terça-feira, 30 de outubro de 2012

O CRISTAL DAS PALAVRAS




A cidade de Trieste fica num cruzamento de países e culturas. Ali se encontram influências da cultura italiana, da cultura austríaca, da eslovena e talvez ainda alguns farrapos de cultura francesa, alemã e sérvia.

Ali nasceram, e da alma da cidade fazem âncora, alguns escritores notáveis como Italo Svevo, Claudio Magris ou Giani Stuparich. E já agora, o realizador Federidco Fellini também é triestino

A Editora Ahab tem vindo a fazer um trabalho que devemos sublinhar ao dar a conhecer grandes escritores menos conhecidos. É o caso de Stuparich com este seu conto intitulado "A Ilha".

Diz Elvio Guagnini no posfácio que uma das definições de conto é a de que o conto - ao contrário do romance - deveria representar o ponto culminante, a cena decisiva de um enredo mais longo, enquanto o romance apresentaria as suas etapas de forma articulada.

Não será exactamente o caso de "A Ilha". Aqui, um pai à beira da morte convida o filho que vive na montanha a acompanhá-lo a visitar a Ilha onde ambos nasceram no Adriático e pouco conseguimos adivinhar da vida dos dois para trás para além de um ou outro salpico que nos saltam de Teresa, por exemplo, a dona da casa de hóspedes que adivinhamos antiga amante do pai. Muito pouco.

Porque é que o filho vive na montanha, não sabemos. Nem porque será que se sente tão desprotegido naquele verão mediterrânico cheio de luz e azul, de vegetação rasteira, e do canto permanente das cigarras? Só por saber o pai à beira da morte e querer protegê-lo e adiar esse momento terrível? Só por querer falar como ele, dizer-lhe a verdade do seu estado, como se o pai não soubesse?

O pai era marinheiro. Correu mundo e pouca atenção deu à família. Adora o mar. Adora a sua ilha. Quer despedir-se dela. Quer pescar e receber o sol na pele. E quer passar ao filho uma última imagem de si. E talvez também passar-lhe o vírus do amor por aquela ilha.

O filho vai vendo o pai a perder forças. E não quase história a contar senão este caminho lento e penoso que nos vai sendo dado pela escrita brilhante do autor.

Esta ilha tem qualquer coisa do nosso Algarve no Verão, quando o turismo não tinha ainda estragado quase tudo.

E o trabalho de Stuparich é escrever com volúpia e espanto esse espaço intenso, esse calor abrasador, esse céu e esse mar excessivos, enquanto as suas personagens seguem passo a passo o caminho da morte que já irá acontecer depois do fim do conto, depois do barco que se afasta da ilha para levar pai e filho de volta ao continente.


quinta-feira, 25 de outubro de 2012

A BRILHANTE FICÇÃO DENTRO DA FICÇÃO


Ian McEwan é suficiente conhecido e aplaudido para que seja necessário enaltecer ainda mais a sua obra. Pertence, aliás, a uma geração de belos escritores ingleses como Martin Amis, Julian Barnes, David Lodge, Jonathan Coe, entre outros.

Não somos ingénuos quando vamos ler um livro. Sabemos o tema do livro, conhecemos alguma coisa sobre o autor, foi-nos aconselhado por um amigo, lemos uma referência num jornal. Podemos falar imenso sobre livros que nunca lemos como dizia Pierre Bayard.

Contudo, os bons livros têm o condão de nos surpreender quando os vamos ler apesar de quase já sabermos tudo sobre eles.

Foi o que me aconteceu com “Mel”. Tinha lido várias recensões altamente elogiosas, tinha e tenho o trabalho do autor em grande consideração.

A expectativa era alta, portanto.

Devo dizer, no entanto que ao fim de umas 50, 100 páginas talvez, me sentia um pouco decepcionado em relação às tais tão altas expectativas.

A prosa era sólida, o ritmo consistente e sólido mas… A história não me levava aos píncaros do prazer da leitura. Parecia-me uma coisa a andar demasiado em círculo fechado. E vinha-me uma ideia permanente à cabeça: isto é demasiado inglês.

Serena, uma licenciada em Matemática jovem e bela, filha de um bispo anglicano, leitura furiosa de romances, torna-se amante durante um Verão de um professor universitário muito mais velho que a inicia no pensamento conservador e a encaminha para os serviços secretos, o famoso MI5, antes de desaparecer de forma algo brutal da sua vida.

Tudo se passa no ano de 1972, já na ressaca dos desmandos dos anos 60, durante uma grave crise do petróleo.

Serena debate-se tal como as colegas para se afirmar sendo mulher no mundo masculino dos serviços secretos.

Sabe da morte do seu ex-amante e é encarregue de uma missão invulgar, acompanhar e apoiar um jovem romancista de cariz conservador e anti-soviético ou anti-socialista, no âmbito da tentativa de criar um ambiente cultural
não influenciado pela esquerda europeia.

Serena apaixona-se pelo escritor e debate-se com o problema de lhe confessar ou não a sua verdadeira profissão.

Quando as coisas estão em banho-maria e o romance parece caminhar para um final mais ou menos interessante mas que na aparência se anuncia algo banal, o autor faz uma tremenda e brilhante guinada, consegue fazer subir a narrativa a um ponto inesperado e notável, confere à sua narrativa uma dimensão absolutamente inesperada, em que a ficção se desdobra em ficção da ficção e nos faz perceber que nós, leitores, fomos manipulados e que nada é o que parecia ser.

Leiam, por favor, caros amigos e digam-me depois o que acharam. Estou convencido que este romance é um doce e extraordinário repasto para qualquer viciado em leitura



sexta-feira, 19 de outubro de 2012

"O que não pode ser dito/ guarda um silêncio/ feito de primeiras palavras/ diante do poema, que chega sempre demasiadamente tarde,//(...)" Manuel António Pina


Paris Nunca se acaba
Enrique Vila-Matas
Teorema


Algures no meio da leitura não pude deixar de me lembrar do filme “Meia Noite em Paris” de Woody Allen. Um catalão em Paris acha parecer-se, sonha ser, o seu escritor fétiche Hemingway. O narrador reproduz a experiência do próprio autor, em Paris, igualmente na década de setenta, hospedado num esconso quarto no prédio de Marguerite Duras.          

Citando Pascal “É quase impossível fingir que se ama sem se tornar logo em amante”.

Talvez fingindo ser escritor, escritor se torne. Talvez em Paris esse feitiço seja possível. E assim vamos acompanhando as desventuras de quem querendo escrever o seu primeiro livro, nos vai contando como, sentindo-se parecido com Hemingway, tendo-o como referência desde que aos quinze anos leu um livro dele, está em Paris onde foi pobre mas, ao contrário dele, infeliz.

A sua vida na cidade leva-nos por casas, ruas e cafés, através das memórias que eles guardam dos escritores. O livro exige alguma cumplicidade do leitor no reconhecimento dessas memórias, dos seus actores e da obra que produziram. Não ter esse conhecimento não impede a leitura mas empobrece-a, naturalmente.
Todos esses passantes, escritores de maior ou menos sucesso, são imperfeitos. De algum modo todos esperam que a cidade luz os envolva e eleve na sua arte, na sua mais ou menos angustiada existência.

Entramos nos bares onde ele entra para estar nos lugares onde os escritores entraram, conversaram, foram (in)felizes.
Num ”café simpático quente assado, amável” “Paris é uma Festa” mas nem sempre, nem para todos. Apesar de haver muitas raparigas bonitas a poderem deixar em brasa um jovem putativo escritor, um pouco idiota, a querer num café com leite beber a inspiração de Hemingway, naquele bar do Boulevard Saint Mitchel.

Encontraremos Scott Fritzgerlad, Garcia Lorca ou Zelda, Graan Greene...Rilke,Jules Renard… E tantos outros.

Há episódios breves que ficam na memória. Como a história de Jeanne Hébuterne, amante de Modigliani que se suicida após a morte deste, grávida de nove meses, deixando-se cair de costas de um quinto andar. E um dia ao passar na rua será impossível não olharmos para cima espectando a queda de um corpo desesperado, desamparado pela perda do seu amor.

Passamos pelo café Flore…
Encontramos Mallarmé… Quem sabe um gato.
Entramos no Café Blaisse...

Também o leitor é um pouco “flâneur” nas  ruas de Paris.

Num momento apetece largar o livro e entrar no de Fritzgerald, ao passar pelo conto “O gato à Chuva”.
Em outro acompanhamos a compra de uma mesa carcomida no Marché au Puces, para que o narrador coloque a máquina de escrever, escreva, a sua obra: “A asesina Ilustrada”, que se vai arrastando na busca de ideias e de regras para o processo de escrita. 
O livro de Vila-Matas é ele próprio um arrastamento. Por vezes brilha, por vezes apaga-se. Pede-nos cumplicidade. Mas não é totalmente generoso. O ritmo da escrita resulta, por vezes, um pouco frouxo. Li uma tradução. Não ficou a ganhar. O original aguarda-me algures, numa biblioteca dos nossos vizinhos, para tirar as teimas finais.

Testemunhamos a vertigem do escritor na proximidade com os seus heróis. A admiração é algo que fica quando a realidade desconstrói o herói. 
O jovem pede conselhos a Duras que lhe entrega um papel com recomendações óbvias. Conta-nos o narrador. Será que o fez o autor? Quem sabe? A autobiografia e a ficção confundem-se.
No dia 29 de Abril de 1970 compra papel e um envelope e escreve a mesma carta que Rimbaud escreveu no dia 29 de Abril de 1870 a Téodhore de Banville. A carta é devolvida e acontece "uma noite à espera de Rimbaud". 
Quantos seres fez Rimbaud esperar na noite, na vida? Há uma longa história de cadáveres, de literatura falhada na espera de ser Rimbaud.

Há o cinema. "O Último Tango...", "India Song", "Johnny Guittar"... 
Paris pode dizer, como Vienna e Johnny: “Quantas mulheres amaste?” “Tantas quantas os homens que esqueceste.”

Atravessamos o momento da morte de Franco. Há uma geração que vai partindo que fala dele. Franco é como uma grilheta. A que segue talvez  pergunte um dia Franco quem? Franco porquê? Se houver a pergunta haverá uma resposta, haverá um entendimento da História. Curiosamente no dia em que lia a parte em que o narrador conta como festejou a falsa morte de Franco moribundo, anunciada, por engano, por Santiago Carrilho, tinha morrido Santiago Carrilho. O que é que isto acrescenta ao livro? Nada. Apenas serve de exemplo de como a leitura nos devolve as leituras irónicas do mundo.

Há a deliciosa e algo trágica história de Tomás Moll. O desperdício de uma vida é sempre uma tragédia. Embora muitas vezes a tragédia maior de uma vida seja não ter tido tragédia alguma e passar incólume pela vida e pelo mundo.Tomás Moll é um maiorquino sem família, herdeiro abastado, que se auto exila em Paris, a cidade dos seus sonhos. Sonha escrever um livro que terá como titulo “Como ser o menos possível parecido com Pio Baroja mesmo que nos tenhamos exilado em Paris”.
Já não sabia eu porque guardava “El Arbol de la Ciência” de Baroja lido há muitos anos. Tantas vezes me passou pelas mãos em arrumações sem que a memória me levasse a (re)abri-lo….
Um dia Moll descobre ao ler Baroja, também em Paris esteve exilado, que afinal gosta dele mas o seu propósito de vida continua: tudo podia ser elegante em Paris menos parecer-se com Pio Baroja. E continua irrealisticamente a tentar a sua tarefa.

Não me interessou muito o final. Talvez porque, na realidade, o livro tem vários finais, os de todos os que atravessam o livro, isso nos desinteressa um pouco do destino do narrador.
Os escritores já não se arrastam pelos cafés. Mas em Paris a geografia e os cafés ainda lá estão. E quem escreve continua a cruzar-se com os seus fantasmas em qualquer lugar onde abra os livros.

Fechado o livro regressa-se à realidade como se vindos de uma viagem a Paris. Imagens sensações, coisas que sabemos, que sabíamos, que ficámos a saber melhor mas não o suficiente. Coisas de que duvidamos, que anotamos para saber mais.Lugares onde havemos de ir ou voltar.
Tal como o filme de Woody Allen talvez não uma grande obra mas atravessada por grandes vultos e grandes ideias. Ou que assim parecem, grandes, se vistos à luz de Paris.

“Paris é Uma Festa” e “Paris Nunca se Acaba”.

Em 1961 Hemingway cede à loucura, à incapacidade de escrever e a uma espingarda de dois canos. Para entender tal dor e desespero é preciso um dia ter escrito.

Acaba a vida, um dia… A dos poetas. 

Morreu Manuel António Pina…
Na tarde em que acabava este texto: 19 de Outubro.

domingo, 14 de outubro de 2012

MEMÓRIA E LITERATURA


Rentes de Carvalho é um escritor reconhecido tardiamente em Portugal quando já era um nome dos tops literários holandeses. E cabe-nos agradecer à Quetzal que tem vindo a publicar a sua obra completa e a permitir-nos conhecer uma obra muito consistente, intensa, com um olhar duro sobre o Portugal rural e, muito frequentemente, sobre Trás-os-Montes.

O autor teve uma vida rica em experiências. Por via da perseguição política exilou-se vivendo em terras e continentes variados, S. Paulo, Nova Iorque, Paris e finalmente na Holanda Jornalista, fez a sua carreira académica na Holanda onde se tornou professor universitário e onde inicialmente publicou a maior parte da sua obra.

A riquíssima e variada experiência de vida de Rentes de Carvalho vem constituindo parte importante do chão sobre o qual constrói a sua ficção.
Muitos dos contos que fazem parte deste livro resultam justamente, parece óbvio, de experiências vividas. E é também óbvio que o autor não se limitando à reprodução, parte do vivido para o ficcional ficando, assim, com um pé na memória e outra na banca de trabalho do escritor.

Sentimos que por vezes se aproxima mais da narrativa de uma história vivida, outras, qual titeriteiro, pega nas personagens e fá-las dar as mais inesperadas reviravoltas.

É aliás na construção das personagens que os contos deste livro brilham. No conhecimento profundo que Rentes de Carvalho tem dos portugueses, das suas particularidades, dos seus tiques, das suas grandezas e ridículos .

Podemos dizer que estes contos constituem um painel curiosíssimo, por vezes trágico, por vezes irónico, dos portugueses dos anos 40, 50 e das suas peculiaridades.

O ritmo narrativo seguro , o devaneio controlado, a descrição cuidadosa, o diálogo riquíssimo envolvem o leitor e dão-nos vontade de continuar a ler o autor muito para além do livro.

Os contos e os romances de Rentes de Carvalho mostram que a preservação da memória colectiva é feita pela literatura de forma por vezes tão ou mais rica que a própria História.

E se o autor faz esse trabalho de viagem ao passado também nos permite entender e reflectir sobre a permanência das tipologias no modo de ser português.



domingo, 7 de outubro de 2012

FALAR POR QUEM NÃO TEM VOZ



Que belas surpresas a literatura tem volta e meia para nos dar!.

Não conhecia a obra deste autor peruano. Mal teria ouvido falar dele.

Graças às Edições Ahab surgiu a tradução de dois livros dele. Comecei pelo que em segundo lugar viu a luz do dia: “A palavra do Mudo”. Contos. Deliciosos.

São pequenas narrativas construídas como mandam as regras, digo eu, como se houvesse regras na arte de contar histórias.

Escrita segura e sólida que se espraia em torno de pequenos acontecimentos, sem pressas nem sustos. Tudo o que acontece parece calmo e normal, sem nada de extraordinário. Podíamos deixar a história a meio porque aparentemente não acontece quase nada de significativo. No entanto, a arte do escritor leva-nos presos pelas palavras até ao final

E aí reside um aparte importante da arte do conto: conseguir um final que feche a história, que a torne num tempo e num espaço que se resolve numa viagem circular. E Júlio Ramon Rybeiro é um mestre.

“A Palavra do mudo”, título escolhido para esta colectânea vem do desejo do autor de dar voz aos que a não têm. Com poucas excepções, as suas personagens são tristes falhados, pessoas que levam as suas pequenas vidas e os seus pequenos sonhos envolvidos numa nuvem de melancolia. E o extraordinário trabalho do autor é, justamente, tornar essas personagens em gente. Gente falhada. Gente marginal mas de uma marginalidade apagada. Gente que aceita pouco. Gente que sonha pouco. E que mesmo assim, quando sonha, vê os seus sonhos esboroar-se como é o caso do homem que sonha o amor com a dona de um café vazio às duas da manhã e depois de tentar pagar esse amor arrumando as muitas mesas de ferro da esplanada, acaba por ver fechada a porta que o deixa de novo na rua.

O júbilo de quem lê estas histórias não está nas personagens que por vezes nos arrepiam e fazem quase tremer. O prazer desta leitura está na mestria da escrita, no ritmo, na arte de contar histórias de mudos em que Júlio Ramon Rybeiro era seguramente um mestre.



terça-feira, 2 de outubro de 2012

DESDE QUE O SAMBA É SAMBA


"Há várias coisas que parecem ser o que segura tudo mesmo de facto. Uma delas é juntar para cantar e dançar, justo que na arte não existe nada que possa menosprezar um tico de grão que seja do humano"

("Desde que o samba é samba")

Uma das piores formas de abordar um livro é definir um padrão de escrita desejado antes de começar a sua leitura. Partir do preconceito. Do pré-conceito. Não estar nu e preparado para ser tomado pela surpresa.

Devo confessar que Jorge Amado me deixou uma marca fortíssima. Em jovem  li  tudo ou quase tudo que o que grande escritor baiano escreveu. 

Depois cruzei-me com a escrita de muitos outros escritores brasileiros. Clarice Lispector, Tabajara Ruas, Érico Veríssimo, Fernando Veríssimo, Nelida Piñon, Ruben Fonseca, Patrícia de Melo, João Ubaldo Ribeiro e muitos mais. E dos mais recentes tenho na pilha das urgências 2 ou 3 livros de Adriana Lisboa.

Mas preciso sempre vencer a (reconheço que errada) expectativa de encontrar características semelhantes a Jorge Amado em cada livro brasileiro. Ternura, ironia, malandrice, ingenuidade… Talvez um certo tropicalismo que sempre me arrastou ao prazer de uma língua que partilho e me é devolvida com açúcar na ponta.

Mas há outros Brasis e outras escritas brasileiras. E levo sempre algumas páginas até deixar de lado essas falsas expectativas.

Só que desta vez as expectativas eram fortes porque o tema era primo de muitos dos temas de Jorge Amado.

Os malandros do Rio de Janeiro, 1928, prostituição, Candomblé, Umbanda e samba.  A história de um triângulo amoroso entre um malandro negro, Brancura, a prostitura Valdirene e o português Sodré. 

Tudo isto num cenário que sublinha o resultado do fim da escravatura, e o desenvolvimento de uma cultura negra com forte influência baiana. 

Mais ainda, o autor faz entrar personagens reais pela ficção. Grandes autores de samba como Ismael Silva. Poetas como Manuel Bandeira. Cantores, escritores, etc, etc. O próprio Brancura é uma personagem simultaneamente real e ficcionada.

O objectivo assumido pelo escritor Paulo Lins é o de contar, nesse cenário, o nascimento da primeira Escola de Samba do Rio.

Paulo Lins viveu a infância no bairro onde tudo se passa, o Estácio. E é autor do romance “Cidade de Deus” que me dizem ser notável e que não li, embora tenha visto o filme. Mas tenho pena porque sei bem que um bom livro é sempre, com raríssimas excepções, muito  melhor que a sua passagem ao ecrã.

Este livro é duro. Não fica fica pelo bonitinho. Pelo postal ilustrado. Mostra um mundo violento. Com linguagem violenta. Com gente que anda perdida à procura de si própria.

São os pais ou avós das favelas que cresceram e tomaram conta da Cidade Maravilhosa e cuja terrível teia, agora, os governos, e muitas outras instituições, tentam encontrar caminhos para desfazer.

Com tudo isso e muito mais, Paulo Lins envolveu-me, arrastou-me, trouxe-me preso vários dias a fio pela força do seu verbo. Aprendi muito sobre o Brasil E sobretudo sobre a influência da cultura africana trazida pelos escravos. E como essa cultura se desenvolveu, transformou e tornou num pano de fundo de tremenda importância, quer na música, quer na religiosidade, quer na interligação da literatura com a cultura popular.

O objectivo do autor é ambicioso. E complexo. E sabe-se que, certamente por isso mesmo, levou cerca de 10 anos a escrevê-lo.

Senti durante a leitura que a realidade e a ficção tropeçam por vezes uma na outra. O livro arranca em cima da ficção e acaba nos braços da realidade, deixando a ficção atenuar-se, morrer na areia, por assim dizer.

Há momentos deliciosos como o diálogo dos malandros com os polícias que querem proibir o samba na Festa de nossa senhora da Penha.

E há, no final, uma ideia que me encanta. A de Valdirene que, no final foge à zona do baixo meretrício e  tem dois filhos gémeos, um branco e um preto, filhos do preto Brancura e do branco Sodré. Metáfora deliciosa da própria história do Brasil.

E pronto. Eu, se calhar, gostava que este livro fossem dois. Um de ficção. Outro de História do samba e do Candomblé e etc.

Mas também penso que a História tem muito mais graça quando é olhada por dentro do seu acontecer, com olhos de gente, quer seja gente real, quer seja gente inventada. Mas sempre gente pois é de gente que se faz a boa literatura.