quarta-feira, 18 de maio de 2011

“Em algum momento fomos simultâneos/ como dois corpos tombando na água” José Tolentino de Mendonça in “A Estrada Branca”

“também as tuas mãos haviam de chegar um dia assim
ou pelo menos foi isso que pensei quando
o teu corpo tocou ao de leve a sombra das águas
que tinham corrido ao longo das noites da tua ausência”
É sempre ousadia escrever sobre os livros de poemas que vêm desaguar nas nossas mãos, a poesia merece que se escreva sobre ela apenas para que se anuncie ao vento, para que as suas palavras aos corações levem polén como se fossem flores.
Não saberei porquê ler poemas num tempo e não noutro… Porquê uns e não outros.
Ia escrever sobre o Manuel António Pina, o alegre e justamente celebrado prémio Camões mas veio do nada este livro, já antigo, da Alice Vieira. Deixo o Manuel António Pina no seu momento de glória, celebrando justamente todos os escritores que escrevem para todas as idades, e trago a Alice, uma mulher que renasceu, rejuvenesceu e vive uma alegria contagiante a espantar alguma tristeza escondida que não é para aqui chamada. Ganhou, com um nome que não era o seu, o Prémio Maria Amália Vaz de Carvalho, em 2007, e daí “Dois Corpos Tombando Água”/Editora Caminho, seu primeiro livro de poesia.
Tombando na água da vida, da dor, da espera… Celebrando o amor, clandestino, vivido e recusado. Palavras de uma história onde cada um encontra a sua, a do seu, o que vive agora ou o que passou e o que há-de vir. A poesia chega-nos liberta das emoções de quem a escreveu preenche-se das de quem a lê e fica outra…. A poesia é como um corpo com o qual tombamos na água. Entregamos ao afago das palavras a nossa coragem para a queda ou a cobardia com que recusamos seguir o coração.
A poesia arranha como silvas e é bálsamo sobre as feridas, oferece-se para nosso deleite ou sofrimento. Não lhe podemos cobrar o embargo da voz porque a emoção somos nós que a despertamos no poema, é nossa.

“naquele tempo toda a cidade ardia e nós
ardíamos com ela mas sabíamos
que havia de chegar uma noite
em que as amarras (ou a pátria tanto faz)
seriam mais fortes e entraríamos
em silêncio no quarto
inventado palavras tão transparentes para a nossa vida
que hoje tenho dificuldade em encontrá-las
para as colocar em seus devidos lugares”

Abrimos um livro e seguimos aqueles dois seres e somos à sua medida felizes e infelizes no modo desacertado e louco do amor que passa como um rio.

“o que verdadeiramente me dói não são as palavras
que nestes anos todos ficaram por dizer
arrumadas entre os medos que não gritámos juntos
e os sonhos que não transpirei na tua pele
o que verdadeiramente me dói são os silêncios
que nunca habitámos do mesmo lado
porque o silêncio só pode ser partilhado
com aqueles que amamos até à loucura
só ele é a dádiva perfeita que não pede mais nada
a não ser um mesmo lugar para deitar a cabeça
e esperar que a madrugada lentamente desfaça
todos os segredos e nada mais seja preciso
para voltarmos a ter vinte anos mesmo que
os vinte anos tenham morrido para sempre
na cidade em chamas”

O tempo e a memória, inimigos numa vida que será o que vivemos ou será o que lembramos dela?

“e a verdade é que nunca terei outra história
para além da que nos aconteceu
e que ficamos à espera de um dia perceber melhor”

Fechado o livro continuamos mais leves ou mais pesados consoante o peso que, quando o abrimos, carregávamos.

“com que palavras irei escrever agora o nome
das horas que entram pela cama em que noutra vida
te ensinei o caminho do meu corpo
e da justeza dos gestos com que a alegria
se desenhava em mim quando dizias
agosto tu vais ver é a nossa pátria”

Poesia essa inútil existência para celebração do amor sem a/o qual a vida fica vazia de sentido.

“é claro que sei esperar por ti
sabendo desde sempre que não vens e mesmo assim
escolho sem sobressalto a música perfeita
de te acolher no sono como o enevoado rumor
de todos os encontros improváveis”

Ainda não é tarde para ler Alice.

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