domingo, 24 de abril de 2016

Os Papéis do Inglês


Ao acordar de manhã procuro averiguar daquela sensação, algumas vezes experimentada mas quase sempre só recordação longínqua já, de encontrar satisfação por estar vivo e haver um dia à frente para viver. A memória que tenho disso, ou a imagem que ela projecta, remete-me a Londres: disponibilidade, ausência de culpa, um envolvimento exterior simultaneamente propício e distante que me poupava a confrontos maiores, o tédio, ainda assim, de alguma forma alheio, a certeza de que a intensidade e a densidade dos estímulos e dos recursos garantiriam, de alguma forma, contornos suportáveis à presença no mundo. Aqui, talvez, depois de tantos exílios interiores e de tanta auto-flagelação, estarei mais perto de uma experiência equivalente. O acordar é fácil e acompanha a emergência da luz, os pássaros anunciam o dia com folgada antecedência, nada oprime a perspectiva da movimentação, as hipóteses de trabalho são boas, há um jipe lá fora, tenho todas as razões para acreditar que nenhuma hostilidade me cerca, pelo menos num raio de 130 kms. Quando olhar para fora depararei muito provavelmente com silhuetas distantes de mulheres que se deslocam alheias, estou no meio de um espaço que me tem servido de referência pela vida fora, em plena vigência de uma hipótese duramente conquistada à força de determinação e vontade. Por isso me coloco mansa e cautelosamente perante mim mesmo e o que me cerca, não tanto, em consciência, para aproveitar, quanto para me entregar e não estragar, impedir, viciar ou destruir.

"Os Papéis do Inglês"

                           
Um romance acerca de uma estória, que segundo ao autor, bastaria meia dúzia de minutos para contar, mas que nos remete para o cerne da arte narrativa, que passa pela história pessoal do autor, pelos aspectos problemáticos da ciência antropológica e etnográfica, pelos descaminhos históricos e  políticos pós-coloniais de Angola. Em "Os Papéis do Inglês", Ruy Duarte de Carvalho conta-nos a desventura de um personagem conradiano, Archibald Perkings, caçador e antropólogo inglês, que, em 1923, na região angolana do Kwando, matou o seu colega grego e acabou por se suicidar. Escrito numa linguagem única e extremamente original, o autor, constrói a sua versão da história através da sua própria deambulação pelo território angolano e por meio das dificuldades em recuperar os papéis do caçador inglês que possivelmente estariam entre os papéis do pai do autor que, por sua vez, estavam dispersos há dezenas de anos. 

Ruy Duarte de Carvalho (Santarém, 1941 – Swakopmund, 2010) foi um escritor, cineasta, antropólogo e professor angolano. Autor de referência da língua portuguesa, Ruy Duarte de Carvalho doutorou-se em Antropologia na École des Hautes Études de Sciences Sociales em Paris e lecionou na Universidade de Luanda e como professor convidado nas Universidades de Coimbra e de São Paulo. Para além da sua obra científica sobre as sociedades pastoris de Angola e da Namíbia, Ruy Duarte de Carvalho legou-nos um rico espólio cinematográfico e uma significativa obra literária, em verso e em prosa. 

Orfeu B.



sábado, 2 de abril de 2016

A singularidade de uma voz


Imre Kertész (1929 - 2016) nasceu em Budapeste, descendente de uma família judaica que foi totalmente dizimada nos campos de concentração nazistas. Em 1944, aos 15 anos, foi deportado para Auschwitz, Buchenwald e Zeitz, sendo libertado em 1945 pelas tropas norte-americanas. Ao retornar a Budapeste trabalhou, de 1948 a 1951, como jornalista até ter sido exonerado quando o jornal onde trabalhava se transformou em órgão do Partido Comunista Húngaro. Dedicou-se então à escrita e à tradução para o húngaro de obras de  Nietzsche, Hofmannsthal, Schnitzler, Roth, Freud, Wittgenstein, Canetti, entre outros. Escreveu também musicais e teatro de diversão. Trabalhou durante 10 anos no livro, Sem Destino, o seu primeiro romance. Pela profundidade e originalidade da sua obra literária recebeu inúmeros prémios entre os quais o Prémio Nobel da Literatura em 2002.       

"… 
Após um silêncio, o meu pai disse: pois bem, ficamos mais leves – a minha madrasta, com voz ainda embargada, perguntou-lhe se não teria sido melhor aceitar o recibo do senhor Suto. Mas o meu pai respondeu que tais recibos não tinham qualquer «valor pratico», além de ser perigoso esconde-los do que ao próprio cofre. E explicou-lhe: desta feita, «é preciso jogar tudo num única cartada», dado que, por agora não nos resta alternativa. 
Desde há duas semanas, também sou obrigado a trabalhar. Notificaram-me em papel oficial que eu estava «afecto a um emprego fixo» estava endereçado «Ao jovem aprendiz auxiliar Koves Giorgy», e vi logo que ali havia mão da União das Juventudes. 
O local de trabalho é em Csepel, numa sociedade cujo nome é «Refinarias de petróleo Shell». Desta forma, acabei por gozar de uma espécie de privilégio, pois é proibido sair da cidade com a estrela amarela.”
Quando um prisioneiro tenta regatear a entrega de um objecto de valor em troca de água e comida:

“…e ele mostrava-se disposto a fazê-lo, embora fosse, disse «contra os regulamentos». Só que não há acordo, porque a voz queria, primeiro, a água e o guarda queria, primeiro, as coisas, e ninguém queria ceder. Por fim o guarda sentiu-se melindrado: – Porcos judeus, que fazem negócio com as coisas mais sagradas!”
“Só em Zeitz percebi mesmo que o cativeiro tem a sua rotina, que o verdadeiro cativeiro não passa, no fundo, de um quotidiano cinzento.
“Não tardei muito a perceber que as opiniões favoráveis ouvidas ainda em Auschwitz acerca da instituição dos “Arbeitlager”, se baseavam, forçosamente, em informações exageradas.”

Sem Destino (1975)


“Auschwitz é o meu maior tesouro. A proximidade da morte é inesquecível. A vida nunca foi tão bela como nesse longo momento.”

O Fiasco (A Recusa) (1988)


“Não!”
"Tornou-se livre, porque já não tinha pátria. Já nem sequer tinha que decidir em que qualidade devia morrer. Como judeu, como cristão, como herói ou vítima, eventualmente, como absurdo metafísico, vítima do novo caos demiúrgico? Como estas noções nada significam para ele, decide, ao menos não sujar com a mentira o facto límpido da sua morte. Tudo lhe parece simples, porque conquistou o direito à lucidez: “Não procuremos sentidos onde não existem: o século, este pelotão de execução que cumpre o seu serviço, sem cessar prepara-se, pois, para dizimar de novo, e quis a sorte que me calhasse um número mau - ponto final”, são as sua últimas palavras, com as minhas palavras, claro.”   

Kaddish para uma Criança que não Vai Nascer (1990)


“ …
A língua – sim, ela é a única coisa que me mantém ligado a ele (Hungria). Como é estranho.  Essa língua estrangeira, minha língua materna. Minha língua materna, que me ajuda a entender os meus assassinos.
Às vezes, quase tenho que me arrancar do refúgio sossegado do meu anonimato, quando ouço falar ou vejo escrito o nome I. K., mas sei que nunca vou me identificar com ele.
"Eu sou um judeu diferente. Que tipo de judeu sou afinal? ... Sou diferente deles, sou diferente dos outros, sou diferente de mim.”

Um Outro - Crónica de Uma Metamorfose (1997)


“Vivemos na era das catástrofes, todo homem é portador da catástrofe, e para a sobrevivência se faz necessária uma arte peculiar da sobrevivência. O homem do tempo das catástrofes não tem destino, não tem qualidades, não tem caráter. O meio social terrível — o Estado, a ditadura, chame-o como quiser — o seduz com a força de atração dos redemoinhos vertiginosos até que ele desista da resistência e nele exploda o caos como um gêiser fervente — e a partir de então o caos se torna sua morada. Para ele, já não existe retorno a um ponto de equilíbrio do Eu, a uma certeza sólida e incontestável do Eu: portanto, perde-se no sentido mais verdadeiro da palavra. Esse ser sem o Eu é a catástrofe, o verdadeiro Mal.”

Aniquilação (2004)


Orfeu B.