quarta-feira, 22 de outubro de 2008

DAS BOAS E DAS MÁS RAZÕES DO SUCESSO DE UM LIVRO




Norman Rockwell


Em tempos, não era difícil conhecer as razões do êxito de uma obra literária. A obra impunha-se pelo seu valor, pela temática abordada, pelo nome do autor, pela crítica literária que lhe era feita. Talvez houvesse outras razões, mas estas eram, sem dúvida, as mais plausíveis.
Actualmente, a crítica literária desapareceu e a indústria do livro tomou conta deste sector do mercado, passando a tratar a obra literária como uma mera mercadoria. Enfim, uma mercadoria mais, igual a tantas outras.
Esta situação levou a uma "produção" planificada do livro, em que o "marketing" desempenha um papel central – nada é deixado ao acaso, nada… excepto o valor literário da obra! Parafraseando um dito célebre, que tem sido atribuído tanto a Clemenceau como a Churchill ("a guerra é uma coisa demasiado séria para ser deixada aos militares"), direi que, actualmente, a literatura é negócio demasiado arriscado para ser entregue aos autores literários...
Assim, a primeira grande opção é a da escolha do autor – figura pública, de preferência "pivot" da televisão ou membro do "jet-set". Ou, talvez, alguém que se tenha evidenciado por algum escândalo de fortes repercussões sociais. Também são bastante apreciados temas escabrosos ou referentes a futilidades em voga. E porque não se há-de pôr na capa que o livro foi escrito por uma jovem de dezasseis anos, que, de um só jacto, produziu tal obra-prima? A linguagem "pimba", as situações ridículas, as revelações místicas constituem sempre ingredientes de "alta voltagem" para os profissionais desta indústria. Por outro lado, cartazes e outros anúncios publicitários têm, de cada vez mais, um peso acrescido nas campanhas de promoção dos livros. A indicação do número de edições e das dezenas de milhar de obras já vendidas – quem os controla? – são garantia, mais que evidente, do valor da obra.
De um modo geral, este é o panorama do que se passa em Portugal. Noutros países, nomeadamente nos de língua anglo-saxónica, as coisas ainda são mais refinadas, o que não é para admirar, dadas as características dos seus sistemas de produção e consumo. Estas considerações decorrem da leitura de um artigo publicado no Le Monde, em que se fala de dois escândalos que abalaram o mundo das letras norte-americanas. Escândalos diferentes nas suas tramas, mas idênticos na sua natureza. O artigo, que tem por título "J. T. Leroy, falsa criança das ruas e escritor fictício", transcreve, por sua vez, um outro artigo do New York Times, no qual se revela que J. T. Leroy não é o autor da obra que lhe deu fama e que a descrição da sua "infância trágica" (cerne da obra em causa) é uma pura fantasia de autor.
Aparentemente, todos se sentem burlados, inclusivamente o seu agente literário, que não quer continuar a representar tal criatura. Outro autor de grande sucesso nos EUA é James Frey, também acusado de "prática fraudulenta", por ter ficcionado a sua própria vida, em obra apresentada como sendo estritamente autobiográfica. E estes escândalos parecem estar a pôr em causa as vendas das obras destes autores. Mas porquê? Então não se sabe, desde que há escrita ficcional, que o autor é um efabulador? Mesmo (ou principalmente) quando se reclama de herói da sua própria história? Trata-se, em última instância, de um artifício literário de provas dadas e de êxito assegurado, ao longo dos tempos. Aparentemente, não se compreende, pois, a razão de tanto escândalo. Aparentemente, pois, na verdade, a explicação é simples: o que a publicidade fez vender não foi a obra literária, mas o seu autor (ou pretenso autor). A desgraça (ou a graça) de um cavalheiro que teve a "coragem" de pôr a nu a "tragédia" da sua vida, da sua infância "desvalida". Tão simples quanto isso. Enfim, sinal dos tempos, em que o produto não é vendido pelo que vale, mas pela "roupagem" em que é envolvido. Em Portugal, ainda não chegámos a estes "extremos", mas já não andamos longe...
O que foi dito põe-me uma questão, enquanto educador que sou: como criar nos jovens o espírito crítico necessário à escolha de uma obra literária de valor? Como desenvolver neles o gosto pela literatura? Quais as estratégias a seguir, as ferramentas a utilizar? Na verdade, não basta denunciar, é preciso construir, participar na construção de um ser humano que pense por si, que saiba distinguir entre o verdadeiro e o falso, entre o que é bom e o que não o é. Que assuma valores e os pratique. Que não seja um ser passivo perante a onda avassaladora de informação, de desinformação, com que os "media" nos submergem, nos aliciam diariamente.
Enfim, este é assunto demasiadamente sério (e complexo) para ser tratado de modo sucinto. Por isso, urge voltar a ele, debatê-lo, aprofundá-lo.

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