De valter hugo mãe
A Máquina de Fazer Espanhóis
Editor: Alfaguara Portugal
À primeira o
título não me inspirou confiança; parecia tratar-se de uma qualquer piada
ibérica.
Ultrapassada tal reserva o livro “a máquina de
fazer espanhóis” veio para a minha leitura e passou a ser um dos livros
preferidos. Os títulos
de cada capítulo são imagens de uma realidade genialmente descrita em letras
minúsculas. “o fascismo dos bons homens” “o amor é uma estupidez intermitente
mas universal” “o esteves a transbordar de metafisica” “cidadãos não
praticantes” “deus é uma cobiça que temos dentro de nós” e “precisava deste
resto de solidão para aprender sobre este resto de companhia” são alguns que
destaco. Depreende-se deles uma história de solidão, de velhice, de amizade, de
reencontros.
Como que de
raspão, mostra-se a teia política do Estado Novo, que leva um bom homem a denunciar
um opositor ao regime salazarista, em nome da não sacrificável beatitude
familiar.
O diálogo
inicial entre o administrativo silva da europa e o silva, protagonista do
livro, um quase monólogo daquele face ao resistente mutismo deste, inteira-nos com
mestria no cidadão orgulhoso da liberdade conquistada, aceitando-a como dado
adquirido num espaço orgulhosamente europeu, com o risco de “uma não
importância que se pensa porque parece que já nem é preciso pensar”.
E a parca
intervenção ensimesmada da silva protagonista varia, entre a preocupação sobre
a vida da mulher hospitalizada e as interrogações comuns do seu universo como
cidadão.
Magistralmente
pela escrita sentimos o questionar da dignidade humana na sociedade actual, dos
hábitos que gerem a vida, da necessária adaptação ao novo quando aqueles se rompem,
mesmo que se tenha 84 anos.
Os 2
“silvas” são a escolha sábia de um nome e um sentir português, como se um e
outro fossem “a frente “ e o “verso”. No decorrer
da história, a bem dizer da escrita vários intervenientes se cruzam num misto
de raiva, frustração, empatia, amizade e amor. E traz-nos
ainda na vivência, um protagonista da Tabacaria de Álvaro de Campos, figura que atravessa o livro como um ídolo com
o qual os /nos presenteiam em pessoa, mandatário do génio escritor no seu
heterónimo. “Acenou-me
adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!” (Tabacaria)
A ironia
mesclada de alguma inocência na imagética religiosa dá-nos pinceladas únicas de
um ateísmo que se revela companheiro na figura solitária de uma nossa senhora
de fátima rodeada de pombas em forma de estátua.
O lar que se
afigura humano na pessoa dos companheiros e do ajudante de lar, personagem simpática
e acolhedora que acompanha e suaviza a vida de cada um, não atenua o
cinzentismo mórbido de uma ala com vista para o cemitério onde ficam os
dependentes à beira da última viagem. Onde fica pois o espanhol um dos mais
recentes utentes e onde se constrói toda uma sombria fantasia tornada real e
onde se desenrola todo um sonhar que dá o título ao livro.
Aí nesse
lugar despede-se de nós, como se da própria vida fosse, o Silva do livro por
quem nos apaixonamos irremediavelmente e a quem queremos salvar da morte no
encerrar das páginas. Um silva que
traz nele cada um de nós no nosso presente e no nosso futuro. Inolvidável
leitura.
Leitora convidada:
Cristina Lopes. Advogada. “Leitora compulsiva, amante de artes e ambiente
aqui ando em busca de correcta aplicação de leis na ajuda das vidas. Algum
nomadismo desde que confortável.”
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