Jean-Luc nunca foi um dos meus favoritos. Muito provavelmente porque frequentemente fico algo irritado com a crueza e a frontalidade de seus julgamentos. E também porque a originalidade da Nouvelle Vague, embora atraente e próxima das minhas preocupações ideológicas e sociais, nunca me pareceu estar à altura da minha paixão pelo cinema italiano, que numas poucas décadas produziu encenadores geniais como De Sica, Rossellini, Fellini, Visconti, Pasolini, Antoniani, Bertolucci, Wertmueller, entre outros, e um sem número de actores e actrizes inesquecíveis.
O desaparecimento desta brilhante linhagem de cineastas empobreceu-nos tristemente e deixou um vazio que é muito raramente preenchido. Os filmes sucedem-se uns aos outros, mas para mim nada se compara ao festim intelectual e dos sentidos que era ir, sobretudo na adolescência, ver a última invenção do cinema italiano. Mas claramente, Godard também sempre foi uma referência. Assim, no mesmismo das ideias previsíveis e dos modismos cinematográficos dos dias correntes, o aparecimento dum novo filme de Godard é um acontecimento que merece ser celebrado. Na minha opinião, os filmes de Godard são obrigatórios e devem ser vistos como se fossem o texto dum manifesto. E Godard tem sido profícuo em produzi-los e torná-los incontornáveis. Justifico assim estas linhas sobre um filme num blog sobre livros.
Film Socialisme é, como aliás tudo de Godard, um filme irreverente, inquietante, instigador, inesperado e rico em questões para reflexão e em ideias cinematográficas. Os filmes de Goddard são também textos ilustrados. Em Film Socialisme, ao turbilhão de ideias juntam-se imagens de grande beleza estética que são dialecticamente confrontadas com segmentos ilustrativos do luxo kitsch dum consumismo vazio e embrutecedor, que é apresentado com imagens sem qualidade, sonorizadas por música auditivamente dolorosa e banal, e diálogos velados, truncados e em vozes off. A mensagem é clara e explícita: a sociedade de consumo não permite levar-nos para além da fruição fútil e efémera. "O dinheiro é um bem comum" é a primeira afirmação do filme; fluido como a água, completam as imagens, mas o que permite adquirir é necessariamente adulterado e, com frequência, moralmente questionável. O ouro desaparece num sítio para reaparecer noutro qualquer sob o pretexto duma nova ordem moral que se impõe pela força e através da mentira.
Os portos sucedem-se uns aos outros, mas são apenas lugares para mais fotografias e para serem referências descaracterizadas dum estar precário que não deixa marcas nos passageiros do paquete. O que conta é desfrutar. Já e agora. Nada fica.
Na última parte do filme, Quo Vadis Europa, o drama sem sentido, mas absolutamente típico e universal duma família (francesa no caso) desenrola-se. O pai não entende porque não é amado depois duma vida de trabalho e sacrifício. Os filhos não respondem. A filha lê as "Ilusões perdidas" de Balzac, indiferente a tudo e a todos. Tão jovem, e já sem qualquer ilusão. A "comunicação social" está a postos para capturar as declarações, os potenciais actos de violência, o escabroso, o mesquinho. Não há valoração moral, não há qualquer hipótese dum verdadeiro diálogo ou aproximação afectiva dos intervenientes. As afirmações são todas abstractas e desprovidas de sentimento. Os personagens são estátuas a fazer declarações. Exigem tudo, culpam a todos, mas não são capazes de dar nada. Vivem para receber e acumular bens, mas são incapazes de dar. O diagnóstico é exacto, as imagens são cruas, as implicações perturbantes. Para onde vamos?
Obrigado, Jean-Luc!
Orfeu B.
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