domingo, 14 de março de 2010

O PUBLICITÁRIO FERNANDO PESSOA, AUTOR DA "MENSAGEM"




A “Mensagem”, único livro que Fernando Pessoa publicou em vida, é uma obra extremamente curiosa, por várias razões. Uma delas, bastante singular: é uma obra que só poderia ter sido escrita por um publicitário. O que, em última instância, não será de estranhar, visto ser esse um dos interesses profissionais de Fernando Pessoa.
Uma leitura cuidada do texto permite identificar mais de vinte versos que são autênticas mensagens publicitárias, versos que, se retirados do contexto da estrofe em que estão inseridos, funcionam como “slogans” de acutilância comprovada. Comprovada pela sua utilização constante em diferentes contextos, o que confirma a sua funcionalidade enquanto mensagem publicitária.
Assim, logo nas estrofes iniciais, poderá ler-se: “Os deuses vendem quando dão”; “A vida é breve, a obra é vasta.” E, porque não: “O mytho é nada que é tudo”.
Note-se que estes versos-slogan correspondem, geralmente, ao primeiro ou aos primeiros versos da estrofe e visam introduzir um sentido específico, a desenvolver nos versos que se lhe seguem, o que também não anda longe da estrutura do texto publicitário.
Muitos outros exemplos poderão ser dados, alguns sobejamente conhecidos, e que entraram no rol de citações (dos textos e dos discursos) dos que nos governam, que gostam de abrilhantar o seu texto com uma citação de cariz erudito. Como não quero fatigar o leitor com tanta citação e como sei que ele já está sobejamente convencido da justeza da minha “tese”, citarei apenas dois outros versos-exemplo: “O homem e a alma são um só”; “O espaço é grande, o homem é pequeno”. Não posso terminar sem recordar um dos slogans mais apreciados pelos que confiam na grandeza da nossa alma: “Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena”.
Esta característica da “Mensagem” não é específica deste poema. Na realidade, é comum a outros textos de Pessoa. Creio, no entanto, que é naquele que adquire maior ênfase, o que confere ao texto um pendor épico, como convinha à finalidade a que se destinava (um concurso do Secretariado Nacional de Informação).
É evidente que este meu escrito não pretende aminorar o valor desta obra de Pessoa, mas tão só explicar (tentar explicar) uma das razões da sua popularidade.

segunda-feira, 1 de março de 2010

PORTO-CIDADE, PERSONAGEM CENTRAL DE CONTOS QUE TÊM A CIDADE COMO TEMA OU CENÁRIO





Ao longo dos anos, fui descobrindo que há um conjunto de escritores que reinventaram a cidade do Porto, as suas ruas, as suas praças, ao fazerem-nos percorrer um espaço urbano em que algo não pode deixar de acontecer. Escritores que se expressaram tanto pela poesia como pela prosa. Entre os prosadores que têm a cidade como tema ou como cenário das suas narrativas, referir-me-ei apenas aos contistas. Contistas da segunda metade do século XX, primeira década de XXI. Portanto, autores nossos contemporâneos ou quase.
José Régio é um desses autores. Os seus “Contos” (Publicações Europa-América) passam-se, em grande parte, no Porto. De entre eles, destacarei “Menina Olímpia e a sua Criada Belarmina”, exemplo acabado da presença da urbe portuense no desenvolvimento da história e no comportamento das suas personagens. Algo de idêntico ou talvez de um modo mais acentuado encontra-se em textos de Jorge de Sena, insertos nos seus “Grão-Capitães” (Edições Asa), principalmente no conto “Choro de Criança”, um texto que tem tanto de terrível como de belo. De Agostinho da Silva destacarei o conto “Teresinha”, publicado na sua obra “Herta, Teresinha, Joan”, conto atravessado por um lirismo romântico, que, em muito, emana do espaço físico da cidade. Miguel Miranda, um autor que tem a cidade incrustada nos seus genes, tem publicado vários livros de contos sobre a cidade, o primeiro dos quais foi “Contos à Moda do Porto” (Edições Afrontamento). “A Raiz Quadrada de uma Abstracção Incerta” parece-me ser um dos contos mais conseguidos desse livro, pelo que nos diz do ser e do estar de alguma gente e da sua inserção na geografia da cidade. “Dia de Calma”, uma história da obra de Beatriz Pacheco Pereira, “As Fabulosas Histórias Dela, Contos do Porto Imaginário” (Edições Âmbar), é um texto em que se respira o desconforto da materialidade granítica da cidade. Diferente, mas extremamente conseguido, é o texto (texto de estreia, creio) de Óscar de Sá, “Deleituras”, publicado no número 9 de “Ficções. Revista de Contos”. Um estudante com livros a mais e sexo a menos, uma prostituta de sexo fácil e carências afectivas cruzam-se nas ruas das livrarias e dos encontros de amores clandestinos. Da sua relação surge uma história de amor, pontuada pelos espaços urbanos que ela percorre, primeiro à procura dos seus clientes, depois dos livros que entrevê nas montras das livrarias. Um Porto diferente do que é dado, habitualmente, na literatura, mas não menos autêntico.
Uma referência, ainda, a uma característica comum aos textos que cito: eles são textos urbanos, em que se descrevem os mesmos espaços (ou espaços contíguos), que dão sentido às situações que neles se vivem e às personagens que nelas evoluem.
É evidente que outros textos (dos mesmos ou de outros autores) poderiam ter sido escolhidos. Mas também não tenho dúvidas de que os textos que referi exprimem com precisão o que quero demonstrar, ou seja, a existência de um traço comum a determinados “autores do Porto”: que a cidade-urbe vive no seu imaginário de um modo extremamente “físico”, que não se confunde com o imaginário de outros autores que têm outras cidades como tema. Quando penso em contistas do século XX, que têm Lisboa como pano de fundo, mas nítida se me torna a especificidade destes “contos portuenses”. É evidente que Lisboa-cidade foi tema para grandes contistas do século XX – José Rodrigues Migueis e Judite de Carvalho a sobressaírem entre todos eles – mas também é evidente que a apropriação do espaço urbano não tem a “centralidade” que se encontra nos “textos portuenses” que destaquei.

A reflexão contida neste texto, se não tiver outros, talvez tenha, pelo menos, um mérito: fazer-nos lembrar o quanto desconhecemos da literatura portuguesa da actualidade!