quinta-feira, 24 de março de 2011

"... eu sou do tamanho do que vejo/E não, do tamanho da minha altura... " Alberto Caeiro


A árvore que dava olhos

Texto de João Paulo Cotrim

Ilustrações de Marial Keil

Editora Calendário

Tal como as árvores precisam de tempo para crescer os livros precisam de tempo para chegar aos seus leitores, precisam de quem não os deixe cair no esquecimento ao fim de uns meses, precisam de um vento que os espalhe por todos os lugares onde possam dar frutos. Por isso não desisto deste, uma colheita de 2007, já desaparecido de muitas livrarias e ainda, infelizmente, ausente de muitas bibliotecas. "A árvore que dava olhos" é um livro que merece ser lido, relido e recomendado e que, tal como todos os bons livros para crianças, é um livro para todas as idades.

Uma árvore de quintal com raízes presas num espaço limitado avisa que não pode ver o vê nem falar do que fala. É essa sua perplexidade, e a nossa, a história deste livro ou até de todas as histórias nascidas dentro de quem quer ver além da linha do horizonte.

A árvore deve dar frutos então porque não dar diferentes frutos? Ou usar os ramos para riscar o céu, ser aeroporto de borboletas, farol de gatos?

Esta árvore sonha e no seu sonho convivem o real e o impossível: ser casa de pássaro e navio voador. Tudo porque é uma árvore que dá olhos e com olhos abertos se vai a todo o lado.

Um belo texto de João Paulo Cotrim, numa união feliz com as ilustrações da Maria Keil que, mais cedo ou mais tarde, é imperdoável não reconhecer.

Maria Keil, infelizmente demasiado cedo arrumada e quase esquecida. Uma senhora que vem de longe e ainda enxerga longe, como a sua árvore que não cabe inteira nas páginas onde, por vezes, coloca uma cadeira, lugar de gente, lugar da Maria. Uma cadeira onde é suposto o leitor se sentar, ser árvore, ter olhos abertos. E ver longe pelo livro e pela imaginação. Sílvia Alves



quarta-feira, 23 de março de 2011

Film Socialisme

Jean-Luc nunca foi um dos meus favoritos. Muito provavelmente porque frequentemente fico algo irritado com a crueza e a frontalidade de seus julgamentos. E também porque a originalidade da Nouvelle Vague, embora atraente e próxima das minhas preocupações ideológicas e sociais, nunca me pareceu estar à altura da minha paixão pelo cinema italiano, que numas poucas décadas produziu encenadores geniais como De Sica, Rossellini, Fellini, Visconti, Pasolini, Antoniani, Bertolucci, Wertmueller, entre outros, e um sem número de actores e actrizes inesquecíveis.

O desaparecimento desta brilhante linhagem de cineastas empobreceu-nos tristemente e deixou um vazio que é muito raramente preenchido. Os filmes sucedem-se uns aos outros, mas para mim nada se compara ao festim intelectual e dos sentidos que era ir, sobretudo na adolescência, ver a última invenção do cinema italiano. Mas claramente, Godard também sempre foi uma referência. Assim, no mesmismo das ideias previsíveis e dos modismos cinematográficos dos dias correntes, o aparecimento dum novo filme de Godard é um acontecimento que merece ser celebrado. Na minha opinião, os filmes de Godard são obrigatórios e devem ser vistos como se fossem o texto dum manifesto. E Godard tem sido profícuo em produzi-los e torná-los incontornáveis. Justifico assim estas linhas sobre um filme num blog sobre livros.



Film Socialisme é, como aliás tudo de Godard, um filme irreverente, inquietante, instigador, inesperado e rico em questões para reflexão e em ideias cinematográficas. Os filmes de Goddard são também textos ilustrados. Em Film Socialisme, ao turbilhão de ideias juntam-se imagens de grande beleza estética que são dialecticamente confrontadas com segmentos ilustrativos do luxo kitsch dum consumismo vazio e embrutecedor, que é apresentado com imagens sem qualidade, sonorizadas por música auditivamente dolorosa e banal, e diálogos velados, truncados e em vozes off. A mensagem é clara e explícita: a sociedade de consumo não permite levar-nos para além da fruição fútil e efémera. "O dinheiro é um bem comum" é a primeira afirmação do filme; fluido como a água, completam as imagens, mas o que permite adquirir é necessariamente adulterado e, com frequência, moralmente questionável. O ouro desaparece num sítio para reaparecer noutro qualquer sob o pretexto duma nova ordem moral que se impõe pela força e através da mentira.

Os portos sucedem-se uns aos outros, mas são apenas lugares para mais fotografias e para serem referências descaracterizadas dum estar precário que não deixa marcas nos passageiros do paquete. O que conta é desfrutar. Já e agora. Nada fica.

Na última parte do filme, Quo Vadis Europa, o drama sem sentido, mas absolutamente típico e universal duma família (francesa no caso) desenrola-se. O pai não entende porque não é amado depois duma vida de trabalho e sacrifício. Os filhos não respondem. A filha lê as "Ilusões perdidas" de Balzac, indiferente a tudo e a todos. Tão jovem, e já sem qualquer ilusão. A "comunicação social" está a postos para capturar as declarações, os potenciais actos de violência, o escabroso, o mesquinho. Não há valoração moral, não há qualquer hipótese dum verdadeiro diálogo ou aproximação afectiva dos intervenientes. As afirmações são todas abstractas e desprovidas de sentimento. Os personagens são estátuas a fazer declarações. Exigem tudo, culpam a todos, mas não são capazes de dar nada. Vivem para receber e acumular bens, mas são incapazes de dar. O diagnóstico é exacto, as imagens são cruas, as implicações perturbantes. Para onde vamos?

Obrigado, Jean-Luc!



Orfeu B.

segunda-feira, 7 de março de 2011

WILLIAM TREVOR, O ESPLENDOR DO CONTO EM LÍNGUA INGLESA



O irlandês William Trevor (1928) é um dos grandes contistas de língua inglesa, na actualidade. Grande por várias razões: pela variedade de temas dos seus contos, a caracterizarem múltiplos aspectos das gentes irlandesas; pela contenção e precisão da linguagem; pela mestria com que domina a arte do conto (atente-se, por exemplo, nos “fechos” admiráveis das suas histórias).
A”Relógio de Água” acaba de editar , em tradução cuidada, um seu livro, intitulado “Depois da Chuva”, no qual se agrupam doze contos. No primeiro destes textos, “O Afinador de Pianos”, aborda-se um tema extremamente interessante: um cego (o afinador de pianos) casa-se, ainda jovem, com Violet, que o ensina a ver o mundo através dos seus olhos. Tendo enviuvado, volta a casar-se, já idoso, com uma antiga apaixonada, Belle, que não só vê o mundo de forma diferente de Violet, como passa a desenvolver um ciúme crescente da sua antecessora, que se expressa através da contradição permanente do modo como Violet tinha descrito as cores e formas de ambientes domésticos e de paisagens ao afinador de pianos. O que origina alguma perturbação no cego que, gradualmente, se vai apercebendo do processo de transformação que está a sofrer, transformação que não pode deixar de aceitar se quiser sobreviver
“Cada casa que continha um piano exibia as suas contradições [note-se, ele ia há anos, de casa em casa, no exercício da sua profissão, primeiro guiado por Violet , agora por Bell]. As pérolas que a velha Mrs. Purtill usava eram opalas, a pele tão branca do dono da papelaria de Kliath era sardenta, os dois renques de carvalhos acima de Oghill eram certamente faias, verdes? Claro que sim – anuia Owen Drowgould [o afinador], já que era essa a reacção mais razoável. Não se poderia censurar Belle por demarcar o seu território e tal demarcação acarretava, inevitavelmente, estragos e destruição. No fim de contas, Belle acabaria por vencer, porque os vivos vencem sempre. E também isso parecia razoável, já[que] Violet triunfara no início e saboreara os melhores anos”
Enfim, uma história comovente que narra o processo algo traumático da substituição de um “software” por outro na mente de uma pessoa cega.
“ Depois da Chuva”, o conto que dá o título à obra, é uma belíssima história de amor, de uma suavidade, de uma melancolia que o aproxima das baladas que cantam os afectos perdidos, a solidão de quem sofreu e os perdeu. Uma história quase sem história, com um fio narrativo tão ténue que quase se não vislumbra. Uma história decorrente do jogo de entrelaçamento de um tempo presente com a memória de um tempo de infância, entrelaçamento suscitado pelo lugar (Pensione Cesarina), onde se desenrola a acção. Em suma, uma história muito bem construída, assente na conjugação do tempo e do espaço em que a “heroína” vive e viveu. Uma história em que o tempo e o lugar se conjugam numa ambiência de fina erotização emocional, feita de saudade e mistério. E termina com a mesma subtileza que a percorre ao longo das suas quinze páginas:

“Ele [o namorado que a havia abandonado] bateu em retirada, tal como os outros fizeram, quando tentou alterar as circunstâncias que constituem o passado impondo-lhes um presente mais alegre e, acima de tudo, a fidelidade futura. Nada lhe sugere a resposta quando reflecte acerca da solidão da sua estadia na Pensione Cesarina, e pressente que nunca virá a conhecer.[...] Vê-se a caminhar no calor da manhã, deixando para trás o cemitério e as bombas de gasolina enferrujadas. Vê-se a procurar a sombra dos castanheiros no parque, a cruzar a “piazza” até à “trattoria” quando cairam as primeiras gotas de chuva. Ouve o ruge-ruge da esfregona da limpeza na igreja de Santa Fabíola, os susurros dos turistas. Os dedos da mulher que reza remexem as contas do rosário, as velas bruxuleiam. A história de Santa Fabíola [refere-se à pintura que havia na igreja] perde-se nas sombras que foram os personagens da sua vida, o sepulcro exala um fedor inodoro a morte. A chuva tornou mais suave o ar agressivo, o anjo surge também misteriosamente”.

“Terreno Perdido” é uma história diferente, uma história escrita de um modo discreto, quase suave, o que acentua ainda mais a terribilidade do seu conteúdo: numa comunidade irlandesa, de prática protestante e intolerâncias e ódios ancestaris, um jovem tem uma visão estranha, quando estava no terreno agrícola do seu pai. Visão essa que o perturba e o conforta e que ele acaba por interpretar como sendo a de uma santa católica, a Santa Rosa. Visão de que ele não pode nem quer abdicar, mesmo que tal acarreter a oposição feroz da comunidade em que se insere e da sua família em particular. Nem as cocções e as perseguições de que, gradualmente, vai sendo vítima, o demove da fidelidade a essa aparição. Ostracizado pela família que acabou por o encerrar no quarto, ocultando-o do mundo, Milton, o jovem que teve a “revelação”, passa a ser considerado louco, tais são as coisas “ sem sentido” que diz. Para acabar por ser morto em sua casa, com um tiro na cabeça. O mistério da sua morte começa a desvendar-se-nos com a chegada para o enterro de uma irmã, que tinha ido viver para Inglaterra, em fuga ao ambiente sufocante da sua família. É durante o enterro que os sinais começam a fazer sentido para Hazel, a irmã regressada, que conclui que o irmão tinha sido “executado” por um outro irmão, com a aprovação da família - “ele tinha sido avisado...” Mas Hazel também sabe que esse segredo terrível nunca sairá das paredes daquela casa e pesará para sempre sobre a sua família:

“ A mãe daria o último suspiro com a terrível angústia do sucedido ainda a queimá-la por dentro; o pai iria recordar aquele acontecimento em todas as marchas de Julho [as festas da aldeia em que todos participavam e onde se começou a revelar “a perturbação” de Milton] que ainda lhe restavam. Os membros da família nunca conversariam acerca daquele dia, mas, através da dor, diriam a si próprios que as coisas eram mesmo assim, não havia alternativa. Milton tinha de morrer: eis o único consolo. O terreno perdido [o terreno onde tinha aparecido a santa] fora recuperado”.

Esta transcrição (assim como as anteriore), corresponde aos períodos finais dos contos a que fizemos referência e atestam, por si sós, as qualidades de contista de William Trevor.

sexta-feira, 4 de março de 2011

PARTILHA DE EMOÇÕES



Sempre vivi com as emoções às costas.

Quando leio um livro ou vejo um filme de que gosto muito tenho de o impingir a toda a gante. É mais forte do que eu. Se quiserem, de forma poética, direi que é uma ínapelável pulsão de partilha das emoções.

Alguns dos meus amigos já me pediram várias vezes para não lhes contar os filmes. Depois vão vê-los e acham-lhes menos graça...

Mas atenção serei um narrador obsessivo mas democrático. Tanto gosto de contar como que me contem filmes ou livros. Porque quase sempre vou ver outra coisa, de outro ângulo, vou ver outro filme naquele filme, o meu filme, que não fica magoado se me contarem o que cada um viu dentro daquele que eu vou ver.

Por isso, o título deste livro agarrou-me imediatamente. Esta é das minhas! A menina é uma de cinco filhos de um mineiro que ficou sem andar, viu a mulher fugir e adora cinema.

Para a sessão de cinema semanal só há dinheiro para um bilhete. O pai faz então um concurso entre os filhos. Quem vai ao cinema tem depois de contar o filme aos outros.

A menina é a eleita como melhor contadora. E vai tornar-se numa pequena vedeta daquele acampamento onde ficará a viver da memória dos filmes, mesmo depois de a mina fechar e todos partirem.

Hernán Rivera Letelier é um dos meus autores favoritos. Ex-mineiro nas minas do salitre no deserto de Atacama, Letelier fala-nos dos pobres, dos mais pobres, da vida duríssima da gente do deserto. E apesar dessa dureza, a sua escrita é atravessada por um sopro doce, amável, nostálgico, decente, trágico por vezes.

Quando acabo de ler os seus livros fico sempre a sentir-me carregado da mais funda humanidade que as palavras podem trazer-nos.