terça-feira, 28 de outubro de 2008

ARSÈNE LUPIN OU DAS BOAS E DAS MÁS RAZÕES EM LITERATURA

Maurice Leblanc



Arsène Lupin é um dos grandes heróis da literatura do século XX. Da literatura francesa, da literatura mundial. Mas, coisa curiosa, a celebridade do autor das obras que
têm o Arsène Lupin como figura central – Maurice Leblanc – não acompanha, nem de longe, a fama da personagem. Na realidade, Maurice Leblanc continua a ser um desconhecido para o grande público. Isso, e algo mais, acaba de me ser recordado num número já antigo da revista Lire, que acabo de reler. De entre os artigos inscritos nessa revista, avulta a entrevista feita a Jacques Derouard, biógrafo do autor e coeditor de Arsène Lupin. Nela, Derouard chama a atenção para um aspecto da personalidade de Leblanc, que tem algo de dramático: ele amava e odiava Arsène Lupin. Esta ambivalência de sentimentos acompanhou-o durante toda a vida e atingiu, nos últimos anos, uma acuidade doentia. Eu explico-me.
Leblanc é de origem normanda, como Flaubert e Maupassant, autores de quem recebeu uma forte influência. Foi sob a sua influência que escreveu os primeiros romances. Se as temáticas abordadas têm a ver com autores ingleses de finais do século XIX, a forma e a trama sentimental muito devem aos franceses da sua devoção. Mas, contrariamente ao que seria de esperar, as suas obras, embora reconhecidas pela crítica, não tiveram êxito perante o público. O que não aconteceu com as histórias do Arsène Lupin, o ladrão cavalheiro, “dandy” que pratica o roubo como quem realiza uma obra de arte. Histórias publicadas inicialmente na revista “Je sais tout” e, de seguida, saídas em livro. O êxito, em França e no mundo, é fulminante, o que o transforma num dos escritores mais populares de língua francesa. Essa popularidade agrada-lhe (até pelos proventos que arrecada) e incomoda-o: a sua aspiração de ser considerado um autor clássico, que busca assento na Academia Francesa, vai sendo algo de cada vez menos viável. Mata Arsène Lupin por diversas vezes, é certo, mas os seus editores exigem sempre que o ressuscite na história seguinte... E a neurastenia (essa terrível doença dos intelectuais do século XIX, da primeira metade do século XX) vai-o dominando: criou uma personagem que lhe configurou uma “identidade social”, com a qual não se identifica. Personagem de que não consegue libertar-se. Por via dela, será sempre um escritor “popular”, que nunca poderá sentar-se ao lado dos “grandes” escritores franceses que ocupam as cadeiras do Olimpo das Letras – as cadeiras numeradas da Academia dos Imortais Sentados. Hoje, ao lerem-se as suas diversas obras, não se pode deixar de dar razão à escolha que o público fez: as obras em que são narradas as aventuras de Arsène Lupin são, sem dúvida, as suas melhores obras. Mais, ainda: são do melhor que a literatura francesa produziu no século XX.
O que não impediu que a vida de Leblanc, nos últimos anos (morreu em plena Grande Guerra Mundial, em 1941), não virasse tragédia. Leblanc acabou por “ceder” à personagem que criou, que o foi “possuindo” gradualmente: num livro de honra de um restaurante, assinou Arsène Lupin...; na sua casa de Etretat, Arsène Lupin “entrava-lhe” pela porta dentro, a qualquer hora, o que o incomodava altamente, principalmente quando estava sentado à sua mesa de trabalho, a escrever – o que o levou a fazer uma participação ao chefe da policia local...
Para mim, o que é mais impressionante é este desencontro entre a imagem que o
autor tem de si e a que o público dele faz. O que, no caso presente, nos leva a concluir que Maurice Leblanc ficou célebre pelas razões que ele considerava não serem as melhores... Enfim, coisas da escrita e dos escritores...




Uma das versões de Arséne Lupin

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

O céu é dos violentos



Quando li o livro de contos “Um bom homem é difícil de encontrar” da Flannery O’Connor, (numa edição da D. Quixote, já lá vão uns bons anos) foi como se tivesse sido arrancado com violência da cadeira e arremessado de encontro a uma parede. A crueza, o dramatismo e a ferocidade dos personagens e situações deixaram-me perplexo e fascinado. A editora Cavalo de Ferro tem vindo a editar os livros da Flannery O’Connor a um bom ritmo (alguns deles já anteriormente publicados por outras editoras).

O livro que agora li, foi “O céu é dos violentos”. O livro começa com a morte de Mason Tarwarter. Este irado e fanático personagem, numa linha ténue entre a loucura e a religiosidade, define um profeta como alguém que só pode esperar o pior da sua existência terrena. A vida de Mason Tarwarter, ele próprio profeta nesta vertente muito peculiar, está marcada por infelicidade, loucura e violência. A citação de S. Mateus, que dá título ao romance, é inteiramente apropriada, já que é intenção de Flannery O’Connor demonstrar que o espírito inspirador de S. João Baptista pode também inflamar um rude camponês sulista: “Desde os dias de João Baptista até agora, o reino dos céus tem sido objecto de violência e os violentos apoderaram-se dele à força”. Mason Tarwarter é o tio-avõ de Francis Tarwarter, um adolescente de catorze anos. Mason educou o sobrinho num universo de confrontações dramáticas, devendo o rapaz esperar a infelicidade a loucura e a violência. Quando o seu tio-avõ morre, Francis tenta renegar a herança pesada e não cumpre o pedido do tio-avõ: ser enterrado – Mason acaba por ser enterrado com a ajuda de um negro, mas Francis pega fogo à propriedade rural onde viviam. Francis vai então ter com o seu tio Rayber e o filho deste, Bishop, uma criança diminuída mental. Está implícito no livro que um Rayber supostamente são, simbolizando o senso comum de pés agarrados à terra, está destinado a viver numa enorme escuridão. Os aparentemente transtornados Tarwarter são, para Flannery O’Connor, mais aceitáveis que Rayber, e Francis rapidamente descobre que o peso da herança do seu tio-avõ se sobrepõe à sua nova vida secular. Estas convicções religiosas de Flannery O’Connor podem parecer desconcertantes e estranhas. Mas o mais importante é que ela sabe contar uma história. Não é necessário partilhar as suas convicções para nos encantarmos com este livro.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

O Médico Inverosímil


Com pequenas narrativas, Ramon Gómez de la Serna conta a história deste médico na primeira pessoa. Não se trata de um médico vulgar absorvido na esfera da ciência, mas sim de um médico que observa minuciosamente todos os aspectos da vida do doente, crente de uma segunda física que é responsável pela doença (às vezes a culpa é de um relógio de bolso pertencente a um falecido, outras vezes é da dama de companhia - mulher que consome a vida de outra), um médico que cura as doenças da alma, um médico poeta. Deu-me a sensação de uma certa critica social, uma ironia à volta de muitos personagens que aparecem por aqui. É um livro divertido.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

DAS BOAS E DAS MÁS RAZÕES DO SUCESSO DE UM LIVRO




Norman Rockwell


Em tempos, não era difícil conhecer as razões do êxito de uma obra literária. A obra impunha-se pelo seu valor, pela temática abordada, pelo nome do autor, pela crítica literária que lhe era feita. Talvez houvesse outras razões, mas estas eram, sem dúvida, as mais plausíveis.
Actualmente, a crítica literária desapareceu e a indústria do livro tomou conta deste sector do mercado, passando a tratar a obra literária como uma mera mercadoria. Enfim, uma mercadoria mais, igual a tantas outras.
Esta situação levou a uma "produção" planificada do livro, em que o "marketing" desempenha um papel central – nada é deixado ao acaso, nada… excepto o valor literário da obra! Parafraseando um dito célebre, que tem sido atribuído tanto a Clemenceau como a Churchill ("a guerra é uma coisa demasiado séria para ser deixada aos militares"), direi que, actualmente, a literatura é negócio demasiado arriscado para ser entregue aos autores literários...
Assim, a primeira grande opção é a da escolha do autor – figura pública, de preferência "pivot" da televisão ou membro do "jet-set". Ou, talvez, alguém que se tenha evidenciado por algum escândalo de fortes repercussões sociais. Também são bastante apreciados temas escabrosos ou referentes a futilidades em voga. E porque não se há-de pôr na capa que o livro foi escrito por uma jovem de dezasseis anos, que, de um só jacto, produziu tal obra-prima? A linguagem "pimba", as situações ridículas, as revelações místicas constituem sempre ingredientes de "alta voltagem" para os profissionais desta indústria. Por outro lado, cartazes e outros anúncios publicitários têm, de cada vez mais, um peso acrescido nas campanhas de promoção dos livros. A indicação do número de edições e das dezenas de milhar de obras já vendidas – quem os controla? – são garantia, mais que evidente, do valor da obra.
De um modo geral, este é o panorama do que se passa em Portugal. Noutros países, nomeadamente nos de língua anglo-saxónica, as coisas ainda são mais refinadas, o que não é para admirar, dadas as características dos seus sistemas de produção e consumo. Estas considerações decorrem da leitura de um artigo publicado no Le Monde, em que se fala de dois escândalos que abalaram o mundo das letras norte-americanas. Escândalos diferentes nas suas tramas, mas idênticos na sua natureza. O artigo, que tem por título "J. T. Leroy, falsa criança das ruas e escritor fictício", transcreve, por sua vez, um outro artigo do New York Times, no qual se revela que J. T. Leroy não é o autor da obra que lhe deu fama e que a descrição da sua "infância trágica" (cerne da obra em causa) é uma pura fantasia de autor.
Aparentemente, todos se sentem burlados, inclusivamente o seu agente literário, que não quer continuar a representar tal criatura. Outro autor de grande sucesso nos EUA é James Frey, também acusado de "prática fraudulenta", por ter ficcionado a sua própria vida, em obra apresentada como sendo estritamente autobiográfica. E estes escândalos parecem estar a pôr em causa as vendas das obras destes autores. Mas porquê? Então não se sabe, desde que há escrita ficcional, que o autor é um efabulador? Mesmo (ou principalmente) quando se reclama de herói da sua própria história? Trata-se, em última instância, de um artifício literário de provas dadas e de êxito assegurado, ao longo dos tempos. Aparentemente, não se compreende, pois, a razão de tanto escândalo. Aparentemente, pois, na verdade, a explicação é simples: o que a publicidade fez vender não foi a obra literária, mas o seu autor (ou pretenso autor). A desgraça (ou a graça) de um cavalheiro que teve a "coragem" de pôr a nu a "tragédia" da sua vida, da sua infância "desvalida". Tão simples quanto isso. Enfim, sinal dos tempos, em que o produto não é vendido pelo que vale, mas pela "roupagem" em que é envolvido. Em Portugal, ainda não chegámos a estes "extremos", mas já não andamos longe...
O que foi dito põe-me uma questão, enquanto educador que sou: como criar nos jovens o espírito crítico necessário à escolha de uma obra literária de valor? Como desenvolver neles o gosto pela literatura? Quais as estratégias a seguir, as ferramentas a utilizar? Na verdade, não basta denunciar, é preciso construir, participar na construção de um ser humano que pense por si, que saiba distinguir entre o verdadeiro e o falso, entre o que é bom e o que não o é. Que assuma valores e os pratique. Que não seja um ser passivo perante a onda avassaladora de informação, de desinformação, com que os "media" nos submergem, nos aliciam diariamente.
Enfim, este é assunto demasiadamente sério (e complexo) para ser tratado de modo sucinto. Por isso, urge voltar a ele, debatê-lo, aprofundá-lo.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

O Diabo e outros contos



Lev Tolstói é um dos GRANDES da literatura e um dos meus autores russos, os que me foram acompanhando ao longo da vida. É obviamente mais conhecida a sua vertente de obras de longo fôlego (Guerra e Paz; Anna Karénina), mas também publicou vários contos e novelas. A editora Relógio d’Água deu-nos já duas excelentíssimas novelas: “A morte de Ivan Illitch”e “A sonata de Kreutzer”. A mesma editora deu agora à estampa um volume de contos que intitulou “O diabo e outros contos”. Três dos contos (“O diabo”, “Depois do Baile” e “Três mortes”) já os tinha lido numa colectânea mais extensa publicada pela editora brasileira Cosac & Naify (tem um excelente catálogo). O conto “O patrão e o moço de estrebaria” já o tinha também lido recentemente numa pequena edição de bolso intitulada “Senhor e servo” (excelente). Restavam dois contos e não pude deixar de comprar o livro.
O conto “O padre Sérgui” coloca-nos perante uma crise espiritual. O príncipe Stepan Kassátski segue a carreira militar e é colocado no aristocrático regimento da guarda imperial. Jovem, brilhante e esforçado por fazer carreira, rapidamente progride. Para entrar nos círculos mais restritos da sociedade resolve casar com uma menina de círculo elevado. De algo tão cínico nasce, no entanto, uma paixão grande. Kassátski pertencia aquele tipo de homens que exigiam uma pureza ideal e celestial à esposa. Duas semanas antes do dia marcado para o casamento, a noiva conta-lhe que tinha sido amante do imperador. A desilusão quanto à noiva que imaginara um puríssimo anjo e a sensação de ter sido insultado eram tão fortes que o levaram ao desespero, desespero esse que o levou a Deus e a uma fé infantil. Kassátski toma o hábito e entra para um mosteiro. Ao fim de vários anos no mosteiro, sempre atormentado pelo desejo que se erguia impressionante, Kassátski tem um acto de grande orgulho perante um general que era do seu regimento. Pede então para ser transferido para outro sítio e acaba por se tornar eremita vivendo numa fenda de uma gruta. Um mulher tenta-o, mas ele consegue resistir cortando um dedo. Com o passar do tempo, começa a circular a ideia de que o padre Sérgui é curandeiro e milhares de pessoas o procuram. Cada vez ele acha mais que não está servir a Deus propriamente, mas às pessoas e com algum orgulho pessoal. E deixo o resto para vosso deleite pessoal.

O conto “Albert” é sobre um artista (músico) caído em desgraça, pobre, sem trabalho, miserável, alcoólico, mas que consegue encantar ao tocar violino. Ele ainda é recebido na Anna Ivánovna onde acontecem bailes todas as noites. Andrajoso, mas com um rosto digno, numa das noites de baile encanta toda a gente com uma melancólica música. Algo estranho acontecera a todos os presentes depois da encantatória música. Um jovem, Deléssov, decide tomar a seu cargo Albert e tentar que o seu talento lhe permita dedicar-se a sério à música, tocar para o público e abandonar o álcool. E instala Albert em sua casa. Mais uma vez deixo as peripécias da pretendida regeneração para uma leitura vossa.

Em conjunto, este é um excelente livro que entra no âmago das contradições do ser humano.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

O ESCRITOR QUE VIU DEUS




O Escritor que viu Deus


De Dino Buzzati, o autor de “O Deserto dos Tártaros”, foi publicada mais uma colectânea de contos, “A Derrocada da Baliverna” (Cavalo de Ferro). Esta, como as anteriores, é constituída por um conjunto notável de histórias, algumas a situarem-se no que de melhor tem sido produzido na literatura europeia contemporânea. Entres elas, “O cão que viu Deus”. Parábola que coloca, de modo magistral, a problemática da consciência face ao pecado e ao sentimento de culpa decorrente do não cumprimento da lei moral.
Mas… se prevaricarmos, quem o poderá saber? Deus? Mas se Deus está tão distante dos homens, tão oculto... Cumprirmos os seus mandamentos não será expormo-nos ao ridículo dos nossos concidadãos, tão absorvidos pelas realidades do seu dia-a-dia?
Mas Deus não se servirá de outras formas para nos vigiar? Porque não o olhar de um cão, um cão que foi do eremita que viveu e morreu na montanha, a quem Deus teria aparecido? E se apareceu ao eremita não teria também aparecido ao seu cão? O seu olhar atento e bondoso não seria a forma de que Deus se serviu para vigiar aquela comunidade e, assim, acordar a sua consciência adormecida?
Se admitirmos que alguém viu Deus e dele tenha recebido uma missão, esse alguém foi, sem dúvida, Buzzati, a quem Deus teria confiado o poder de nos fazer amar a literatura e, através dela, o bem e o mal que vive no coração do homem.

sábado, 11 de outubro de 2008

VENENOS DE DEUS REMÉDIOS DO DIABO


“VENENOS DE DEUS, REMÉDIOS DO DIABO”


Um livro que nos enche a alma como quase toda a prosa e poesia do Mia. As personagens são muito bem desenhadas, cheias de contradições, de humanidade, de sonhos naufragados e memórias dolorosas.

Bartolomeu Sozinho que está a morrer e quer deixar de sonhar. A esposa Mundinha que vai chorar para o rio porque não se deve chorar em casa. O português doutor Sidonho à procura do amor. Suacelência, o Administrador balofo e cheio de si próprio, político igual aos políticos do mundo inteiro.

Tudo servido por uma invenção verbal notável e que é a marca do Mia que, por vezes parece quase exagera nos aforismos africanizantes. Mas isso faz parte do seu processo de escrita, da sua pontuação, e, embora esteja no limite, não chega para ensombrar o correr rápido, seguro e encantador da narrativa.

Nesse decorrer da história vamos acompanhando o jogo de aproximação/rejeição entre um português e o mundo moçambicano e constatação no final de não ter penetrado aquela realidade profunda para além de uma falsa superfície.

A história também nos fala da forma como a memória colonial perdura e de como, por exemplo, uma bandeira da Companhia Colonial de Navegação se torna na Bandeira do Sporting.

Aliás, toda a história é um carrossel de mentiras e aparências, sombras e sonhos que se enredam num caleidoscópio que se torna vertiginoso no final, revelando realidade sob realidade até que o leitor não saiba bem qual é a verdadeira verdade da história que leu.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

A FOTOGRAFIA, ESSE GRANDE MISTÉRIO

Foto Robert Doisneau


"A fotografia é um grande mistério. Tu fazes uma foto e automaticamente essa foto pertence ao passado. E isso é algo de espantoso." Isto diz-nos Carlos Saura, o cineasta espanhol, em entrevista concedida a "El País". E acrescenta: "A fotografia mudou o ser humano, porque obrigou-o, de algum modo, a ver-se a si mesmo, a ver os lugares, as cidades, as pessoas. É uma informação que o homem nunca tinha tido até aparecer a fotografia."
Vindas de quem vêm, de um homem que fez da imagem a razão de ser da sua vida (e da sua arte), estas afirmações têm um valor acrescido, nomeadamente pela autenticidade de que se revestem. Na verdade, a fotografia constitui um novo instrumento para o ser humano construir (e reconstruir) as suas narrativas. Quando desfolhamos os nossos álbuns, estamos a reinventar o nosso passado, o que fizemos e o que sentimos, o que pensamos, o que podíamos ter sido e não fomos. Desejo e morte. Nós e os outros. O passado reinventado nos lugares, nos gestos, nas posturas. No sorriso, nas vestes, no olhar. O passado-presente em revivescência. Ternura e mal-estar, devaneio.
Mas as fotografias não concitam apenas as nossas narrativas pessoais, elas são, também, um poderoso afrodisíaco literário, que tem levado ao aparecimento de grandes narrativas na literatura do século XX. Para muitos escritores, transformaram-se, mesmo, em estimulante imprescindível ao seu processo de criação.
A fotografia é um mistério? Sim, sem dúvida, um mistério, um grande mistério, Carlos Saura!


Albano Estrela

sábado, 4 de outubro de 2008

“A NEBLINA DO PASSADO” de LEONARDO PADURA



De vez em quando faço uma estadia nos policiais como quem vai a águas. Li há dias um da francesa Fred Vargas. Não fiquei profundamente entusiasmado. Seguiu-se um Maigret (A Taberna de Dois Vinténs) para repôr os índices de confiança no género.

Aproveito para falar de um dos meus preferidos: o cubano Leonardo Padura.

Estão vários livros dele publicados em Portugal. Tenho-o seguido com prazer. A sua escrita anda dentro da matriz em que se enquadram o Pepe Carvalho de Montalban e o Montalbano de Camilleri, entre outros. Há dois que me tocaram particularmente, "Morte em Havana" e "Adeus, Hemingway". Hoje falo de "A neblina do Passado".

É uma espécie de bolero melancólico, apaixonado, decadente. A escrita de Padura é assim. Envolve-nos. Parece que nos ignora e de repente percebemos que estamos presos na malha do escritor, que nos identificamos com o seu personagem, Mário Conde e as suas intuições, a sua dignidade e os seus lamentos. E parece que somos amigos e dávamos tudo para estar ao lado daqueles amigos excessivos e trágicos de Mário Conde, ex-polícia, homem de princípios inabaláveis que põe a amizade e a ética acima de tudo o mais.

Nos seus livros, Padura critica claramente o regime cubano pela sua decadência, pela miséria e pela corrupção. Mas ercebemos que é um homem que não quer voltar atrás embora tenha muito pouca fé no futuro.

A narrativa é musical, saudosista, mergulha no passado para nos falar de uma Cuba onde a história deixou muita gente nas pregas dos seus desejos e onde as memórias ainda podem ser escaldantes e perigosas.

Padura continua a sua magnífica personagem, Mário Conde, que bebe demais, faz grandes jantaradas com os amigos quando tem dinheiro, que é de uma incorruptível fidelidade aos seus princípios e à sua amante, Tâmara, que adora livros, sonha ser escritor, encontra-se em sonhos com Sallinger, o seu escritor preferido, e que se apaixona por uma voz que vem do passado num único disco de vinil.

É como se o autor se dirigisse a nós, leitores, e nos arrastasse para a pista de dança quando a pesada noite tropical nos envolve e as palavras nos convidam para o veneno de um bolero. Que mais se pode querer?


sexta-feira, 3 de outubro de 2008


"Sou um poeta e me inclino a pensar por meio de imagens, de fábulas, de metáforas e não por meio de raciocínios" Jorge Luís Borges

Ilustração no feminino


Nos dias 2, 3 e 4 de Outubro está a decorrer um 1º Encontro Nacional de Ilustração no Feminino em São João da Madeira.  As comunicações deste primeiro dia foram excelentes. O debate decorreu com a informalidade necessária para que as pessoas exponham ideias e dúvidas. 
Muito se falou da relação dos leitores com os autores.
Abertura fez-se com Silvia Ricole que argumentou a importância da ilustração no livro para crianças. Pois serve de moderação com o livro, amplia a narrativa que é importante na relação da criança com o livro. 
Uma primeira comunicação de Danuta Wojciechowska que acrescentou a questão do encontro entre adultos e crianças na leitura onde a ilustração ajuda essa relação. Apresentou um pouco o trabalho do ilustrador que se apaixona e mergulha nas histórias.

Margarida Fonseca Santos (autora) e Carla Nazareth (ilustradora) apresentaram as suas ideias através de um diálogo feito antecipadamente por e-mails. Falaram na importância de ler para além das palavras e que um autor será mais rico quanto maior for os olhares pelas suas obras e a ilustração é uma interpretação. "Se no final do livro sentirem necessidade de completar o que fizemos (autor e ilustrador), então atingimos o nosso objectivo" 
blogue da Carla Nazareth  http://esbocilhos.blogspot.com/

Tivemos ainda Mafalda Milhões e Matilde. Mãe e filha numa conversa muito criativa e elucidativa sobre o que é ler. "As pessoas desde que têm orelhas já lêem" e lembrou que "A primeira casa de um leitor é na barriga da mãe". 


Joana Quental, minha ex-professora da Universidade de Aveiro, falou-nos sobre o seu processo de criação, num texto magnifico que vou ter acesso e posso-vos partilhar. Joana Quental já ilustrou capas de livros de Rubem Fonseca e do nosso querido amigo Fanha, do Campo das Letras.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008


As Edições Nelson de Matos já nos tinham oferecido um inédito de José Cardoso Pires: Lavagante. Presenteia-nos agora com “Histórias de Amor”, o segundo livro de Cardoso Pires publicado em 1952. Este livro foi rapidamente censurado, proibido, e retirado do mercado. É assim como se de um original se tratasse. Uma primeira palavra de apreço para a cuidada edição. Encontramos a capa original, as passagens censuradas sublinhadas a cinzento, a carta de Cardoso Pires ao Director dos Serviços de Censura, após a retirada do mercado, e algumas críticas da época, entre as quais a de Mário Dionísio.

Quanto aos contos aqui incluídos, é indispensável salientar o quase contínuo ambiente de beleza que neles se desenvolvem. Nota-se no entanto, a influência de escritores americanos como Erskine Caldwell ou Ernest Hemingway. O exemplo mais flagrante é o conto “Pequenos Vampiros” em que apesar da acção se situar em Chelas temos a sensação de estar a lidar com gangsters americanos e com uma atmosfera americana. Para além de quatro contos, encontramos uma novela que é uma verdadeira pérola: “Dom Quixote, as velhas viúvas e a rapariga dos fósforos”. Aqui encontramos ambientes e realidades bem Portuguesas num desenvolvimento narrativo belíssimo. As velhas viúvas com salários de miséria, os quartos esconsos onde as vidas se escoam, uma rapariga que hesita entre o pudor e uma forma singela de prostituição e um narrador que se vai desapaixonando. Todas as incidências da novela, desde a chegada de uma ambulância e o alvoroço e que causa aos vizinhos e os ditos destes, os homens que de carro procuram raparigas, o velório de viúvas, têm um ambiente profundamente português. O livro vale, e muito, por esta belíssima novela.