terça-feira, 2 de outubro de 2012
DESDE QUE O SAMBA É SAMBA
"Há várias coisas que parecem ser o que segura tudo mesmo de facto. Uma delas é juntar para cantar e dançar, justo que na arte não existe nada que possa menosprezar um tico de grão que seja do humano"
("Desde que o samba é samba")
Uma das piores formas de abordar um livro é definir um padrão de escrita desejado antes de começar a sua leitura. Partir do preconceito. Do pré-conceito. Não estar nu e preparado para ser tomado pela surpresa.
Devo confessar que Jorge Amado me deixou uma marca fortíssima. Em jovem li tudo ou quase tudo que o que grande escritor baiano escreveu.
Depois cruzei-me com a escrita de muitos outros escritores brasileiros. Clarice Lispector, Tabajara Ruas, Érico Veríssimo, Fernando Veríssimo, Nelida Piñon, Ruben Fonseca, Patrícia de Melo, João Ubaldo Ribeiro e muitos mais. E dos mais recentes tenho na pilha das urgências 2 ou 3 livros de Adriana Lisboa.
Mas preciso sempre vencer a (reconheço que errada) expectativa de encontrar características semelhantes a Jorge Amado em cada livro brasileiro. Ternura, ironia, malandrice, ingenuidade… Talvez um certo tropicalismo que sempre me arrastou ao prazer de uma língua que partilho e me é devolvida com açúcar na ponta.
Mas há outros Brasis e outras escritas brasileiras. E levo sempre algumas páginas até deixar de lado essas falsas expectativas.
Só que desta vez as expectativas eram fortes porque o tema era primo de muitos dos temas de Jorge Amado.
Os malandros do Rio de Janeiro, 1928, prostituição, Candomblé, Umbanda e samba. A história de um triângulo amoroso entre um malandro negro, Brancura, a prostitura Valdirene e o português Sodré.
Tudo isto num cenário que sublinha o resultado do fim da escravatura, e o desenvolvimento de uma cultura negra com forte influência baiana.
Mais ainda, o autor faz entrar personagens reais pela ficção. Grandes autores de samba como Ismael Silva. Poetas como Manuel Bandeira. Cantores, escritores, etc, etc. O próprio Brancura é uma personagem simultaneamente real e ficcionada.
O objectivo assumido pelo escritor Paulo Lins é o de contar, nesse cenário, o nascimento da primeira Escola de Samba do Rio.
Paulo Lins viveu a infância no bairro onde tudo se passa, o Estácio. E é autor do romance “Cidade de Deus” que me dizem ser notável e que não li, embora tenha visto o filme. Mas tenho pena porque sei bem que um bom livro é sempre, com raríssimas excepções, muito melhor que a sua passagem ao ecrã.
Este livro é duro. Não fica fica pelo bonitinho. Pelo postal ilustrado. Mostra um mundo violento. Com linguagem violenta. Com gente que anda perdida à procura de si própria.
São os pais ou avós das favelas que cresceram e tomaram conta da Cidade Maravilhosa e cuja terrível teia, agora, os governos, e muitas outras instituições, tentam encontrar caminhos para desfazer.
Com tudo isso e muito mais, Paulo Lins envolveu-me, arrastou-me, trouxe-me preso vários dias a fio pela força do seu verbo. Aprendi muito sobre o Brasil E sobretudo sobre a influência da cultura africana trazida pelos escravos. E como essa cultura se desenvolveu, transformou e tornou num pano de fundo de tremenda importância, quer na música, quer na religiosidade, quer na interligação da literatura com a cultura popular.
O objectivo do autor é ambicioso. E complexo. E sabe-se que, certamente por isso mesmo, levou cerca de 10 anos a escrevê-lo.
Senti durante a leitura que a realidade e a ficção tropeçam por vezes uma na outra. O livro arranca em cima da ficção e acaba nos braços da realidade, deixando a ficção atenuar-se, morrer na areia, por assim dizer.
Há momentos deliciosos como o diálogo dos malandros com os polícias que querem proibir o samba na Festa de nossa senhora da Penha.
E há, no final, uma ideia que me encanta. A de Valdirene que, no final foge à zona do baixo meretrício e tem dois filhos gémeos, um branco e um preto, filhos do preto Brancura e do branco Sodré. Metáfora deliciosa da própria história do Brasil.
E pronto. Eu, se calhar, gostava que este livro fossem dois. Um de ficção. Outro de História do samba e do Candomblé e etc.
Mas também penso que a História tem muito mais graça quando é olhada por dentro do seu acontecer, com olhos de gente, quer seja gente real, quer seja gente inventada. Mas sempre gente pois é de gente que se faz a boa literatura.
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