sábado, 26 de janeiro de 2013

VIAGEM A TRALALÁ OU A PARTE NENHUMA


Wladimir Kaminer, nascido em 67 é um filho da decadência e queda do chamado bloco socialista, cujo desmembramento analisa com algum brilhantismo e momentos de uma invejável ironia e algum cinismo.

Vivendo a adolescência no seio de uma cultura pop russa, cedo foi viver para a Alemanha onde se tornou em escritor, homem de rádio, animador cultural e humorista de grande sucesso.

A Cavalo de Ferro publicou 2 dos seus mais famosos livros, Militärmusik e Russendisko.

A colecção em que a Tinta da China tem publicado notávens livros de viagens publicou agora um livro ao contrário, quer dizer, um livro de não viagens ou de viagens que não se chegam a fazer; "Viagem a Tralalá" de Wladimir Kaminer.

Trata-se de um livro com momentos verdadeiramente desopilantes a par da sarcástica mas por vezes dolorosa narração de uma juventude russa que perde qualquer
capacidade de estabelecer um caminho de vida e se deixa viver ao sabor do dia-a-dia, navegando no álcool, nos pequenos golpes e empregos como sobrevivência, na busca do seu lugar numa europa que não conhece e a que tem dificuldade em adaptar-se.

Das viagens que o narrador não chega a fazer destaca-se a delirante narrativa de uma cidade falsa construida no sul da Rússia que faz de Paris no Verão e Londres no Inverno e para onde são enviados os operários premiados pelos seus êxitos na produção, convencidos que estão mesmo a visitar Paris e Londres.

O humor é uma das artes mais difíceis e embriagadoras entre todas as vertentes da literatura e do espectáculo.

O humor rebenta como uma bolha de novidades desopilantes mas rapidamente se torna pesado, cansativo, repetitivo.

Porque o humor nasce de uma forma particular de olhar o mundo e a vida ao contrário que surpreende o espexctactador ou o leitor e provoca o riso. Quando o o público começa a conhecer aquele mecanismo particular de fazer humor, passa a habitar a fácil previsão e a possível decepção.

"Viagema a tralalá" tem a dimensão exacta para o bebermos como um licor saboroso sem chegar a sentir-lhe o inevitável sarro se se prolongasse mais do que a conta.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

OS ROSTOS ANTERIORES


A escrita de Transtromer é discreta, súbtil,intensa e deslizante.

Neste livrinho recorda alguns momentos da sua infância. Não tem grandes objectivos. Apenas deixar que as lembranças olhem para ele já velho e o confrontem com calma e amenidade mesmo quando falam de momentos menos alegres.

“Trago em mim os meus rostos anteriores como a árvore tem os anéis da sua idade. O que eu sou é a soma de todos esses rostos. O espelho só vê o meu rosto mais recente, mas eu conheço todos os anteriores.

O trabalho de escritor de Transtromer poderia ou deveria ser o de cada um de nós. O que ele faz é escrever para que alguns lampejos do seu passado lhe iluminem o presente e para que outros, tornados palavras , permitam sarar alguma ferida que possa ainda estar aberta.

Este livrinho não tem uma história mas várias pequenas histórias. Como todos nós as temos.Ensina-nos a olhar para trás através do exercício da escrita ou, como ele diz,faz com que a escrita leve o passado a olhar para si.

Uma da histórias é sobre aquilo que hoje se chama bullying e que dantes apenas se chamava abuso.

Na escola primária um colega maior que ele todos os dias o atirava ao chão. E ele protestava e o colega ontiuava a atirá-lo ao chão. Até que o pequeno Tomas resolveu deixar-se cair mal via o colega. E ele desistiou de o atirar ao chão. Já não tinha graça.

Fiquei parado a sorrir perante esta historinha e estas aprendizagens que também fazem parte do processo de crescimento. É claro que a nossa democracia exige a protecção dos mais fracos. Mas o confronto com os obstáculos e a sua suplantação, pelo uso de estratégias próprias ou pelo apelo às regras do comum convívio é fundamental.

Seria bom, de qualquer maneira, se cada um fizesse como Tomas Transtromer um caderninho de lembranças para arrumar dores, confrontar tempos, dar sentido às rugas.

domingo, 6 de janeiro de 2013

Incidente em Vichy



BAYARD - O senhor julga que podemos ser eternamente nós próprios numa sociedade como esta? Quantos milhões de pessoas andam esfomeadas e umas tantas vivem como reis? Quando todas as raças são escravos para o abastecimento do mercado? Como é que poderemos ser nós próprios num mundo como este? Eu trabalho dez horas por dia para ganhar meia dúzia de francos por dia; vejo por aí alguns que nunca  dobraram as costas, e esses aí são donos do planeta … Como é que o meu espírito há-de estar onde estiver o meu corpo? Só seu eu for um macaco.

VON BERG - Então, onde é que se encontra o seu espírito?

BAYARD - No futuro. No dia em que a classe operária dominar o mundo. Nisso é que eu tenho esperança … Não será agora com a personalidade de outrem.

VON BERG (muito admirado e com a melhor das intenções) - Mas não lhe parece …? Desculpe. A maior parte dos nazistas, não pertencem eles à classe operária?

BAYARD Sim, naturalmente. Com bastante propaganda, é possível confundir toda a gente.

VON BERG - Bem vejo. (Breve pausa) Mas, nesse caso, como é que se pode ter uma tal confiança neles?

BAYARD _ Em que é que p senhor tem confiança? Na aristocracia?

VON BERG - Muito pouca. Mas em alguns aristocratas, sim. E também em determinadas pessoas, gente do povo, simplesmente.

Incidente em Vichy



"Incidente em Vichy" (1965) é considerada por muitos críticos uma obra menor de Arthur Miller (1915-2005), autor genial das peças "Morte de um Caixeiro Viajante" (1949) e "As bruxas de Salem" (1953). Porém, parece-nos difícil concordar com esta avaliação tendo em vista o escopo e a amplitude de questões abordadas neste rico texto. Uma peça onde Miller abandona o ambiente ideológico e político da sociedade americana que ele conhece tão profundamente para reflectir sobre a opressão, agora sob a forma da brutalidade demencial do nazismo.

A circunstância de um grupo de homens ter sido trazida à força para  apresentar provas de suas identidades, da veracidade de seus papeis de identificação, da dimensão de seus narizes e de serem ou não circuncidados, cria uma situação excepcional onde são confrontadas as convicções, as idiossincrasias, os temores e as esperanças de homens de distinta extracção e condição: um pequeno comerciante, um jovem, dois trabalhadores, um dos quais comunista, um cigano, um médico, um aristocrata austríaco, um actor e um velho judeu que não pronuncia qualquer palavra, pois a sua condição de culpado já está estabelecida a priori e a sua sorte já está selada. 

Outro aspecto que me parece extremamente interessante nesta obra é o paralelismo e, em certa medida, o diálogo com o existencialismo, e muito particularmente, com a obra teatral de Jean Paul Sartre (1905-1980). Identifico na peça de Miller respostas corajosas e originais a algumas das questões suscitas por Sartre, em inúmeras de suas obras, "As mãos sujas" (1948), "A engrenagem" (1948), "Os sequestrados de Altona" (1959), entre outras. Questões puramente existenciais, questões de posicionamento do indivíduo no turbilhão dum momento histórico particularmente destrutivo e de grande clivagem ideológica, e sobretudo, questões de consistência entre o discurso e a praxe.  

Mas se para Sartre a exposição teatral tem ainda uma fundamental componente clássica, no sentido arquétipo e analítico, Miller procura uma solução que empreste ao enredo um paradigma moral e um desenlace quinta-essenciamente teatral. O improvável auto-sacrifício de um dos personagens em prol duma causa que não é a sua, representa o reconhecimento de que toda uma classe social, a aristocracia, tinha atingido o limite de sua validade histórica, porém, a afirmação moral engrandece o valor da resistência individual.      

Orfeu B.


sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

à MARGEM



Gosto dos romances de Mankell. Já aqui falei deles várias vezes. Gosto bastante de policiais. Mas há policiais e policiais. E Mankell, que me parece ter sido uma óbvia fonte de inspiração para Stieg Larsson, escreve romances em que, para além do enredo policiário, fala-nos da vida real e das grandes inquietações humanas, sociais e políticas do mundo de hoje.

O seu detective, o inspector Kurt Wallander é um ser humano carregado de angústias, dúvidas, questões que o atormentam. O título do livro não podia ser melhor. "Um Homem inquieto" é o personagem principal, oficial de alta patente da Marinha sueca que desaparece inesperadamente e arrasta Wallandar numa investigação que o leva a pisar a fronteira do mundo da grande política e da espionagem.

Mas "Um Homem inquieto" é também , sobretudo Kurt Wallander, o inspector que se interroga sobre crimes, sobre a sociedade onde eles acontecem, sobre si próprio, polícia e homem que se vê envelhecer e procura o seu lugar no mundo.

Mankell é sueco e um dos autores que mais vende livros na Europa. Vive uma parte do ano em Maputo onde é director de uma companhia de teatro. Os temas dos seus romances anteriores vinham sempre rodeados por questionamentos políticos. Mas aqui, Mankell leva as coisas mais longe. E leva mais fundo as dúvidas interiores com que envolve o seu inspector Kurt Wallandar que poderá eventualmente ser uma espécie de seu alter ego.

"Continuo a ser a mesma pessoa à deriva na periferia dos grandes acontecimentos políticos e militares. Sou o mesmo homem inquieto e inseguro e encontro-me à margem, como antes." diz Wallander já no final do livro.

O inspector que tem envelhecido de romance para romance, tem agora 60 anos, sofre de diabetes e tem falhas de memória cada vez mais preocupantes.

O inspector Wallander questiona-se sobre a sua vida, a sua relação com a ex-mulher alcoólica, a filha e a neta, e Baiba, o grande amor da sua vida, que se vem despedir antes de morrer de uma doença sem cura.

Pela primeira vez leio um romance policial em que o autor "apagas " com alzheimer o seu detective que foi também a linha condutora ao longo de vários romances.

Matar o personagem de livros que se continuam através dessa mesma personagem e dos seus rituais próprios parece ser a tentação de alguns escritores de livros em série.

Lembro-me de "Capítulo final", excelente filme de Rob Reiner, em que um autor mata a sua personagem principal de mais de 30 romances. As consequências são terríveis quando o autor se encontra indefeso perante uma fã que não admite essa morte da "sua" personagem.

Imagino que quando se escreve uma série baseado numa mesma personagem, às duas por três, temos de o afastar de nós para que a colagem dos dois não se eternize.

Mas esta forma de "apagar" a personagem que tem a idade que eu tenho, que sofre de diabetes como eu sofro, deixa-me inquieto... Mas não é para isso mesmo que serve a boa literatura?