sábado, 25 de fevereiro de 2012

COM PALAVRAS FAZER ACONTECER


Mário de Carvalho diverte-se e nós também. Os seus contos são frequentemente brilhantes e servidos por uma escrita de altíssima qualidade.

As suas narrativas partem daquela ideia enunciada por Jorge Luís Borges segundo o qual com palavras podemos fazer acontecer um tigre. Ou qualquer outra coisa, digo eu. A palavra acrescenta e expande a realidade. E é nessa capacidade de expandir a realidade que o Mário é um mestre.

Haverá 3 ou 4 linhas nesses contos. O livro é aliás organizado em 4 capítulos sem título.

No primeiro temos os contos totalmente inventados que exploram o universo de certas histórias ou reportagens de cenários de guerra num país árabe e, o outro, em África. Este último “Na terra dos Makaueles” é uma verdadeira obra prima de invenção pstiche e ironia com um final delicioso.

No segundo grupo temos contos mais próximos do realismo. Histórias dos tempos da resistência ao fascismo. Desenhadas com uma excelente capacidade de captar o tom da época quer na acção quer nos diálogos.

O terceiro grupo situa-se no campo do absurdo, outra zona onde o Mário se sente como peixe na água, aliás como aquele estranho peixe de “O Celacanto” que se transformou em primo de instalações artísticas patarecas e foge da galeria passeando ou voando (?) à solta pelas ruas de Lisboa.

O quarto grupo, onde está mais ausente a ironia que é a roupa que melhor veste a escrita de Mário de Carvalho, para nos dar três narrativas obsessivas, inquietantes, um tanto psicologistas.

Li-o num dia e meio. Quase sem parar. O conjunto resulta num tempo de leitura divertida e consistente como é raro encontrar na literatura actual.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

UM ROMANCE PARA MASTIGAR


Escrita portentosa do Nobel J. M. Coetzes. Escrita funda. Organizada. Aparentemente do lado racional do olhar sobre o mundo. Mais virada às racionalidades que às emoções.

Elizabeth Costello é uma escritora australiana que percorre o mundo a fazer palestras. Nos primeiros 7 capítulos assistimos às suas palestras, às suas ideias por vezes contraditórias sobre o bem e o mal, os direitos dos animais, o holocausto, etc.

A princípio o livro parece ser apenas uma exposição brilhante de ideias. Mas, a figura da escritora vai crescendo quase sem o leitor se dar conta disso e explode numa forma muito particular de associar o racional e o emocional, para terminar de forma absolutamente inesperada ou pelo menos surpreendente com a espessura que só um grande escritor é capaz de conferir à sua escrita.
Neste romance construído cuidadosamente e cheio de pequenas e grandes surpresas, Coetzee obriga-nos a pensar, a argumentar, a usar o contraditório, a emocionarmo-nos com o brilhante exercício de uma racionalidade levada quase até ao extremo.

Diria que “Elizabeth Costello” é um romance para mastigar, para ler devagar, parar a meio, voltar atrás. Para reler. Não serve para distrair. Não é um entretenimento. É literatura. Grande. Daquela que nos faz pensar e repensar no tempo que nos é dado viver através do uso notável da arte das palavras e da reflexão sobre o uso dessa arte.

"(...)//Em qualquer aventura,/ O que importa é partir, não é chegar." António Gedeão

Um barco no Céu
Texto: Quentin Blake
Ilustração: Quentin Blake
Editora Kalandraka

Este livro resulta de uma troca de ideias, sobre o mundo actual e as suas injustiças,  ao longo de um ano, entre o autor Quentin Blake e 1800 meninos e meninas da Grã-Bretanha, China, Irlanda, Luxemburgo, Noruega e França.

Duas crianças. Um passeio na praia e um encontro. Os destroços de um barco. Mas o barco reconstrói-se  e a viagem começa em voo pelo céus. A tripulação vai aumentando: uma cegonha ferida, uma criança extenuada por trabalho, um miúdo quase sufocado pelo fumo de uma cidade, um bebé e uma mãe resgatados de uma guerra...

A magia do barco voador explica-a a fantasia e determinação de cada um de nós.
A ilustração, também de Quentin Blake que muitos reconhecerão dos livros de Roald Dahl (Matilda, As Bruxas, A Fábrica de Chocolate e tantos outros), respira com leveza e deixa a sensação de também nós partirmos pela vastidão do céu. 
Uma espiral de ajuda no meio da universal crueldade do mundo que permanece num voltar atrás na página.
Não resolvemos tudo mas é necessário não desistir de tentar resolver o possível.  
Um livro para (dar a) ler, sem moralismos mas com esperança.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

O TEMPO E O DESERTO



Ponto Ômega é o termo criado por Pierre Teilhard de Chardin para descrever o último e máximo nível da consciência humana. Chardin advoga que a evolução humana tem um ponto final, quando todas as consciências se fundirão numa só e a humanidade é um único ser que habita o planeta inclusive fora de nossos corpos e mentes.

Ponto Ómega é o título deste livro de DeLillo, autor que nunca tinha lido. Estava na imensa lista das minhas mais graves falhas de leitura. E gostei muito e fiquei com vontade de conhecer mais.

Ruchard Elster é um intelectual que colaborou com o Pentágono na conceptualização das manobras da guerra do Iraque. Elster afirma que a verdadeira vida tem lugar apenas quando estamos sozinhos a meditar, a sentir, perdidos das nossas memórias.

Elster vai viver para o deserto, onde julga poder anular o tempo e afastar-se de tudo o que perturba o encontro único consigo próprio.

Um jovem realizador de cinema pretende fazer um filme num único plano-sequência, com uma única personagem.

Escolhe Elster e vai ter com ele ao deserto onde tenta convencê-lo a participar nesse seu projecto.

O quotidiano dos dois torna-se num longo diálogo sobre a vida, o tempo, a guerra, até ao aparecimento da filha de Elster que, subitamente, introduz uma inflexão dramática que nos mostra a impossibilidade da dissolução no nada do deserto ou no absoluto da alma.

Escrito brilhantemente, o romance tem dois capítulos (o peimeiro e o últrimo) particularmente notáveis e inquietantes. Trata-se da descrição das sessões no MOMA à projecção do filme VERTIGO de Hitchcok passado a uma velocidade extremamente lenta.

Todo o romance trata disso mesmo: da possibilidade ou impossibilidade de caminhar para esse ponto ómega de que falava Chardin.


quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

O MODERNO E O ANTIGO


O filho do romancista australiano Peter Carey está apaixonado pela manga e pelo anime (banda desenhada e desenhos animados japoneses). O pai resolve levá-lo para ambos conhecerem o Japão.

Mas o Japão tradicional não, exige o filho. O pai aceita um mergulho no Japão moderno e aproveita para fazer entrevistas a criadores de manga mas também consegue arrastar o filho ao teatro kabuki.

Entre o moderno e o antigo Peter Carey tenta entender o Japão. Nesse balanço fala-nos sobre a mitologia dos samurais e relembra-nos a tremenda destruição sofrida pelo país durante a 2ª guerra mundial.

O filho encontra-se com um estranho amigo japonês conhecido no facebook e tenta elucidar o pai sobre alguns aspectos invulgares do Japão moderna.

Entre pai e filho, entre moderno e antigo, o livro avança como uma espécie de simpático relatório de perplexidades, uma tentativa muito séria de tentar compreender e dar a compreender o Japão.

E é para isto que serve um livro de viagens: dar-nos a conhecer um olhar que tenta mergulhar na realidade mais ou menos profunda, mais ou menos superficial de um dado país, conjugando esse olhar com dados históricos, apontamentos de conversas, descrições culinárias...

Enfim, um livro de viagens, um bom livro de viagens é o que há de mais próximo da viagem propriamente dita. E mesmo depois da viagem, o olhar de outro acrescentar-nos-á sempre qualquer coisa outra aquilo que vivemos directamente.

É este o encanto dos livros de viagem e, particularmente, desta colecção da Tinta da China.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

“precisava deste resto de solidão para aprender sobre este resto de companhia” valter hugo mãe

 De valter hugo mãe 



A Máquina de Fazer Espanhóis
Editor: Alfaguara Portugal




À primeira o título não me inspirou confiança; parecia tratar-se de uma qualquer piada ibérica.
Ultrapassada tal reserva o livro “a máquina de fazer espanhóis” veio para a minha leitura e passou a ser um dos livros preferidos. Os títulos de cada capítulo são imagens de uma realidade genialmente descrita em letras minúsculas. “o fascismo dos bons homens” “o amor é uma estupidez intermitente mas universal” “o esteves a transbordar de metafisica” “cidadãos não praticantes” “deus é uma cobiça que temos dentro de nós” e “precisava deste resto de solidão para aprender sobre este resto de companhia” são alguns que destaco. Depreende-se deles uma história de solidão, de velhice, de amizade, de reencontros.
Como que de raspão, mostra-se a teia política do Estado Novo, que leva um bom homem a denunciar um opositor ao regime salazarista, em nome da não sacrificável beatitude familiar.

O diálogo inicial entre o administrativo silva da europa e o silva, protagonista do livro, um quase monólogo daquele face ao resistente mutismo deste, inteira-nos com mestria no cidadão orgulhoso da liberdade conquistada, aceitando-a como dado adquirido num espaço orgulhosamente europeu, com o risco de “uma não importância que se pensa porque parece que já nem é preciso pensar”.
E a parca intervenção ensimesmada da silva protagonista varia, entre a preocupação sobre a vida da mulher hospitalizada e as interrogações comuns do seu universo como cidadão.
Magistralmente pela escrita sentimos o questionar da dignidade humana na sociedade actual, dos hábitos que gerem a vida, da necessária adaptação ao novo quando aqueles se rompem, mesmo que se tenha 84 anos.

Os 2 “silvas” são a escolha sábia de um nome e um sentir português, como se um e outro fossem “a frente “ e o “verso”. No decorrer da história, a bem dizer da escrita vários intervenientes se cruzam num misto de raiva, frustração, empatia, amizade e amor. E traz-nos ainda na vivência, um protagonista da Tabacaria de Álvaro de Campos,  figura que atravessa o livro como um ídolo com o qual os /nos presenteiam em pessoa, mandatário do génio escritor no seu heterónimo. Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!” (Tabacaria)

A ironia mesclada de alguma inocência na imagética religiosa dá-nos pinceladas únicas de um ateísmo que se revela companheiro na figura solitária de uma nossa senhora de fátima rodeada de pombas em forma de estátua.

O lar que se afigura humano na pessoa dos companheiros e do ajudante de lar, personagem simpática e acolhedora que acompanha e suaviza a vida de cada um, não atenua o cinzentismo mórbido de uma ala com vista para o cemitério onde ficam os dependentes à beira da última viagem. Onde fica pois o espanhol um dos mais recentes utentes e onde se constrói toda uma sombria fantasia tornada real e onde se desenrola todo um sonhar que dá o título ao livro.

Aí nesse lugar despede-se de nós, como se da própria vida fosse, o Silva do livro por quem nos apaixonamos irremediavelmente e a quem queremos salvar da morte no encerrar das páginas. Um silva que traz nele cada um de nós no nosso presente e no nosso futuro. Inolvidável leitura.

Leitora convidada: Cristina Lopes. Advogada. “Leitora compulsiva, amante de artes e ambiente aqui ando em busca de correcta aplicação de leis na ajuda das vidas. Algum nomadismo desde que confortável.”




quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

A URGÊNCIA DA POESIA

"VIM PORQUE ME PAGAVAM"

GOLGONA ANGHEL

Há muito que não encontrava poesia escrita e editada em Portugal com esta urgência, força, este sangue por dentro, esta raiva, esta vontade de gritar, esta intenção de inscrever a sua urdidura de palavras e sentidos e cacos de vida num discurso urgente que se parte estilhaça a página e espalha em seu redor recriminações, vidros, quebras, palpitações, e um óbvio desejo de caminhar num percurso de referências literárias e filosóficas de largo espectro.

Golgona não bebe no que tem sido a moda dominante da poesia melancólica encerrada nas malhas ténues de um quotidiano sem alma. Tem a ver com caminhos largos e marginais, buscas estridentes, música que se impõe através de colagens de sentidos com ressonâncias surrealistas e próximas de alguns dos poetas da beat generation.

Golgona é romena e vive há alguns anos em Portugal. Licenciada em literatura portuguesa e estudiosa da obra de Al Berto.

300 exemplares é a tiragem desta edição da Mariposa Azul, uma das pequenas editoras que estão a insistir na publicação de poesia em pequeníssimas tiragens.

De qualquer forma, a poesia continua e muito a refugiar-se no mundo da blogosfera com alguns autores de basta qualidade e muitos equívocos porventura bem intencionados.

Compra-se pouca poesia mas escreve-se muita. Talvez demais. Ou não. A poesia continua a ser a forma de muitos de nós falarmos em português. Poucos tão bem como esta poeta.