sábado, 31 de outubro de 2015

UMA CIDADE CONTADA PELO LONGE E PELO PERTO



É excelente esta colecção da Tinta da China que nos leva a viajar por lugares diversos do mundo real ou do imaginário através das palavras sempre ou quase sempre envolventes que se tornam elas próprias em caminhos admiráveis dirigidos pela mão de excelentes escritores.

Neste caso trata-se de Enric González, jornalista catalão de que já aqui falei de "Histórias de Londres" e "Histórias de Roma".

Correspondente estrangeiro do jornal El País, González tem vivido períodos de 4/5 anos em diversas cidades e que vai contando como se cruza com pequenas histórias e grandes vividas nessas cidades, lendas e mitos da sua história, do futebol, dos restaurantes, das suas figuras míticas...

O autor dá-nos o jeito da cidade, o tom, o cheiro das ruas, o gosto das suas bebidas, o característico dos seus recantos. Torna-nos cúmplices de alguns típicos personagens. Íntimos de artesãos, comeerciantes, cozinheiros, jornalistas... Liga os conhecimentos mais ou menos básicos que temos dessas cidades através de caminhos novos por onde nos faz entrar através da palavra que nos incia em dimensões novas que nos revelam dimensões desconhecidas.

Neste último livrinho, o autor leva-nos pela mão à histórias das terríveis raízes da violência com que se foi construindo Nova York. Começa pelos «bandos italianos e irlandeses do século XIX (de que nos fala com extremamente dureza o filme de Scorcese "Gangs de Nova York"). Segue pelas guerras da Mafia no ec. XX até aos extraordinários desmandos do Mayor Giuliani que acabou por limpar Manhattan da criminalidade de rua.

Conta-nos a história do aparecimento dos arranha-céus. Avisa-nos de onde se comem os melhores bifes e hamburgueres. Tenta explicar os encantos do basebol o que se revela no meu caso com pouco êxito já que sempre revelei uma grande incapacidade para entender as regras e os encantos do jogo. Ajuda-nos a entender a história dos bairros. Fala-nos dos milionários do início do século XX, Rockfeller, Morgan, Carnegie, Vanderbilt, capazes de criar fortunas impensáveis, museus fabulosos, lendas e tragédias.

O livro lê-se como quem passeia pela cidade. Mas parece não acender o mesmo encanto que nos deixa quando fala de Londres ou de Roma. Será porque a espessura das cidades europeias tem outra dimensão? Será porque o próprio autor não se deixa envolver nas malhas do encanto desta cidade? Mas o livro é imperdível. Tanto para quem nunca foi a Nova York como para quem a conhece muito bem. Saramago afirmou que "poucas leituras me deram tanto prazer nos últimos anos". Isso basta. Parece-me a mim.

domingo, 11 de outubro de 2015

SOMBRA E LUZ


Henning Mankell é um excepcional narrador com o ofício caldeado na literatura policial.

O seu inspector Kurt Wallander é uma personagem excepcionalmente bem talhada. A sua humanidade vai-se desenvolvendo através de aventuras, crimes, quer doS pequenos, quer dos crimes dos grandes grupos económicos e políticos.

O ritmo é seguro, eficaz e envolvente e a narrativa desenvolve-se através de surpresas que nos interrogam e questionam.

Assim também este “Anjo Impuro”.

Sendo um dos autores europeus que mais livros vende, Mankell vive em Maputo onde colabora e apoIa a vários níveis o excelente grupo de teatro “Mutumbela Gogo”

O seu romance, inspirado numa história real, centra-se numa jovem sueca de origem muito pobre que em 1904 embarca como cozinheira e única mulher a bordo de vapor que leva madeira para a Austrália.

Na viagem, Hanna casa-se com o imediato do navio tornando-se inesperadamente viúva, poucas semanas depois.

Incapaz de continuar a bordo desembarca em Lourenço Marques, descobre-se grávida, adoece e é recolhida e tratada no mais famoso bordel da cidade, cujas protitutas são todas negras e muito procuradas por homens brancos, profundamente racistas, mandadores de uma sociedade radicalmente racista quer em Moçambique quer na África do Sul.

Recuperada de um aborto natural, graças a uma prostituta de quem se torna amiga, Hanna começa a confrontar-se com uma sociedade que não entende. Não entende a violência e o racismo, e também não entende a reacção dos negros, os seus silêncios e as suas estranhas emoções. .

Entalada entre dois mundos, aprendendo a pouco e pouco a língua portuguesa, Hanna que aprendeu a ler e a escrever sozinha ainda na Suécia, começa a escrever um diário.

Com surpresa, Hanna recebe o pedido de casamento do riquíssimo dono do bordel. Aceita e casa-se com ele. E de novo fica viúva. Viúva e muito rica.

E a historia continua centrada na digna oposição de Hanna ao terror racista e colonial e ainda na sua tentativa de se entender, comunicar e expressar afectos aos negros, o que nem sempre se torna fácil.

Mankell consegue traçar um quadro impressionante sobre a África Austral do início do séc. XX e a dificuldade de comunicação fora do contexto de um colonialismo básico e extremamente violento.

E consegue criar uma malha narrativa que nos envolve e nos vai levando de surpresa em surpresa, de angústia em angústia, de sombra em luz.