quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Crónicas de uma Loucura Ordinária

         

Estilo é a resposta para tudo.
Uma forma renovada de acercarmos algo enfadonho ou perigoso
Fazer algo enfadonho com estilo é preferível do que fazer algo perigoso sem estilo
Fazer algo perigoso com estilo é que eu chamo arte 



A mística do poeta maldito e desajustado atravessa a história da literatura. O fascínio dos artistas que, por força da sua criatividade, foram para além dos limites da sanidade, do decoro e do conforto da conveniência política e social, conduz-nos à essência da força libertadora da literatura.   

"Crónicas de uma Loucura Ordinária" corresponde à segunda parte de duas colectâneas de contos do poeta norte-americano Charles Bukowski publicadas em 1972. O primeiro volume, intitulado “Erections, Ejaculations, Exhibitions, and General Tales of Ordinary Madness” dá-nos uma ideia do estilo irreverente e pornográfico do autor. Charles Bukowski, poeta das franjas e alcoólatra inveterado, é bem conhecido por novelas como “Factotum” (1975), “Women” (1978), “Pulp” (1994), peças de teatro como “Barfly” (1984), assim como por um número considerável de colectâneas de poemas. 

O conto “The Most Beautiful Woman in Town” inspirou o comovente e perturbador filme de 1981 “Crónicas de uma Loucura Ordinária” do realizador italiano Mario Ferreri. Magistralmente interpretado por Ben Gazzara e Ornella Muti, o filme apresenta-nos com cores fortíssimas a voragem de uma relação apaixonada e suicida entre um poeta, Charles Serking, e a sua musa, a jovem prostituta Cass. Inadaptados numa sociedade desumanizada e embrutecida pelo consumismo e pelo materialismo, Charles e Cass vivem precariamente na vertigem do gume afiado da anestesia alcoólica e da auto-mutilação. Quando Cass se suicida, Charles é consumido pelo sentimento de culpa e mergulha na dor e na incerteza da sua escrita. 

A declamação do poema Estilo, que é transcrito abaixo na sua forma original, captura com fidelidade a intensidade do exercício poético e o seu extraordinário poder de iluminar os mais recônditos redutos da alma. Só um poeta tem a sensibilidade necessária para compreender completamente a tragicomédia da existência.  


“Style is the answer to everything.
A fresh way to approach a dull or dangerous thing
To do a dull thing with style is preferable to doing a dangerous thing without it
To do a dangerous thing with style is what I call art

Bullfighting can be an art
Boxing can be an art
Loving can be an art
Opening a can of sardines can be an art

Not many have style
Not many can keep style
I have seen dogs with more style than men,
although not many dogs have style.
Cats have it with abundance.

When Hemingway put his brains to the wall with a shotgun,
that was style.
Or sometimes people give you style
Joan of Arc had style
John the Baptist
Jesus
Socrates
Caesar
García Lorca.

I have met men in jail with style.
I have met more men in jail with style than men out of jail.
Style is the difference, a way of doing, a way of being done.
Six herons standing quietly in a pool of water,
or you, naked, walking out of the bathroom without seeing me.”


Orfeu B.
   



domingo, 19 de outubro de 2014

Quando Sherlock Holmes existiu na realidade...

Arthur & George





Julian Barnes

Arthur & George, de Julian Barnes, é um livro tecnicamente extraordinário. Mas, mais impressionante do que a forma como está escrito, é a riqueza e densidade de interpretações e visões que proporciona que o transformam num livro fascinante.
Partindo de uma premissa – baseada em factos reais – tão inesperada quanto brilhante (Arthur Conan Doyle, o escritor que criou Sherlock Holmes, investiga um caso real, tentando ilibar George Edalji de um crime que este não cometeu, aplicando numa investigação verdadeira e concreta os mesmos princípios detectivescos que atribuiu à sua personagem ficcional), Barnes conta-nos um pedaço de história verdadeira que é, simultaneamente, uma estória literária, dissipando de forma tão provocatória quanto deliciosa as fronteiras entre realidade e ficção, entre biografia e romance.
Começamos por acompanhar os percursos de vida de Arthur e de George, em separado; se um é uma individualidade marcante da sociedade inglesa de finais do século XIX e início do século XX, o outro é um simples anónimo embrenhado numa vida banal e algo peculiar que teve o azar de ser arrastado para uma situação complicada e injusta. Os caminhos de ambos acabarão por se cruzar lá para meio do livro, em momentos chave da vida de cada um, coincidindo num relacionamento breve mas determinante, para se voltarem inevitavelmente a separar. (O livro termina pouco depois da morte de Conan Doyle.)
Mais do que o relato de duas vidas de alguma forma extraordinárias e muito mais do que uma estória de detectives inteligente, este livro surge-nos como um retrato acutilante e abrangente da sociedade inglesa, nas suas vicissitudes e particularidades, nas suas riquezas e fraquezas. Na verdade, juntamente com os dois protagonistas, é-nos apresentada uma outra personagem, magistralmente criada, que acaba por se impor como a verdadeira protagonista: a “essência” do ser inglês, uma certa “britishness”.
Com uma leveza aparente e ilusória, oscilando entre o trágico e o cómico,
Barnes conduz-nos afinal por entre inesperadas reflexões que acabam por constituir uma espécie de terceira camada do livro (se considerarmos que a primeira se ocupa de Arthur e George em particular, da forma como as suas personalidades evoluíram ao longo do tempo; e a segunda da sociedade inglesa em abstracto), conferindo-lhe uma densidade e abrangência imprevista; temas como o poder da imprensa, o arcaísmo arbitrário do sistema judicial, a dissimulação do racismo, a importância do empenho cívico individual activo, a incompetência e arrogância da polícia, a cegueira provocada pela religião, a pressão moral imposta pela sociedade através da ditadura da aparência, bem como questões mais íntimas como a solidão solitária e a solidão acompanhada ou o relacionamento individual com a morte, conferem a este livro – que não
deixará de representar uma visão ficcionada de uma época história distante – uma actualidade não apenas desconcertante mas, principalmente, preocupante. 

Leitor convidado: Paulo Kellerman, escritor
http://agavetadopaulo.blogspot.pt/