quarta-feira, 16 de julho de 2014



A Princesa que queria ser Rei
Texto: Sara Monteiro
Ilustração: Pedro Serapicos
Ed. Ambar
Porto, 2007


História atípica de princesa: não é linda, nem delicada. É forte e peluda e não quer bailes, nem bordados. 
O Rei baralhado: afinal o que é feminino? 
A rainha peremptória: “qualidades fora do seu sexo são defeitos”. O rei cogita: “e se as qualidades não fossem de nenhum sexo?”. Aos dezassete anos quer reinar. Só um homem pode ocupar o trono! Ela vai embora, provar ser melhor que um homem. 
Cai tristeza no palácio. 
Quando o reino é invadido o apelo de ajuda do rei é atendido por um cavaleiro que ninguém conhece. O rei quer acreditar que é a filha. Passam cem noites, o cavaleiro misterioso chega ao palácio. 
É ela! Forte, peluda, altiva e bonita! Tão boa como um homem. Melhor! Nos braços da guerreira que reclama o reino há uma criança recém nascida. São os pais que resolvem a questão do ser ou não ser rapaz ou rapariga e da aceitação plena da filha: “Que interessa isso?” E ficamos sem saber. 
A ilustração faz a ponte para um público mais pequeno a par de uma mensagem mais adulta nas entrelinhas. 
A figura da Princesa, menina, quase boneca, atenua o adjectivo de “cavalona” que lhe atiram; o pontilhado de barba na cara gera estranheza e graça; o minúsculo rei com um trono demasiado grande convive com a sombra dos imensos cabelos da princesa, símbolo da sua força. 
Não há príncipe. 
A princesa mulher/mãe será rei. 
O sexo não interessa para governar (bem). 
Um final feliz.

domingo, 13 de julho de 2014

O Passeio e outras Histórias

 Vim ao mundo a tantos de tal, fui educado em tal sítio, fui para a escola como qualquer um, sou isto e aquilo, chamo-me fulano de tal e não penso muito. Do ponto de vista do género sou do sexo masculino, do ponto de vista do estado sou um bom cidadão e do ponto de vista social pertenço à melhor sociedade. Sou um membro impecável, pacato e amável da sociedade humana, um dos chamados bons cidadãos, gosto de beber o meu copo de cerveja sobriamente, e não penso muito. Assim, não é de espantar que de preferência coma bem e também não é de espantar que as ideias não se aproximem de mim. O pensamento arguto é-me completamente alheio. As ideias ficam sempre muito longe de mim e por isso sou um bom cidadão, já que um bom cidadão não pensa muito. Um bom cidadão come o que tem a comer e isso basta!

Não esforço particularmente a cabeça, deixo isso às outras pessoas. Quem esforça a cabeça torna-se odiado. Quem pensa muito tem fama de ser incómodo. Já Júlio César apontava o dedo grosso ao Cássio, esquelético e de olhos encovados, a quem temia porque suspeitava que ele tinha ideias na cabeça. Um bom cidadão não pode inspirar medo e suspeita. Pensar muito não é o seu ofício. Quem pensa muito torna-se mal amado e é inteiramente desnecessário ser mal amado. Ressonar e dormir é melhor do que ser poeta ou pensar. Vim ao mundo a tantos de tal, fui à escola em tal sítio, leio ocasionalmente o jornal, tenho a profissão tal e tal, tenho tantos e tantos anos, pareço ser um bom cidadão e gostar de comer bem. Não esforço especialmente a cabeça, já que deixo isso às outras pessoas. Matar a cabeça a pensar não é o meu forte, pois quem pensa muito padece de dores de cabeça e a dor de cabeça é inteiramente supérflua. 

O Passeio e Outras Histórias


Os textos do escritor suíço de língua alemã, Robert Walser (1878 – 1956), são frequentemente referidos como sendo uma transição entre os do poeta romântico alemão Heinrich von Kleist (1777 – 1811) e os de Frans Kafka (1883 – 1924), escritor quinta essencial da literatura do século XX. Claramente, há entre estes autores denominadores comuns, porém eu prefiro pensa-los como ilhas no mar revolto das possibilidades criativas da ficção. No seu tempo, Walser era muito apreciado e entre os declarados admiradores estavam Stefan Zweig, Robert Musil, Hermann Hesse, Walter Benjamin e Franz Kafka. 
   
Em “O Passeio e Outras Histórias” o leitor pode apreciar com nitidez o estilo irónico, e sobretudo auto-irónico, de um autor que não se enquadrava nos cânones necessariamente pequeno-burgueses da posição de um escritor no seu tempo e nos padrões de gosto e estilo que esta posição sócio-económica e cultural subentendia. São também perceptíveis os danos causados na personalidade do autor a sua condição de perene solitário e excluído. O resultado é uma escrita fluída, necessariamente exaltada, e cheia de humores e de contida revolta.   

Ao lermos, por exemplo, o longo conto, O Passeio, salta à vista a felicidade que este caminhar desinteressado e libertador injecta no autor e como este não poupa esforços para que o leitor possa compartilhar estes momentos de surpreendente leveza e elação. Contudo, há nas entrelinhas, indeléveis traços de angústia, exasperação e duma solidão profunda. Não surpreende que tenha vivido o autor, as duas últimas décadas e meia da sua vida, num hospital de doentes mentais de Herisau a este da Suíça, alienado do mundo e dos seus semelhantes, e que só os passeios propiciavam algum alívio para a sua atormentada alma.  

A sua solitária morte num campo congelado pela neve no dia de Natal de 1956, parece ser a conclusão dolorosamente lógica de uma existência precária e solitária, e completamente dedicada à escrita e aos passeios. Walser deixou-nos poemas, novelas e uma infinidade diversificada e original de contos.  

Orfeu B.



domingo, 6 de julho de 2014

UM GRANDE ESCRITOR HÚNGARO: DEZSŐ KOSZTOLÁNYI

Dezsö Kosztolányi nasceu em 1885 e faleceu em 1936. É um grande poeta e romancista húngaro das primeiras décadas do século XX. De que eu tenha conhecimento, há apenas uma obra traduzida em Portugal, o romance “Cotovia”, edição da Dom Quixote, em 2006. Tive conhecimento deste escritor e desta obra através de uma antiga entrevista de António Lobo Antunes, que reli há pouco tempo. A edição é muito cuidada e valorizada pela tradução de Ernesto Rodrigues, professor da Faculdade de Letras de Lisboa. “Cotovia” é um romance em que se narra a vida quotidiana de uma família da burguesia média, residente numa pequena cidade da província húngara. A acção passa-se durante uma semana, período em que a filha, filha única de um casal já de certa idade, vai de férias e deixa os pais sózinhos, o que acontece pela primeira vez. Na verdade, estamos perante um texto brilhante, construído com maestria. Um romance de costumes (no sentido utilizado pela crítica literária francesa), com uma fabulosa caracterização de situações e personagens, em que os sentimentos em geral, e as emoções em particular, são a verdadeira mola impulsionadora da acção que se narra. Como me iniciei na literatura através de romances do século XIX de autores portugueses (principalmente Camilo Castelo Branco) e franceses (Balzac, Zola), a leitura deste romance não só me foi fácil, como também empolgante, o que talvez não aconteça com as novas gerações de leitores. A obra está organizada em treze capítulos. Desde o primeiro capítulo, que se sente pairar uma sombra escura sobre esta família aparentemente feliz, constituída pelo pai (Ákos Vajkay – a personagem central), a mulher e a filha Cotovia, assim denominada devido aos seus dotes vocais. A vida rotineira do casal altera-se profundamente quando a filha vai passar uma semana de férias a casa de uns tios. Obrigados a irem fazer as refeições a um restaurante bastante frequentado, os pais acabam por contactarem com antigos amigos e conhecidos e a retomarem hábitos de outros tempos. Assim, numa noite, Ákos chega a casa de madrugada, embriagado e “explode” com algo que o tem amargurado há anos e anos e que tem a filha como causa: “... Ákos continuou: - Pois não seria melhor assim? Também para ela, pobrezinha. E mesmo para nós. Saberás o que ela sofre? Só eu sei, só o meu coração de pai sabe. Assim e assado, é como bichanam permanentemente nas suas costas, dizem mal dela, fazem pouco. E nós, mãe, o que nós já sofremos. Um ano, dois anos, esperámos, tivemos esperanças, o tempo passou. Julgámos que era, simplesmente, fruto do acaso. Dizíamos que tudo havia de terminar bem. Mas é cada vez pior. Será cada vez pior, e pior, ainda. - Porquê? - Porquê? – perguntou também Ákos, e disse, numa voz surda: Porque é feia. Pela primeira vez, era dito. Seguiu-se um silêncio. Um vazio mudo que ressoava em redor. A mulher pôs-se de pé. Não, nunca ela imaginara tal. Quando falavam da filha, e, por delicadeza, rodeavam a questão, pensava que, um dia, voltariam ao assunto, a sério, que, ponto por ponto, em pormenor, ela e o marido, e talvez alguns parentes, Etelka e Béla, como em conselho de família, debateriam a questão, durante dias, mas não de maneira tão directa, com esta simplicidade brutal. O que Ákos dizia matava, cerce, qualquer argumento, troca de ideias, qualquer solução. Doía-lhe. Revoltava-a esta crueldade, esta sinceridade. O marido ultrajara uma mulher, ultrajara a sua filha. E como se só isso a fizesse sofrer, ulcerada e irritada, gritou-lhe: - Não! Não! - Mas sim, sim! É feia, muito feia! – gritou Ákos, voluptuoso –, feia, e uma pobre velha, tão feia – e fez uma careta horrível, torcendo boca e nariz –, tão feia como eu. Arrancou-se, a custo, do sofá, para mostrar como era, na verdade, ele, em pessoa, e foi ter com a mulher. Assim se desafiavam nos olhos os velhos pais de Cotovia, em camisa, descalços, quase nus os dois corpos, de cujos abraços nascera, outrora, a filha. Ambos tremiam de emoção. - Estás bêbedo – disse a mulher, com desprezo. - Não estou bêbedo. - Pecas contra Deus. - Ainda que fosse coxa – berrou Ákos –, fosse corcunda, ou fosse cega, nem assim era tão feia – e, aqui, desatou a chorar, lágrimas abundantes lavaram-lhe o rosto manchado de cinza, e alma atormentada. A mulher, entretanto, agigantava-se. Peço-te – disse, bruscamente, com uma severidade de que não se julgaria ser capaz, com uma inteligência aguda, uma vivacidade no olhar, que, até ali, ninguém ainda lhe vira, ninguém lhe conhecia no meio que frequentava. – Peço-te – e levantou a voz –, proíbo-te de falar assim da minha filha. Ela também é minha filha. Sinto-me na obrigação de defender a minha filha, a tua filha, contra ti. Envergonha-te! - O quê? – balbuciou Ákos, e fez corpo. - Não te admito – disse a mulher, e bateu na mesa. – Uma coisa assim, não te admito. Que farsa, disseste antes. Pois olha, isso é que é uma farsa! Ákos regressava da embriaguez, que parecia dissipar-se. - Bom, atirou-lhe –, falemos com seriedade... Comigo, também se pode falar com seriedade. - Hoje, comigo, não é possível falar com seriedade. Regressas de madrugada, deixas a casa de pernas para o ar, distribuis dinheiro pelos cantos, queres incendiar a casa em cima da minha cabeça, falas de tudo e de nada. Antes de mais, é preciso que durmas – e dirigiu-se para a cama. - Mãe – disse Ákos, retendo-a –, fica um pouco – disse, quase implorando. A mulher reteve-se- - O que queres afinal? – impetrou o marido. – Porque choras? Porque gritas? Não te percebo. Falava com dureza. Fez uma pausa. E, em tom mais doce: - Está bem, não casa. E depois? Há muitas mulheres que não casam. Tem trinta anos, ainda pode vir alguém. Nunca se sabe. Quando menos se espera. Eu devia abordar os homens na rua, ou colocar um pequeno anúncio nos jornais? Para uma Vajkay. Vamos, peço-te.” O capítulo (o décimo) termina com a mulher a chamar-lhe a atenção para o amor que existe entre os três, o mais belo dos sentimentos que pode unir os seres humanos. Os três capítulos finais centram-se na chegada da filha e na retoma das vidas de sempre, talvez agora mais tristes e mais conscientes, mas sem a tensão latente em que tinham vivido (a própria Cotovia, na semana em casa dos tios, tinha tomado consciência do modo como era olhada, tratada). Mas há um outro aspecto a realçar neste romance: é um belíssimo documento histórico sobre a vida quotidiana de uma pequena cidade húngara e um valioso contributo para o estudo da mentalidade de uma comunidade da Europa Central, nos primeiros anos do século XX.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

A ÚLTIMA NOITE EM LISBOA


Sérgio Luís de Carvalho é formado em História e todos os seus romances são construídos em torno da reconstrução cuidadosa de um determinado período que pode ser o tempo medieval, o renascimento, as trincheiras da 1ª Guerra Mundial ou, neste romance, a Lisboa da 2ª Guerra Mundial

Neste romance, situado em 1942, sente-se e vibra-se com a cuidadosa recolha de tudo o que pode dar consistência e rigor histórico à cidade, palco da ficção narrativa que se desenrola no cenário sublinhado por essa memória desenterrada dos relatos da época.

Estamos em Lisboa, cidade pobre, mais que pobre, quase miserável, mas alegrete, fadista, cheia do cheiro das tascas e do chilreio do rapazio a correr por ruas e calçadas, anunciando jornais ou a jogar à bola, imitando os ídolos do Benfica e do Sporting.

Esta Lisboa dos anos 40 está repartida entre os germanófilos cheios de pose bacoca e prosápia ribombante, os anglófilos mais discretos, os anarquistas e comunistas a falar e a protestar às escondidas, e os outros que andam distantes das políticas, os que vão vivendo e mantendo tabus que começam a ser estilhaçados pelos modos dos estrangeiros e estrangeiras que chegam ou passam por aqui.

Esta forte presença de estrangeiros em Portugal tem especial relevância nos judeus, fugidos da barbárie nazi, que aqui estacionam à espera de passagem para as Américas. Judeus ricos, nas esplanadas do Rossio ou nos hotéis do Estoril. E judeus pobres, na bicha para a Cozinha Económica de Israel ali à Travessa do Noronha, onde também acaba por ir pedir a esmola da comida o Cônsul Aristides Sousa Mendes, caído em desgraça junto de Salazar.

A narrativa é lenta e circular. Como lenta e circular é a vida de Lisboa, em torno de uma guerra lá longe que se vive através das notícias da rádio, tomando partido por alemães ou aliados e entremeando a tragédia distante com umas iscas, um copinho de branco, uma fadinho ouvido a Rádio Graça, um filme americano no Éden.

O título anuncia o final da história, ou seja, avisa-nos que chegaremos a uma noite que será a última passada em Lisboa. De quem? Talvez de Charlotte a bela austríaca que mora num rez-do-chão da Travessa do Noronha, ao lado da casa que aluga um quarto a Henrique que trabalha na “Esfera” embora sem grande convicção germanófila.

A acção é intervalada de cartas de um homem, Heinrich, que transcreve de ternura e amor no que escreve a Charlotte, primeiro de um campo de concentração nazi, e que sabemos ter sido libertado e ter conseguido partir para a Guerra Civil de Espanha.

Charlotte começa a fazer-se acompanhar por Henrique nas noites de Lisboa e depois por ele e pela sua namorada Maria Carolina que vai aprendendo com Charlotte outras formas de pensar, de vestir, de amar.

A pouco e pouco vai-se formando um triângulo amoroso em que a sensualidade cresce e se vai afirmando e em que a pequenez portuguesa vai sendo confrontada com outras formas de viver e pensar, até se chegar à última noite em que muitas coisas se revelam e outras tantos ficam por desvendar

É daqueles livros que se com facilidade, mesmo com urgência. E em que a ficção se conjuga bem com a História para nos ajudar a conhecer melhor os passos e os dramas dos que cruzaram as ruas da nossa Lisboa.