domingo, 28 de junho de 2009

MENINA OLÍMPIA E SUA CRIADA BELARMINA





Menina Olímpia e a sua criada Belarmina é um conto de José Régio, publicado nos anos quarenta e inserido em livro seu intitulado "Contos". É uma história portuense, que descreve as andanças da Menina Olímpia pelas ruas da cidade, seguida de perto pela criada Belarmina. Figuras características do Porto em finais dos anos trinta, inícios dos quarenta, que eu ainda conheci, na minha meninice. A Menina Olímpia vestia espalhafatosamente, roupagens de outras épocas, eivadas de rendas, de folhinhos, de tafetás, de peles que teriam pertencido a alguma raposa. Verão e Inverno, quase as mesmas indumentárias, usadíssimas, quase esfarrapadas, de cores que tinham sido berrantes. Uma demonstração pública do seu desequilibro mental e da sua decadência social - o "espantalho" dos garotos que a seguiam a distância. A criada, essa, quase mendiga.
E a propósito dessas figuras, Régio faz-nos percorrer ruas, largos e praças do burgo comercial (e residencial), faz-nos, inclusivamente, entrar numa "ilha" portuense - pessoas, hábitos e falas. Para mim, portuense que sou, o conto tem em encanto especial, pela revivescência de uma época, por esse encontro com um passado longínquo. Mas, para além desse encanto, também me causou um certo mal-estar: o texto é extremamente datado. Esse texto e os restantes que constituem o livrinho, em que se insere. Esteticamente, pertencem a outra época, mais perto de Camilo Castelo Branco (escritor maior da cidade do Porto), do que das literaturas do nosso tempo. E esta constatação fez-me reler parte da poesia de José Régio e alguns dos seus ensaios, como o "António Boto e o Amor". E surpreendi-me por não encontrar, neles, a mesma "patine" do tempo. Será porque o Régio é um contista menor, se comparamos os seus contos com a sua obra poética, ensaística ou dramatúrgica? Não creio que esta seja a explicação, mas, sim, uma outra: se todos os géneros literários evoluiram rapidamente nos últimos sessenta, setenta anos, aquele cuja evolução é mais acentuada é, sem dúvida, o da narrativa ficcional. E por uma razão que se me afigura clara: é o género que melhor expressa o nosso viver quotidiano, feito de comportamentos, de atitudes, de valores. É, pois, o género que nos dá a dimensão da nossa actualidade. Se assim é, não será a "velhice" do texto literário que está em causa, mas, sim, a nossa falta de capacidade para sairmos da "modernidade" em que nos situamos, ou seja, a nossa incapacidade de aderirmos a algo que já não é do nosso tempo. E isso é mais notório na narrativa ficcional, romanesca, do que no texto poético, pela proximidade da primeira com a "narração" que nós, constantemente, elaboramos (pelo menos, para nós próprios) da nossa vida quotidiana.

De um modo ou de outro, o melhor será, cada um de nós, concluir por si próprio da justeza das questões que formulo, lendo o livro de José Régio, que se encontra disponível em edição das Publicações Europa-América.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Diário de Um Velho Louco



Junichiro Tanizaki fala-nos disso mesmo. Um velho em decadência física muito perto da morte que se apaixona pela sua nora. Por parte de toda a família existe sempre um julgamento moral das atitudes do velho ou da nora. Censurado mas com a autoridade de quem é velho, ele segue o seu desejo até onde pode. Fala-nos da ideia de belo ligado à crueldade, à maledicência. Por outro lado a descrição da degradação física do velho é qualquer coisa de triste mas belo. Junichiro Tanizaki não nos dá tréguas neste livro.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

O MUNDO FABULOSO DE CRISTINA FERNÁNDEZ CUBAS




As edições Tusquets, de Barcelona, publicaram recentemente uma obra de Cristina Fernández Cubas, “Todos los cuentos”. É uma obra notável, que agrupa cinco livros da autora, com um total de vinte contos. Cinco livros, um panorama do universo contístico de Cristina Fernández Cubas, em que a sociedade espanhola contemporânea é caracterizada sob múltiplos aspectos, nomeadamente através de figuras femininas que são o eixo central de quase todos os seus contos. Personagens femininas magistralmente enquadradas na estrutura da história, a sobreporem-se às masculinas, reduzidas a uma função contrapontística, a valorizarem o apuro emocional, sentimental, das mulheres. E, o que é curioso (e talvez sintomático), as figuras masculinas mais conseguidas têm um toque de feminilidade, que, embora as não efeminize, as aproximam do que é essencial ao universo feminino. E surge a eterna questão: só os escritores de um determinado sexo é que “sabem” escrever sobre personagens do seu sexo? A questão posta nestes termos parece ter uma resposta óbvia, mas, na verdade, não é assim, tantos são os casos em que esta suposição não se confirma.
Os contos de Cristina Fernández Cubas, construídos à volta de figuras femininas, têm, quase sempre, uma forte dimensão social, pois, através deles, temos acesso a múltiplos “cenários do quotidiano, perfeitamente reconhecíveis, nos quais” – diz a autora – “no momento mais imprevisto, aparece um elemento perturbador”. Elemento que confere uma intensidade narrática, em que o insólito, o oculto, o obsessional, passam a desempenhar um papel primordial no desenrolar da acção.
Se a maior parte dos contos tem como cenário o jogo de emoções, de sentires, de fazeres, de personagens integradas na sociedade espanhola, alguns há que se centram à volta de personagens femininas a viver, episodicamente, em meios, em países distintos. Quando assim acontece, a acutilância, a finura de caracterização psicológica dessas personagens ainda se torna mais evidente.
As limitações de um blogue não me permitem uma análise minuciosa dos 20 contos, que ocupam 500 páginas, por isso, limitar-me-ei a citar dois deles, “Ausencia” e “El moscardón”. No primeiro, relata-se a vida de uma freira, que, ainda menina, entrou num convento e dele não mais saiu. Descrição espantosa, a denotar um grande conhecimento da vida conventual e uma sensibilidade apuradíssima das relações que um universo concentracionário engendra. No outro, “El moscardón”, mergulhamos no ambiente sufocante da casa de uma velha senhora, que teima em viver sozinha e vai sofrendo um processo de deterioração psicológica, em perda crescente da função do real. Um conto que é um requiem por todos nós, os que caminhamos para um fim, que tem tanto de próximo como de evidente.
Releio o que acabo de escrever e surge-me uma dúvida: ficará o leitor com a ideia de que os contos de Cristina Fernández Cubas constituem outras tantas tragédias? Não, de modo algum: são textos plenos de vida, em que o humor e a simpatia por tudo o que ao humano respeita têm um lugar central. Contos vertidos numa linguagem de grande precisão e rigor, que nos fazem sentir mais lúcidos, mais dignos.
E, uma vez mais, faço um apelo aos nossos editores: publiquem, difundam, obras tão admiráveis quanto esta.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Por Quem os Sinos Dobram


Para que serve ler um livro? Para que serve ler um livro se podemos conhecer a sua história através do filme, por exemplo? Para que serve ler um livro se podemos situar o livro na nossa biblioteca interior e conseguirmos falar dele?
Não me interessa falar do livro que li, interessa-me antes ter o privilégio de passar pela experiência do o ler, porque o livro é mais do que a história contada. É uma experiência virtual. Para isso é necessário sentir o pulsar do livro, compreender a poética do livro, saborear as palavras, os momentos, como quem saboreia uma excelente refeição.
Foi o que me aconteceu com este livro de Ernest Hemingway. Tive a sensação de comer algumas palavra. Por vezes não sabia se estava a ler um poema, ou um romance. Acho que essa é a principal razão de ler: Quando estamos a ler um livro assim, estamos a ter uma vivência única, não só estética, não só literária, mas também amorosa. Amamos as personagens e ouvimos tudo o que nos dizem, o que pensam, como agem. Se não for assim, não vale a pena ler. É sentir o pulsar do livro, a sua respiração.
É fácil, compreensível e simples a história do livro, acessível, acho eu. Os dilemas são complexos. Muito complexos, fazem-nos pensar, fazem-nos pensar em muitas coisas. Depois existe esta capacidade narrativa e poética do autor que nos faz estremecer a todos os momentos e até chorar.
Sei que qualquer leitor experiente já leu este livro. Aos outros, como eu que são leitores amadores, recomendo vivamente a leitura. Recomendo viajar por este livro.

sábado, 6 de junho de 2009

QUANTOS LIVROS JÁ LEU?



Umberto eco e Pierre Bayard (autor de "Como falar dos livros que não li?") encontraram-se num debate público em Nova York. O Magazine Littéraire de Junho publica um resumo da conversa entre os dois. Uma delícia.

A certa altura, Umberto Eco conta que, tendo cerca de 50.000 livros, 30.000 dos quais no seu apartamento em Milão, que de vez enquanto recebe a visita de algum imbecil que lhe pergunta: "Quantos livros já leu? Todos os que aqui tem?". Para esta pergunta tem três respostas possíveis:

1. "Já li muitos mais, caro senhor, muitos mais."

2. "Nenhum. Porque é que julgo que eu os guardo?"

3. "Nenhum. Os que lá li enviei-os para a Biblioteca Municipal. Estes são para ler para a semana."

Pierre Bayard acrescenta uma quarta hipótese de resposta:

4. "Não os li mas vivo com eles."

A conversa integral está em :

http://fora.tv/2007/11/17/Bayard_and_Eco_How_to_Talk_About_Books_You_Havent_Read



(Umkberto Eco)




quinta-feira, 4 de junho de 2009

BANALIDADE, COINCIDÊNCIA E ALUCINAÇÃO NA ESCRITA DE BERNARDO CARVALHO



Bernardo Carvalho é um dos escritores brasileiros mais badalados (e premiados) dos últimos anos. O que dele tinha lido, no entanto, não me havia entusiasmado. Por isso, hesitei em comprar o seu livro de contos, "Aberração", editado pela Cotovia. Mas não me arrependi. É uma obra notável, pela diversidade das histórias, pela linguagem em que são escritas - linguagem despida de ornatos, directa, com uma fluência e leveza que só a dimensão coloquial da fala pode conferir ao texto. Histórias diversas, ligadas - subterraneamente - por duas características: a coincidência e a alucinação. Coincidência de encontros, de descobertas, que tornam claro o que era nebuloso - ou nem sequer existia. Histórias centradas em situações do quotidiano, que têm tanto de óbvio, como de alienatório. E com uma técnica de construção que não é vulgar na ficção literária, pois costuma ser específica da obra cinematográfica: a acção não se desenvolve linearmente, mas decorre de diferentes situações, em que evoluem personagens diferentes, aparentemente sem relação entre si, mas que vão convergindo para uma mesma acção, cujo significado só se torna evidente no desfecho final.Em suma, uma prosa limpa, desocultadora do que se esconde nos actos mais simples da nossa vida - da nossa vida sem história - e que só adquirem sentido ao serem recriados pela mão de um escritor que não teme a inovação.

terça-feira, 2 de junho de 2009

A ESCRITA OU A VIDA


Morei neste livro durante 20 dias. Li-o, reli-o. Andei para a trás e para a frente. Sublinhei. Parei. Reflecti. Escrevi à margem.

Levei anos a ganhar coragem para o ler. Sabia que tratava da terrível experiência de dois anos de Semprún no campo de concentração nazi de Buchenwald. Adiei várias vezes confrontar-me com o relato dessa dor absoluta.

Até que chegou o dia. E logo à primeira página fui agarrado pela escrita brilhante, pela narração por vezes insuportável das memórias de Buchenwald, pela brilhante capacidade do autor de inter-relacionar uma diversidade de tempos

O autor começa por se interrogar como poderá explicar em palavras o cheiro a carne humana que saía das chaminés dos crematórios e que pairava permanentemente sobre os internados em Buchewald.

Assim, o livro não é exactamente sobre a experiência de Buchenwald mas sim sobre a escrita e a dificuldade de encontrar palavras que possam descrever um tamanho mergulho no inferno. Que palavras podem explicar a vivência do mal absoluto.

Mas o livro vai ainda além disto. Fala-nos sobre a morte e a capacidade que a escrita tem para a afastar e exorcizar ou, pelo contrário, mantê-la agarrada à pele do escritor.

Fala-nos ainda do tempo. O tempo da juventude e o tempo da maturidade. E ainda do reencontro com a juventude. Foi-me particularmente fantástica a leitura do episódio em que Semprún regressa a Buchewald com os netos e fica como que paralisado pelo regresso ao espaço onde foi jovem e onde alguma esperança, algum futuro era possível

Semprún mistura narrativas simples, reflexões pessoais, angústias, memórias, encontros com o fascínio da poesia de Celan ou de René Char, com a figura e a escrita de primo Levi, ou ainda com os conceitos de Wittgenstein sobre o mal e a liberdade.

Acima de tudo, Semprún domina com particularmente brilhantismo o uso do tempo narrativo. Pára a narrativa num momento para andar para trás ou para a frente, intercepta tempos, memórias, recordações e cria um puzzle que permite também ser usado pelo próprio leitor como matriz do olhar sobre a sua própria vida.

Creio que a literatura atinge o seu grau mais fundo quando nos atinge no centro das nossas inquietações e nos obriga interrogarmo-nos e a revermo-nos nesse fantástico e terrível jogo de espelhos que são as palavras levadas para além de todas as circunstâncias.