terça-feira, 28 de outubro de 2008

ARSÈNE LUPIN OU DAS BOAS E DAS MÁS RAZÕES EM LITERATURA

Maurice Leblanc



Arsène Lupin é um dos grandes heróis da literatura do século XX. Da literatura francesa, da literatura mundial. Mas, coisa curiosa, a celebridade do autor das obras que
têm o Arsène Lupin como figura central – Maurice Leblanc – não acompanha, nem de longe, a fama da personagem. Na realidade, Maurice Leblanc continua a ser um desconhecido para o grande público. Isso, e algo mais, acaba de me ser recordado num número já antigo da revista Lire, que acabo de reler. De entre os artigos inscritos nessa revista, avulta a entrevista feita a Jacques Derouard, biógrafo do autor e coeditor de Arsène Lupin. Nela, Derouard chama a atenção para um aspecto da personalidade de Leblanc, que tem algo de dramático: ele amava e odiava Arsène Lupin. Esta ambivalência de sentimentos acompanhou-o durante toda a vida e atingiu, nos últimos anos, uma acuidade doentia. Eu explico-me.
Leblanc é de origem normanda, como Flaubert e Maupassant, autores de quem recebeu uma forte influência. Foi sob a sua influência que escreveu os primeiros romances. Se as temáticas abordadas têm a ver com autores ingleses de finais do século XIX, a forma e a trama sentimental muito devem aos franceses da sua devoção. Mas, contrariamente ao que seria de esperar, as suas obras, embora reconhecidas pela crítica, não tiveram êxito perante o público. O que não aconteceu com as histórias do Arsène Lupin, o ladrão cavalheiro, “dandy” que pratica o roubo como quem realiza uma obra de arte. Histórias publicadas inicialmente na revista “Je sais tout” e, de seguida, saídas em livro. O êxito, em França e no mundo, é fulminante, o que o transforma num dos escritores mais populares de língua francesa. Essa popularidade agrada-lhe (até pelos proventos que arrecada) e incomoda-o: a sua aspiração de ser considerado um autor clássico, que busca assento na Academia Francesa, vai sendo algo de cada vez menos viável. Mata Arsène Lupin por diversas vezes, é certo, mas os seus editores exigem sempre que o ressuscite na história seguinte... E a neurastenia (essa terrível doença dos intelectuais do século XIX, da primeira metade do século XX) vai-o dominando: criou uma personagem que lhe configurou uma “identidade social”, com a qual não se identifica. Personagem de que não consegue libertar-se. Por via dela, será sempre um escritor “popular”, que nunca poderá sentar-se ao lado dos “grandes” escritores franceses que ocupam as cadeiras do Olimpo das Letras – as cadeiras numeradas da Academia dos Imortais Sentados. Hoje, ao lerem-se as suas diversas obras, não se pode deixar de dar razão à escolha que o público fez: as obras em que são narradas as aventuras de Arsène Lupin são, sem dúvida, as suas melhores obras. Mais, ainda: são do melhor que a literatura francesa produziu no século XX.
O que não impediu que a vida de Leblanc, nos últimos anos (morreu em plena Grande Guerra Mundial, em 1941), não virasse tragédia. Leblanc acabou por “ceder” à personagem que criou, que o foi “possuindo” gradualmente: num livro de honra de um restaurante, assinou Arsène Lupin...; na sua casa de Etretat, Arsène Lupin “entrava-lhe” pela porta dentro, a qualquer hora, o que o incomodava altamente, principalmente quando estava sentado à sua mesa de trabalho, a escrever – o que o levou a fazer uma participação ao chefe da policia local...
Para mim, o que é mais impressionante é este desencontro entre a imagem que o
autor tem de si e a que o público dele faz. O que, no caso presente, nos leva a concluir que Maurice Leblanc ficou célebre pelas razões que ele considerava não serem as melhores... Enfim, coisas da escrita e dos escritores...




Uma das versões de Arséne Lupin

2 comentários:

Madalena S. disse...

Este seu artigo levou-me a pensar em Bram Stoker e no "seu" Drácula. Todos conhecem o último mas poucos sabem que o primeiro o criou.
E mesmo a grande maioria desses poucos, estou convencida, ficou a saber do facto depois de Francis F. Coppola ter realizado o filme que intitulou Drácula de Bram Stoker, talvez numa justa homenagem ao desconhecido autor ou na tentativa de se distanciar das dezenas de versões aparecidas em filmes de série B, ou C ou por aí fora.
Também Mary Shelley, em meu entender, ficou na sombra de Frankenstein.
E certamente haverá outros que de momento não recordo.
Julgo que a sua observação acerca do desencontro entre a imagem que o autor tem de si e a que o público faz dele, tem actualmente grande pertinência quando aplicada aos actores e ao público do cinema ou da televisão. A distinção entre o que é um actor transfigurado numa personagem e o actor-pessoa real nem sempre é fácil para o público que, conforme tem sido sobejamente testemunhado, em muitas ocasiões é capaz de insultar em plena rua um actor que desempenha papel de vilão, dar conselhos a actrizes que assumem heroínas com problemas, etc., etc.
É a contaminação da arte pela realidade, ou vice versa?
Muito interessante a questão e o seu artigo.

JOSÉ FANHA disse...

Este é um fenómeno curiosíssimo que também acontece nas artes.

O Ceramista que quer ser escultor, o escultor que quer ser arquitecto, o arquitecto que quer ser pintor...

Há uma hierarquia de prestígio que leva o autor a desejar êxito na porta ao lado.

Lembra a "Ode ao gato de Neruda:

"...
O homem quer ser peixe e pássaro,
a serpente gostaria de ter asas,
o cão é um leão confuso,
o engenheiro quer ser poeta,
a mosca estuda para andorinha,
o poeta trata de imitar a mosca,
mas o gato
quer ser somente gato..."

Beijos e abraços,

JFanha