música,  com peso compreendido entre 94 e 124 quilos, que são convenientemente monitoradas; uma discussão metodológica sobre o equipamento de aquisição e gravação dos dados; uma descrição das regiões cerebrais afectadas em função da carga tomática lançada; uma discussão de cenários interpretativos possíveis; finalmente, o texto é concluído com uma bibliografia que inclue autores como: Alka-Seltzer; Chou, O. & Lai, A.; Einstein, Z.,  Zweistein, D., Dreistein, V., Vierstein, F. & St. Pierre; Giscard d'Estaing; Marks, C.N.R.S. & Spencer, D.G.R.S.T., Wait, H. & See, C., entre outros!
    
Os textos seguintes versam sobre entomologia, uma homenagem a um humorista, uma obra fictícia sobre a catedral de Chartres, e finalmente um texto, escrito conjuntamente com Harry Mathews, sobre o escritor Raymond Roussel e a geografia melancólica inspirada por Veneza.

Cantatrix sopranica L. propicia uma leitura agradável e refrescante, e despretensiosamente, nos remete a uma reflexão sobre a especificidade do jargão científico, e de como a sua pretensa objectividade não é de todo um garante da seriedade dos assuntos em análise. 

Finalmente, parece-nos relevante mencionar que o texto de Perec precede de alguns anos a instituição dos Prémios Ig Nobel, paródia do Prémio Nobel, atribuídos todos os anos em Outubro a dez trabalhos científicos particularmente bizarros, cómicos ou triviais. Os primeiros Ig Nobel foram criados em 1991 pelo norte-americano Marc Abrahams, editor e co-fundador dos "Annals of Improbable Research", revista de humor "científico".  


Orfeu B.