sábado, 28 de maio de 2011

"RAYUELA", UM ROMANCE PORTUGUÊS?



Há muitos anos que eu conhecia obras do escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984), nomeadamente contos e romances, embora nunca tivesse lido o mais célebre dos seus livros: “Rayuela” (“O Jogo do Mundo,” na tradução portuguesa da Cavalo de Ferro). Talvez por duas razões: por ter receio de alguma desilusão, tais os encómios que os eruditos encartados da nossa praça lhe faziam; pelo número avultado de páginas da obra, nada condizente com a minha idade avançada e consequente aproximação do fim da vida...
Mas, vencidos estes dois “obstáculos”, lancei-me à leitura das 631 páginas da obra, e, conforme a ia lendo, mais a emoção me ia perturbando: “Rayuela” era a história da minha geração, a geração que nos anos cinquenta despontou para a leitura, para a cultura que tinha Paris como grande centro de irradiação. Mas não só: a história, as histórias que aí se narram eram as histórias de amigos meus que rumaram a Paris nos inícios dos anos cinquenta, exactamente como Julio Cortázar (e as personagens de “Rayuela”). As semelhanças com a vida de um dos meus maiores amigos, o Ilídio Henrique Correia de Sousa, eram espantosas. Daí, a emoção que não pude evitar, acrescida pelo facto de o Ilídio ter morrido há relativamente pouco tempo, em condições penosas.



Tanto o Ilídio como as personagens masculinas de “Rayuela” testemunham o drama de se pertencer a uma “cultura periférica” e nela não encontrar a sua identidade. Ou, dito por outras palavras: enquanto essas personagens viviam no seu país de origem (Argentina, Portugal), a cultura do seu país era vivida como algo de periférico em relação à centralidade da cultura dominante, a francesa; quando passaram a viver em Paris, deu-se o fenómeno inverso, Buenos Aires (no caso das personagens de Cortázar), o Porto (no caso do Ilídio) adquiriram uma inesperada força centrípeta. E quando regressaram definitivamente aos seus países, a descompensação psicológica foi-se instalando nessas personagens, levando-as a um desequilíbrio emocional que se acentuou com a idade.
Esta a história que eu vivi através do meu amigo Ilídio, esta a quase não história de “Rayuela”. “Rayuela” (“O Jogo do Mundo”), um dos romances mais inovadores da segunda metade do século XX. Um romance que é um anti-romance, em que a história não é um elemento estruturante que dá sentido à obra. Um romance que não tem uma mensagem, mas mensageiros (em última instância, eles são as mensagens).
À semelhança das personagens de “Rayuela”, o meu amigo Ilídio, homem de vasta cultura, com um domínio perfeito da língua e da literatura do seu país de origem e da francesa, “perdeu-se” na multiplicidade de mensagens que a vivência em Paris lhe facultou, nunca encontrando a MENSAGEM e, portanto, o tema para o romance que desde sempre desejou escrever. Uma autêntica personagem cortazariana, que vive e se auto-destrói, sem suspeitar que o tema do seu romance só poderá ser ele próprio e que a forma narrática decorrerá forçosamente da descrição da sua peregrinação interior! E, como esta procura-peregrinação não obedece a uma lógica linear, também a escrita não poderá seguir uma linearidade narrática tradicional, pelo que se desenvolve em “ziguezagues”, em tentativa de apreensão do sentir e do pensar das personagens. O que representa uma ruptura com as formas de escrita dos ficcionistas de língua espanhola da primeira metade do século XX. Será nesse sentido que se deve compreender a interrogação-afirmação de Cortázar: “para que serve um escritor senão para destruir a literatura?”. E, ao destruir a literatura, o escritor está a criar uma nova literatura e, por consequência, um novo leitor – “o leitor do futuro”.
“Rayuela” um “anti-romance”? Sim, portanto um romance dos tempos actuais, tão genial, tão latino, tão nosso que até dói...

quarta-feira, 18 de maio de 2011

“Em algum momento fomos simultâneos/ como dois corpos tombando na água” José Tolentino de Mendonça in “A Estrada Branca”

“também as tuas mãos haviam de chegar um dia assim
ou pelo menos foi isso que pensei quando
o teu corpo tocou ao de leve a sombra das águas
que tinham corrido ao longo das noites da tua ausência”
É sempre ousadia escrever sobre os livros de poemas que vêm desaguar nas nossas mãos, a poesia merece que se escreva sobre ela apenas para que se anuncie ao vento, para que as suas palavras aos corações levem polén como se fossem flores.
Não saberei porquê ler poemas num tempo e não noutro… Porquê uns e não outros.
Ia escrever sobre o Manuel António Pina, o alegre e justamente celebrado prémio Camões mas veio do nada este livro, já antigo, da Alice Vieira. Deixo o Manuel António Pina no seu momento de glória, celebrando justamente todos os escritores que escrevem para todas as idades, e trago a Alice, uma mulher que renasceu, rejuvenesceu e vive uma alegria contagiante a espantar alguma tristeza escondida que não é para aqui chamada. Ganhou, com um nome que não era o seu, o Prémio Maria Amália Vaz de Carvalho, em 2007, e daí “Dois Corpos Tombando Água”/Editora Caminho, seu primeiro livro de poesia.
Tombando na água da vida, da dor, da espera… Celebrando o amor, clandestino, vivido e recusado. Palavras de uma história onde cada um encontra a sua, a do seu, o que vive agora ou o que passou e o que há-de vir. A poesia chega-nos liberta das emoções de quem a escreveu preenche-se das de quem a lê e fica outra…. A poesia é como um corpo com o qual tombamos na água. Entregamos ao afago das palavras a nossa coragem para a queda ou a cobardia com que recusamos seguir o coração.
A poesia arranha como silvas e é bálsamo sobre as feridas, oferece-se para nosso deleite ou sofrimento. Não lhe podemos cobrar o embargo da voz porque a emoção somos nós que a despertamos no poema, é nossa.

“naquele tempo toda a cidade ardia e nós
ardíamos com ela mas sabíamos
que havia de chegar uma noite
em que as amarras (ou a pátria tanto faz)
seriam mais fortes e entraríamos
em silêncio no quarto
inventado palavras tão transparentes para a nossa vida
que hoje tenho dificuldade em encontrá-las
para as colocar em seus devidos lugares”

Abrimos um livro e seguimos aqueles dois seres e somos à sua medida felizes e infelizes no modo desacertado e louco do amor que passa como um rio.

“o que verdadeiramente me dói não são as palavras
que nestes anos todos ficaram por dizer
arrumadas entre os medos que não gritámos juntos
e os sonhos que não transpirei na tua pele
o que verdadeiramente me dói são os silêncios
que nunca habitámos do mesmo lado
porque o silêncio só pode ser partilhado
com aqueles que amamos até à loucura
só ele é a dádiva perfeita que não pede mais nada
a não ser um mesmo lugar para deitar a cabeça
e esperar que a madrugada lentamente desfaça
todos os segredos e nada mais seja preciso
para voltarmos a ter vinte anos mesmo que
os vinte anos tenham morrido para sempre
na cidade em chamas”

O tempo e a memória, inimigos numa vida que será o que vivemos ou será o que lembramos dela?

“e a verdade é que nunca terei outra história
para além da que nos aconteceu
e que ficamos à espera de um dia perceber melhor”

Fechado o livro continuamos mais leves ou mais pesados consoante o peso que, quando o abrimos, carregávamos.

“com que palavras irei escrever agora o nome
das horas que entram pela cama em que noutra vida
te ensinei o caminho do meu corpo
e da justeza dos gestos com que a alegria
se desenhava em mim quando dizias
agosto tu vais ver é a nossa pátria”

Poesia essa inútil existência para celebração do amor sem a/o qual a vida fica vazia de sentido.

“é claro que sei esperar por ti
sabendo desde sempre que não vens e mesmo assim
escolho sem sobressalto a música perfeita
de te acolher no sono como o enevoado rumor
de todos os encontros improváveis”

Ainda não é tarde para ler Alice.

domingo, 15 de maio de 2011

UM ADEUS COMOVENTE



O José Oliveira da Editora Caminho entregou-me este livro como se entrega uma preciosidade a alguém que é capaz de a avaliar.

Li-o com a maior atenção, sem deixar de fazer convergir todas as memórias que guardo do Mário Castrim.

Homem de convicções muito fortes, capaz de magoar e de amar, amigo extremo e adversário extremo. Não era flor que se cheirasse, dirão. O sectário geral, chamavam-lhe. Um pai de excepção, diz a Alice Vieira, sua companheira até à morte.

Conheci-o, visitei-o no dia seguinte ao nascimento do seu segundo filho. Teria eu uns 18, 19 anos...? Fiquei comovido com a sua comoção.

Li-o dia a dia nas suas críticas de televisão no "Diário de Lisboa". Delirei, detestei, comovi-me, revoltei-me com as suas palavras, os seus elogios e as suas diatribes.

Conheço-lhe as histórias e os poemas para crianças. A sua capacidade de voar nas palavras. A sua necessidade de as ancorar às certezas da ideologia que era a sua.

Mesmo saindo pouco de casa
foi um homem do mundo. Teve uma vida com sangue a correr-lhe nas veias,. Uma vida larga, contraditória, uma vida cheia de palavras que deixou cheias de vida, ao contrário de alguns jovens poetas, também cronistas, também diversos nas suas avaliações,que só têm literatura e cotão na dobra dos versos.

Os poemas agora publicados pertencem por certo aos últimos dias de Mário Castrim. Mostram-no na solitária vulnerabilidade dos seus amores, do seu espaço, dos seus objectos, da sua casa, da sua sala de onde observava o mundo através de breves rasgões e aonde convocava pássaros, mares, navios,sonhos e a dolorosa memória da su infância.

Conheceu alguns a quem o Mário, muita vezes contra a corrente, muito corajosamente colocou na galeria do pechisbeque. Sou amigo de alguns a quem ele, injustamente, magoou.

Este livro não faz esquecer farpas e ferretes mas afasta tais memórias para nos trazer a expressão intensa de um adeus comovente.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

UM PEQUENO GRANDE LIVRO



Quando se fala de livros pouco se fala de editores. E, no entanto, muitos dos caminhos da leitura são traçados pelos editores. Aqueles que vão às feiras de Frankfurt ou de Bolonha, que se apaixonam por um livro ou por autor, que apostam num desconhecido

Estou a pensar em gente de quem gosto e admiro muito, Carlos Araújo, Piedade Ferreira, Zeferino Coelho, Maria do Rosário Pedreira, Manuel Alberto Valente, João Rodrigues, Ana Pereirinha, Cristina Ovídio, Marcelo Teixeira... E outros que já se foram. Gente dos livros. Gente boa e que nos entrega nas mãos um livro como se fosse um tesouro raro (como me aconteceu hoje quando o José Oliveira da Caminho me entregou um livro de poesia do Mário Castrim)

Neste grupo queria também falar do Pedro Reisinho, jovem editor da Gailivro, editor de vários dos meus livros da área infanto-juvenil. Adoro conversar com ele, inventar projectos com ele, discutir com ele as ilustrações.

Noutro dia cheguei ao gabinete dele e o Pedro, com os olhos a brilhar, entregou-me um livro acabado de sair "LULU E O BRONTOSSAURO" escrita por Judith Viorst e ilustrada por Lane Smith. Ilustrações excelentes, concepção do objecto-livro notável, tradução (disse-me o Pedro e e eu confirmei depois) de primeira água de autoria da Carla Maia de Almeida.

Cheguei a casa e foi de uma vez que o li. Uma delícia para meninos, jovens e adultos. Um achado excelente a história de uma menina que quer ter à força um brontossauro como animal de estimação. Uma lição para pais pouco exigentes e filhos malcriados e pouco respeitadores das outras pessoas.

Uma pequena viagem que dá para rir e pensar. Sobre várias coisas e também sobre a educação dos nossos filhos.

Devia ser obrigatório. Para todas as idades.