terça-feira, 2 de junho de 2009

A ESCRITA OU A VIDA


Morei neste livro durante 20 dias. Li-o, reli-o. Andei para a trás e para a frente. Sublinhei. Parei. Reflecti. Escrevi à margem.

Levei anos a ganhar coragem para o ler. Sabia que tratava da terrível experiência de dois anos de Semprún no campo de concentração nazi de Buchenwald. Adiei várias vezes confrontar-me com o relato dessa dor absoluta.

Até que chegou o dia. E logo à primeira página fui agarrado pela escrita brilhante, pela narração por vezes insuportável das memórias de Buchenwald, pela brilhante capacidade do autor de inter-relacionar uma diversidade de tempos

O autor começa por se interrogar como poderá explicar em palavras o cheiro a carne humana que saía das chaminés dos crematórios e que pairava permanentemente sobre os internados em Buchewald.

Assim, o livro não é exactamente sobre a experiência de Buchenwald mas sim sobre a escrita e a dificuldade de encontrar palavras que possam descrever um tamanho mergulho no inferno. Que palavras podem explicar a vivência do mal absoluto.

Mas o livro vai ainda além disto. Fala-nos sobre a morte e a capacidade que a escrita tem para a afastar e exorcizar ou, pelo contrário, mantê-la agarrada à pele do escritor.

Fala-nos ainda do tempo. O tempo da juventude e o tempo da maturidade. E ainda do reencontro com a juventude. Foi-me particularmente fantástica a leitura do episódio em que Semprún regressa a Buchewald com os netos e fica como que paralisado pelo regresso ao espaço onde foi jovem e onde alguma esperança, algum futuro era possível

Semprún mistura narrativas simples, reflexões pessoais, angústias, memórias, encontros com o fascínio da poesia de Celan ou de René Char, com a figura e a escrita de primo Levi, ou ainda com os conceitos de Wittgenstein sobre o mal e a liberdade.

Acima de tudo, Semprún domina com particularmente brilhantismo o uso do tempo narrativo. Pára a narrativa num momento para andar para trás ou para a frente, intercepta tempos, memórias, recordações e cria um puzzle que permite também ser usado pelo próprio leitor como matriz do olhar sobre a sua própria vida.

Creio que a literatura atinge o seu grau mais fundo quando nos atinge no centro das nossas inquietações e nos obriga interrogarmo-nos e a revermo-nos nesse fantástico e terrível jogo de espelhos que são as palavras levadas para além de todas as circunstâncias.

1 comentário:

Leonor disse...

Excelente, a expressão "morei neste livro".